segunda-feira, 16 de novembro de 2020

Por uma história do fogo no cerrado

FONTE ORIGINAL: SOUSA, Francisco Octávio Bittencourt de. Por uma história do fogo no cerrado.II Simpósio do Cerrado: manejo, conservação e educação ambiental. Universidade Federal de São Carlos. 2020. Disponível em: https://sgasproex.wixsite.com/website/post/resumos-sem-apresenta%C3%A7%C3%A3o-oral. Consultado em setembro de 2020.

Tema: Manejo.

Resumo: O fogo é um fator ambiental determinante e necessário para a manutenção do equilíbrio biológico no cerrado (ALVES & SILVA, 2011). Anos antes de Warming (1908), as queimadas já eram discutidas por diferentes perspectivas. No século XIX, destacam-se duas: tradicionalismo lento e modernização inovadora. O tradicionalismo lento, que insistia em manter as mesmas técnicas “rudimentares” de relações ecológicas. Já a vertente de modernização inovadora almejava alcançar o progresso da nação pelo uso racional dos recursos disponíveis (WILCOX, 2017). Pela análise comparativa das duas vertentes, partindo dos relatos dos viajantes do século XIX, pretendo demonstrar que essa divisão ignora alguns fatos do cotidiano dos camponeses pobres no século XIX. Pelo prisma da História Ambiental, o objetivo é encontrar sensibilidades ambientais específicas dos oitocentos e jogar luz sobre parte da história desses camponeses e a sua relação com o fogo.

Os adeptos da vertente da modernização inovadora eram membros da elite imperial: viajantes, militares, acadêmicos e presidentes de província. Servem de exemplo: Augustin François Saint-Hilaire (1779-1853), Johann Baptist Emanuel Poh (1782-1834), José Vieira Couto de Magalhães (1837-1898), João Barbosa Rodrigues (1842-1909), Alfred Maria Adriano d'Escragnolle Taunay (1843-1899). O denominador comum desse grupo era a crença nas vantagens econômicas das produções naturais para o progresso da humanidade e em uma ligação entre a ideia de civilização e exploração racional da natureza. Se soma a essas crenças a ideia de que a decadência das províncias do cerrado era causada, em parte, pela “ausência de ímpeto capitalista”, “preguiça”, “moleza” e outras palavras utilizadas para designar as práticas de camponeses pobres, adeptos da vertente do “tradicionalismo lento” (SOUZA, 2013; WILCOX, 2017).

Os camponeses operavam, majoritariamente, a agropecuária itinerante de queimadas, entendidas pelos adeptos da vertente modernizadora como um manejo “destrutivo e preguiçoso”. Esses camponeses, adeptos da vertente tradicionalista, eram sobreviventes do “desenvolvimento” da indústria da mineração, que enriqueceu alguns poucos habitantes da província e levou à morte escravizados, indígenas e trabalhadores pobres. A sociedade na qual viviam, dispersa pelo território, tinha por característica marcante a itinerância, pobreza e a carestia, motivadas pela escassez alimentar e insalubridade sanitária (SOUZA, 2013; WILCOX, 2017; MCCREERY, 2006).

E quem tinha razão? Comecemos pelos argumentos da vertente da modernização inovadora no século XIX, crítica às queimadas: Saint-Hilaire escreveu sobre a necessidade de se abandonar as “técnicas rudimentares” na forma de manejo para cultivo; Pohl reclamou da impossibilidade de coletar plantas para estudo em razão das queimadas; Barbosa Rodrigues sugeriu, em 1896, que os campos secaram por causa do gado e queimadas indiscriminadas; Taunay atribuiu à queima descontrolada a propagação de gramíneas resistentes ao fogo no oeste de São Paulo, no Triângulo Mineiro, no oeste de Goiás e leste de Mato Grosso. Como efeitos do uso do fogo a longo prazo podemos listar ainda: (1) o consumo do nitrogênio do solo; (2) o solo se torna pobre em minerais, sem húmus e duro, acarretando em erosão; (3) o estimulo ao crescimento de gramíneas invasoras, mais resistentes ao fogo; (4) a expulsão de espécies que habitavam a região, expondo muitos animais de pequeno porte a predação; (5) a atração de insetos nocivos, a exemplo dos cupins; e (6) a viabilização das condições para parasitas (SAINT-HILAIRE, 1976; POHL, 1976; SANTANA, 2014; WILCOX, 2017). Pode-se acrescentar ainda: morte da copa, limitando o tamanho das árvores; redução da produção de sementes; e o favorecimento de espécies herbáceas em detrimento das espécies arbóreas (SILVA et al., 2011). É possível concluir a partir desses relatos que, mesmo antes de Warming (1908), já havia uma sistematização sobre queimadas no cerrado compondo a sensibilidade ambiental dos oitocentistas (ALVES & SILVA, 2011).

Para os adeptos da vertente tradicionalista, a queima foi um método rápido e econômico para (1) renovar gramíneas velhas e grossas; (2) deixar uma camada de cinzas rica em minerais (cálcio, magnésio e potássio); (3) matar parasitas e insetos; (4) formar clareiras de proteção contra incêndios acidentais; e (5) atrair animais para uma área que, de outra forma, seria evitada por causa de gramíneas disponíveis (WILCOX, 2017). Estudos recentes reforçam que o fogo pode atuar na deposição de cinzas, redução da acidez, disponibilização de nutrientes e elevação da temperatura do solo (SILVA et al., 2011).

