segunda-feira, 30 de novembro de 2020

Resenha de “La teta asustada” (Dir. Claudia Llosa)

 

A Teta Assustada narra a história de Fausta, moradora de um povoado próximo de Lima. Na canção de abertura do filme descobrimos que sua mãe, estuprada décadas atrás, com Fausta ainda no útero, fato que teria originado a doença da “Teta Assustada”: um medo de viver supostamente transmitido pelo leite materno. A trama começa a se desenrolar com a morte da mãe de Fausta, o que leva a jovem a buscar um modo de levar sua mãe para o vilarejo de onde vieram a fim de garantir um enterro digno. Para tanto ela teria que enfrentar sua "doença" que se expressava no medo constante de ser violada, tendo por consequência uma péssima capacidade de se relacionar com qualquer pessoa, mas principalmente homens, mesmo das formas mais simples como apenas conversar. Medo esse que levou a jovem a introduzir uma batata na própria vagina como método de proteção: "Só o asco impede o asqueroso".

Interpretada pelo prisma que Verena Stolcke (2000) propõe, a “doença” de Fausta é uma forma de naturalizar ideologicamente as desigualdades e problemas sociais, a exemplo da cultura do estupro no filme. Essa naturalização se dá atribuindo a um fator natural/biológico questões sociológicas/cosmológicas, operando da mesma forma que a ideia de “raça”.

Por esse prisma, o longa acaba demonstrando nitidamente como a “naturalização” ideológica é central na reprodução da sociedade de classes, pois os reflexos da “doença” impedem Fausta de viver como as outras pessoas e abrem caminho para o roubo, literalmente no filme, das potencialidades da jovem. E o mais perverso é a eficácia dessa “naturalização” para a continuidade dos problemas sociais, pois as pessoas mais próximas de Fausta aderem ao raciocínio de que o medo constante é fruto da doença e não de um problema real cotidiano.

Para conseguir dinheiro para enterrar sua mãe, Fausta se sujeita a uma série de trabalhos, entre eles o de empregada doméstica em uma casa pomposa em Lima. Atentemo-nos para a empregada que a recebe: negra e com o filho na cadeia. Na casa, é estabelecida uma situação inusitada de exploração: a chefa branca de Fausta plagia uma das canções criadas pela jovem, é o roubo de potencialidade citado anteriormente. Depois de apresentar a canção ao pública, a chefa demite a jovem a abandonando na estrada a noite.

Esse emprego na casa é cheio de significados que podem ser explorados com o texto de Stolcke (2000). Primeiramente o racismo implícito como constituinte da desigualdade de classes no fato da chefa ser branca e as funcionárias serem negra e nativa peruana. Em um nível mais profundo de análise pode-se dizer que há também uma vinculação de mulheres, nesse caso negras e nativas, com o serviço doméstico, que contribui para a reprodução da desigualdade social. No limite é mais uma experiencia de opressão enfrentada pelas mulheres e marcadas por características fenotípicas.

Encerro chamando atenção para o fato de que na mesma casa em que Fausta trabalha como empregada doméstica, ela conhece o jardineiro, um sujeito de hábitos simples preocupado com o bem estar da jovem. Todavia, seguindo ainda as ideias de Stolcke (2000), há nessa relação entre Fausta e o jardineiro mais uma forma de “naturalização” do domínio masculina sobre as mulheres, reforçando a ideia de que elas necessitam de proteção masculina. O filme se encerra com um grande rompimento: Fausta passa por uma cirurgia para retirar a batata e, a caminho de enterrar sua mãe, pede para descer do carro que era conduzido por um homem, seu tio. Metaforicamente ela toma a direção da sua vida.

 Referências

STOLCKE, Verena ¿Es el sexo para el género lo que la raza para la etnicidad... y la naturaleza para la sociedad? Revista Política y Cultura, número 014Universidad Autónoma Metropolitana - XochimilcoDistrito Federal, Méxicopp. 25-60

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