segunda-feira, 30 de novembro de 2020

Resenha de “A missão” (Dir. Roland Joffé)

 Retratando o período pombalino, o filme “A missão” (1986) conseguiu transmitir em cerca de 120 minutos parte dos conflitos sociais e contradições políticas da América nos séculos de colonização.  A partir das reflexões de Quijano (2004), essa resenha objetivou se debruçar sobre o longa com um olhar atendo aos absurdos que marcaram a história do “Novo Mundo”. O filme acompanha os dias de um padre jesuíta Gabriel na Missão de São Carlos com indígenas Guarani. O conflito inicial surgiu no encontro do padre com um comerciante de escravos Rodrigo Mendoza, que capturou alguns nativos na região da missão, o que era proibido pelas leis espanholas. Esse mesmo comerciante, pouco depois, acabou cometendo um crime passional e, numa jornada de redenção, passou a acompanhar o padre jesuíta na missão com os Guarani. O contexto político era de instabilidade, pois o território estava sendo redividido entre Portugal e Espanha. Portugal tinha interesse no trabalho escravo dos indígenas. E quando o território em que a missão estava localizada passou a ser de Portugal, os nativos entram em guerra com os agentes da coroa, terminando em um banho de sangue.

A violência no processo de conquista não é uma novidade. Mas, como bem aponta Quijano (2004) e como o filme deixou subentendido, a maior ameaça aos povos nativos era a escravização. Essa afirmação é reforçada pelo trecho em que um dos representantes de Pombal afirmou que os nativos não eram humanos, pois assassinavam os seus filhos. O padre jesuíta retrucou afirmando que matavam como estratégia de sobrevivência, pois só poderiam carregar um filho durante as fugas que tinham de empreender com a aproximação de mercenários e representantes das coroas.

Essa passagem do filme é muito significativa não só pela citação do infanticídio – que ainda é retomada em narrativas contemporâneas para justificar intervenção no modo de vida dos povos ancestrais -, mas por dois outros fatores que marcam o período colonial e estão presentes no texto de Quijano (2004). O primeiro deles é a questão “do corpo”. O indígena é apontado pelo representante de Portugal como um “animal com voz humana”, em outras palavras, um corpo desprovido de razão e que, justamente por isso, pode ser caçado, escravizado e morto. Um corpo sem espírito, entregue aos anseios puramente naturais, que “desconhece o direito de propriedade e a lei real”. Essa dualidade entre espírito e natureza é a segunda questão significativa que não se pode deixar de apontar.

O nativo é menos humano ou não é humano enquanto está na “natureza” (aqui como sinônimo de meio ambiente, mas que também pode aparecer como “estado de natureza”), o que é reforçado mais a frente no filme com falas dos próprios nativos: “O diabo vive na floresta” ou “Saímos da floresta por vontade de Deus”. Essa dualidade foi marcante no discurso moderno, onde a ideia de uma “civilização” - europeia e branca - só tinha sentido com a sua oposição à vida com a mata de pé. Ser civilizado era sinônimo de “domar” o meio ambiente. Essa cosmologia serviu de embasamento para as atrocidades cometidas pelos colonos, como bem indicou a própria autoridade portuguesa enviada para avaliar a transferência de terras, quando, ao falar do massacre final, afirmou: “O mundo não é assim... nós o fizemos assim”.

Entretanto, há que se pensar também que essa oposição entre civilização e natureza não é válida a todo momento no discurso do colonizador. A mesma natureza alheia a razão, é espaço de contemplação, descrito como "jardim do Éden", onde havia "contado mais próximo com Deus". Isso revela mais contradições entre as ideias dos colonos, que, como dito por Quijano (2004), não tinham muitos interesses comuns, longe de serem um bloco monolítico. Não caiamos também na armadilha de reduzir os povos indígenas a um único bloco homogêneo. São diversos povos com cosmologias diferentes, como pôde ser apreciado no filme, durante a guerra final: os portugueses tinham como aliados alguns nativos que atearam fogo a missão que os Guarani tentavam defender. Podemos ir mais fundo, identificando entre os próprios defensores da missão aqueles que pegaram em armas e foram combater os colonos e aqueles que se juntaram na resistência passiva, que nos enche os olhos numa cena belíssima de uma procissão durante a guerra.

Encerro com um último comentário sobre as missões e os jesuítas, que podem parecer heróis momentaneamente, por exemplo, no momento em que o padre afirmou que as missões eram o último refúgio dos nativos. Não sejamos ingênuos a ponto de deixar de reconhecer a violência implícita na evangelização, pois o controle sobre a subjetividade, a cultura e o conhecimento foi, e ainda é, uma das principais formas de dominação.

 

Referência bibliográfica

QUIJANO, Aníbal. Colonialidad del poder, eurocentrismo y América Latina. Revista Venezolana de Economia y Ciencias Sociales. Enero/abril, Año/Vol.10, Número 001. Universidad Central de Venezuela. Caracas, Venezuela, 2004, pp. 7

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