O contexto político-econômico da região no XIX corroborou para continuidade das práticas enquadradas na vertente do tradicionalismo lento, pois os camponeses não tinham perspectiva de posse da terra e transporte e comunicação eram precários. O baixo valor das terras desestimulava a fixação em um mesmo local. O crédito rural era escasso, e, combinado aos altos impostos, inviabilizava a competição das propriedades do cerrado com fazendas de outras áreas do Brasil. E há ainda que levar em consideração as condições ambientais: os rios caudalosos e encachoeirados dificultavam a navegação; a aridez e pobreza de alguns pontos do cerrado tornavam o cultivo mais difícil; os campos alagadiços e as cidades baixas acabavam por estimular a proliferação de doenças; a vegetação ocultava animais selvagens; e, no período de chuvas, as cheias dos rios deixavam muitas estradas intransitáveis (MCCREERY, 2006; SOUZA, 2013; WILCOX, 2017).

Rodolpho Endlich (1903) não considerou o fogo uma prática destrutiva, pois a mata – de árvores adaptadas ao cerrado - não era destruída. Para o autor, o manejo com fogo deveria ser empregado em todo o Brasil, com a finalidade de renovar as gramíneas de forma econômica e eliminar parasitas. Todavia, a queima deveria ser controlada e adotada em paralelo à rotação de pastagens. Estudos da última década corroboram com parte do argumento de Endlich, na defesa de um regime que misture blocos de queimadas prescritas combinados com queimadas naturais, e combate a incêndios antrópicos na estação seca, para o cerrado e não para todo o país (SILVA et al., 2011). Todavia, isso carecia de maiores gastos e trabalho adicional, que simplesmente fugiam do orçamento camponeses do oitocentos, especialmente os mais pobres, com espaço limitado (WILCOX, 2017).

Desse modo, no século XIX, o manejo com fogo possibilitou aos camponeses a superação de condições políticas e ambientais desfavoráveis e a falta de recursos (mão de obra e equipamentos mais sofisticados que não podiam ser comprados pelos camponeses). Tendo como resultado um bom uso dos recursos abundantes na região (terra). Além disso, a escala da degradação gerada pelas queimadas apresentava efeitos mais teóricos que práticos a curto prazo. E a longo prazo, o método de manejo itinerante era inviável, pois a pressão para a delimitação das propriedades aumentava com o decorrer do tempo, diminuindo a mobilidade da agricultura e o espaço para a pecuária extensiva. É importante ressaltar ainda, como afirmou Silva et al. (2011), que, mesmo sem manejo, os incêndios ocorreriam no cerrado. Não houve nenhuma perspectiva completamente correta. A vertente inovadora ignorou a realidade da vida cotidiana dos pobres e pregou a abolição das queimadas, elemento de equilíbrio no cerrado. Os camponeses aderiram a práticas de manejo com fogo sem o devido controle. Nesse sentido, pensar as queimadas no cerrado ao longo do século XIX é pensar em como meio ambiente, políticas públicas e populações se condicionaram mutuamente.

 

Palavras-chave: cerrado, manejo com fogo, modernização inovadora, tradicionalismo lento, camponeses pobres.

 

Referências bibliográficas

ALVES, Ruy José Válka; SILVA, Nílber Gonçalves. O fogo é sempre um vilão nos campos rupestres? Biodiversidade Brasileira, Brasília, v. 2, p. 120-127, 2011. Disponível em: https://revistaeletronica.icmbio.gov.br/index.php/BioBR/issue/view/15. Acesso em: 02 set. 2020.

Endlich, Rodolpho. A criação do gado vaccum nas partes interiores da America do Sul. Boletim da Agricultura 3: 12 (1902): 740-746, 810-821.

MCCREERY, David. Frontier Goiás, 1822-1889. Stanford, Califórnia, Stanford University Press, 2006.

MORAN, Emilio Frederico. Meio ambiente e ciências sociais: interações homem-ambiente e sustentabilidade. São Paulo: Senac, 2011.

POHL, Johann Emanuel. Viagem no interior do Brasil. Belo Horizonte/São Paulo: Itatiaia/Edusp, 1976.

SAINT-HILAIRE, Auguste de. Viagem à Província de Goiás. Belo Horizonte/São Paulo: Itatiaia/Edusp, 1976.

SANTANA, Raimundo Nonato Ribeiro. História e Natureza: mudanças ambientais no norte de goiás em relatos de cronistas e viajantes naturalistas no século xix.

SILVA, Danilo Muniz et al. Os efeitos dos regimes de fogo sobre a vegetação de Cerrado no Parque Nacional das Emas, GO: considerações para a conservação da diversidade. Biodiversidade Brasileira, Brasília, v. 2, p. 26-39, 2011. Disponível em: https://revistaeletronica.icmbio.gov.br/index.php/BioBR/issue/view/15. Acesso em: 02 set. 2020.

SOUZA, Fabíula Sevilha de. Rios e Terras: história ambiental de Goiás (1822-1850). 216 f. Tese (Doutorado) - Curso de História, Universidade Estadual Paulista, Assis, 2013.

Warming E. 1908, Lagoa Santa. Contribuição para a Geographia Phytobiológica. Tradução de E. Löfgren. Imprensa Official do estado de Minas Geraes, Bello Horizonte. Reprint 1973.

WILCOX, Robert W.. Cattle in the Backlands: Mato Grosso and the evolution of ranching in the brazilian tropics. Austin: University Of Texas Press, 2017.

FONTE ORIGINAL: SOUSA, Francisco Octávio Bittencourt de. Por uma história do fogo no cerrado.II Simpósio do Cerrado: manejo, conservação e educação ambiental. Universidade Federal de São Carlos. 2020. Disponível em: https://sgasproex.wixsite.com/website/post/resumos-sem-apresenta%C3%A7%C3%A3o-oral. Consultado em setembro de 2020.

 

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