O filme “También la lluvia” (2010) foi um
soco no estômago por demonstrar como a dominação ocidental continuou – e
continua - operando por séculos depois do fim da colonização. Isso foi feito
com a vinculação do modus operandi do neoliberalismo com o dos primeiros colonos.
O filme acompanhou a história de uma equipe de cinema que estava na Bolívia
para gravar um filme sobre a chegada de Colombo nas Américas, com foco na
história de Las Casas. Os nativos do século XV foram encenados pelos moradores
da cidade em que as gravações ocorreram. O contexto das gravações era a “Guerra
da Água”, um conflito que ocorreu nos anos 2000 em decorrência da tentativa de
privatização do abastecimento de água. Buscando compreender um pouco mais sobre
a ligação entre colonização e neoliberalismo recorreu-se a Theotonio dos Santos
(s/d).
O ponto de encontro entre colonialismo e
neoliberalismo no filme foi a exploração. Essa ideia foi muito bem representada
usando os povos quíchua para encenar os nativos do XV. Houve uma serie de
acontecimentos similares nos desdobramentos, mas distantes temporalmente. De
início, a própria forma com que a equipe de filmagem se relacionou com os
bolivianos deixou a exploração em nome do lucro evidente. A cena mais marcante
disso, logo nos primeiros minutos de filme foi quando os bolivianos levantam
uma cruz com mais de 7 metros correndo riscos sérios de vida. Risco esse que é
reconhecido pelo diretor Sebastián, mas que é justificado por Costa com o
argumento de que era uma economia de “trinta e cinco mil”. Essa situação é
indiretamente um reflexo das medidas neoliberais que, como afirma Santos (s/d),
puxam os salários para baixo. Mais adiante esse reflexo indireto se torna bem
direto numa conversa de Costa ao telefone, em que ele fala sobre a felicidade
dos bolivianos em receber apenas dois dólares por dia e como isso é benéfico
para a produtora.
A questão dos salários baixos foi retomada
em outra cena que resume a cosmologia neoliberal: durante a ocupação da praça
pelos cidadãos indignados com a privatização da água, a equipe de filmagem
travou um curto debate com um político boliviano sobre a razão – ou ausência
dela – na invasão na praça. De um lado os membros da equipe afirmam que as
pessoas estavam certas em resistir ao aumento da tarifa, pois recebiam apenas
dois dólares por dia. A resposta do político foi em defesa da globalização,
afirmando que o “vitimismo” daquelas pessoas impedia a modernização, que se o
governo cedesse apenas 1 centímetro, os indígenas provavelmente os levariam “de
volta à idade da pedra” e que o salário de dois dólares era o mesmo salário
pago pela produtora.
Observemos ponto a ponto da resposta do
político tendo por prisma o texto de Santos (s/d). Primeiramente, a ideia
de “retornar à idade da pedra” retoma uma dualidade antiga entre civilização e
barbárie, onde a elite letrada – aqui representada pelo político – justificou
um suposto atraso em relação a “evolução rápida” do mundo de prevalência de
valores culturais ocidentais pela presença cultural, social e étnica
majoritariamente não-europeia. Isso é reforçado pela afirmação de “vitimismo”,
que escancara a dicotomia entre o moderno e o arcaico, entre o urbano e o
rural, entre o progresso e o atraso que imperou desde a colonização,
obscurecendo o protagonismo das etnias não-europeias. Se atentarmos para alguns
minutos antes desse debate entre a equipe e o produtor, ouviremos um
agradecimento pela produção de um filme sobre Las Casas e não sobre os nativos
americanos que passaram pelo processo de subjugação. Essa é uma armadilha comum
na qual muitos de nós caímos ainda hoje: contar uma história sobre um suposto
defensor de boas práticas, a frente de seu tempo e não dos oprimidos.
Outro ponto interessante da fala do
político foi o de “não recuar 1 centímetro”, relembrando a “Teoria do Choque”
empregada no processo de implantação neoliberal que tinha por método a
imposição de um "ajuste estrutural" aos países dependentes, que
assistiam a uma elevação da taxa de juro internacional, sugando os excedentes
econômicos do país atingido, e resultando em estagnação e retrocesso econômico-social.
O que retoma a questão inicial dos dois dólares, pois um dos efeitos diretos
desse ajuste é a rebaixa brutal dos níveis salariais e da participação dos
salários nas rendas nacionais, abrindo precedentes para a marginalização
social, a pobreza e a indigência (SANTOS, s/d).
Saindo do debate econômico, gostaria de
encerrar comentando sobre as cenas em que os bolivianos, com uma caracterização
que se constituiu estereótipo de indígena ao longo do tempo resistem a
empreitada policial contra Daniel, uma liderança tanto no enredo do filme,
quanto na luta contra a privatização, sendo ele um sobrevivente, o real “homem
contra o império” do qual Costa falou para animar Sebastian a sair da cama.
Além disso, me chama atenção o uso dos cachorros nas filmagens, o que é fiel
aos relatos históricos, e posteriormente o uso dos mesmos animais pela força
policial na contenção de manifestantes. Os anos passam, mas as armas – físicas
e subjetivas – continuam as mesmas.
Referência
bibliográfica
SANTOS, Teotônio. O
desenvolvimento latino-americano: passado, presente e futuro. Uma homenagem a
André Gunder Frank. s/d.
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