sábado, 4 de novembro de 2023

Carta sobre GTAQ

 Carta sobre GTAQ


As comunidades quilombolas são constituídas por pessoas que compartilham uma identidade forjada ao longo de processos históricos, sociais e culturais. No entanto, foi somente após uma longa e árdua luta que esses grupos foram oficialmente reconhecidos como titulares de direitos específicos pela Constituição Federal de 1988. O Artigo 68 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias (ADCT) marcou um importante avanço ao reconhecer a propriedade das terras das comunidades quilombolas, abrindo caminho para políticas públicas estruturais.


Para atender às necessidades dessas comunidades, além da regularização fundiária, torna-se crucial a formulação e implementação de políticas públicas destinadas ao acesso aos recursos naturais, melhoria dos meios de produção, habitação, educação, saúde, valorização cultural e preservação de suas tradições. É relevante enfatizar que as comunidades quilombolas são exemplos de resiliência, organização e coexistência baseada em relações sociais e ecológicas compartilhadas.


Em 2003, dois decretos foram publicados: o Decreto nº 4886/2003, que estabeleceu a Política Nacional de Promoção da Igualdade Racial, e o Decreto nº 4887/2003, que, em conjunto com as Instruções Normativas (IN) nº 20/05 e n° 57/09 do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA) e com as leis 4.132 e 4.504, estabeleceu os procedimentos para identificação, reconhecimento, delimitação, demarcação e titulação das terras quilombolas. Em 2004, a Convenção 169 da OIT foi promulgada no Brasil, dando origem ao Programa Brasil Quilombola (PBQ), que consolidou a política estatal em relação às comunidades quilombolas.


Em 2006, o Plano Estratégico Nacional de Áreas Protegidas reconheceu a contribuição dos territórios quilombolas para a conservação da biodiversidade. No ano seguinte, foi instituída a Política Nacional de Desenvolvimento Sustentável dos Povos e Comunidades Tradicionais, um instrumento jurídico importante que reconhece a busca dessas comunidades, incluindo os quilombos, por condições que garantam a preservação de sua cultura, estrutura social, práticas religiosas, conhecimentos ancestrais e bem-estar econômico. Em 2008, o Projeto "Brasil Local" elaborou os primeiros "Planos Territoriais de Etnodesenvolvimento" em 10 territórios quilombolas, e em 2013, o movimento quilombola demandou a criação da Gestão Territorial e Ambiental Quilombola, que foi instituída em 2015.


No entanto, sob o governo de Jair Bolsonaro, em 2019, a Medida Provisória 870 transferiu a responsabilidade pela regularização fundiária das terras quilombolas para o Ministério da Agricultura. O Decreto 9.667 também vinculou o INCRA a esse ministério, alterando a estrutura institucional e o direcionamento das ações de regularização.


Em agosto de 2023, após o lançamento do programa Aquilomba Brasil, o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) apresentou dados inéditos e historicamente significativos provenientes do primeiro levantamento da população quilombola no Brasil. No ano de 2022, esse levantamento revelou que o número de pessoas que se identificam como quilombolas ultrapassou a marca de 1,3 milhão de indivíduos. Surpreendentemente, menos de 5% dessas pessoas vivem em territórios oficialmente demarcados.


Ou seja, apesar dos avanços normativos conquistados para melhorar a qualidade de vida e as condições de reprodução física e cultural das comunidades quilombolas, desafios persistentes incluem a regularização dos territórios, o preconceito, o racismo, a intolerância religiosa e as desigualdades sociais e econômicas. Além disso, direitos fundamentais das comunidades, como o direito ao território, acesso aos recursos naturais e a preservação de seus saberes e práticas tradicionais, estão cada vez mais ameaçados. O direito de autoidentificação e autodefinição dos territórios quilombolas tem sido contestado, assim como a natureza coletiva da propriedade.


Restrições de acesso aos recursos naturais, violência decorrente da especulação fundiária e imobiliária, desmatamento e empreendimentos incompatíveis com um modelo de desenvolvimento sustentável competem com a conservação ambiental e os direitos das populações tradicionais. Os valores, saberes e práticas também são ameaçados pela homogeneização cultural, por certos movimentos religiosos e pela persistência do preconceito, bem como pela falta de condições que garantam a qualidade de vida das comunidades.


Como resposta a esses desafios, surgiu a Gestão Territorial e Ambiental Quilombola (GTAQ). Até o momento, a GTAQ tem sido compreendida como um processo de planejamento do território que valoriza os modos de vida e o uso sustentável dos recursos naturais. Essa abordagem é baseada na premissa de que os sistemas naturais e sociais são interdependentes e devem ser considerados de maneira integrada. A organização social, cultural e econômica das comunidades quilombolas está intrinsecamente ligada aos recursos naturais, e a preservação desses recursos depende das práticas e conhecimentos tradicionais.


A GTAQ abrange seis dimensões interconectadas: (1) titulação de territórios, (2) conservação ambiental e uso sustentável de recursos, (3) valores ancestrais, cultura e práticas tradicionais, (4) educação, (5) fortalecimento institucional comunitário e (6) desenvolvimento local. A regularização fundiária é fundamental para a gestão territorial e deve ser discutida e trabalhada em parceria com as comunidades.


A gestão territorial e ambiental é construída por meio da ação coletiva no interior das comunidades, com a definição de acordos internos em assembleias ou reuniões comunitárias. Além disso, a participação das lideranças em espaços externos de articulação política contribui para o fortalecimento tanto das comunidades quanto das instituições comunitárias.


O desenvolvimento local deve assegurar a sustentabilidade nas dimensões social, cultural, econômica e ambiental das comunidades quilombolas, com ênfase no conceito de etnodesenvolvimento como guia para a tomada de decisões. A construção e acesso a políticas públicas que respeitem o desenvolvimento local definido pelas próprias comunidades são condições cruciais para garantir oportunidades que assegurem a permanência das novas gerações em seus territórios.


A proteção da biodiversidade e dos modos de vida nas comunidades quilombolas são intrinsecamente relacionadas. Os conhecimentos e experiências que englobam a proteção ambiental, o desenvolvimento local, a geração de renda e o fortalecimento da identidade e cultura quilombola devem ser reconhecidos, valorizados e apoiados, com base no protagonismo e autonomia das próprias comunidades.


A dimensão da educação desempenha um papel fundamental na promoção de concepções de gestão territorial e ambiental que valorizem a história, os modos de vida e o desenvolvimento local. A implementação da Resolução do Conselho Nacional de Educação/Câmara de Educação Básica (CNE/CEB) n° 8/2012, que estabelece diretrizes curriculares para a educação escolar quilombola, é um passo importante nesse sentido.


Em última análise, a gestão do território e de seus recursos, sejam eles materiais ou imateriais, está ancorada no respeito aos valores ancestrais, tradições, técnicas e culturas locais. Os conhecimentos tradicionais estão em constante evolução e adaptação, incorporando novos elementos e sendo recriados em consonância com as diferentes dinâmicas presentes dentro, fora e entre as comunidades quilombolas.

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