FONTE ORIGINAL: SOUSA, Francisco Octávio Bittencourt de. Por uma história do fogo no cerrado.II Simpósio do Cerrado: manejo, conservação e educação ambiental. Universidade Federal de São Carlos. 2020. Disponível em: https://sgasproex.wixsite.com/website/post/resumos-sem-apresenta%C3%A7%C3%A3o-oral. Consultado em setembro de 2020.
Tema:
Manejo.
Resumo:
O
fogo é um fator ambiental determinante e necessário para a manutenção do
equilíbrio biológico no cerrado (ALVES & SILVA, 2011). Anos antes de Warming
(1908), as queimadas já eram discutidas por diferentes perspectivas. No século
XIX, destacam-se duas: tradicionalismo lento e modernização inovadora. O
tradicionalismo lento, que insistia em manter as mesmas técnicas “rudimentares”
de relações ecológicas. Já a vertente de modernização inovadora almejava
alcançar o progresso da nação pelo uso racional dos recursos disponíveis (WILCOX,
2017). Pela análise comparativa das duas vertentes, partindo dos relatos dos
viajantes do século XIX, pretendo demonstrar que essa divisão ignora alguns
fatos do cotidiano dos camponeses pobres no século XIX. Pelo prisma da História
Ambiental, o objetivo é encontrar sensibilidades ambientais específicas dos
oitocentos e jogar luz sobre parte da história desses camponeses e a sua
relação com o fogo.
Os adeptos da vertente da modernização
inovadora eram membros da elite imperial: viajantes, militares, acadêmicos e
presidentes de província. Servem de exemplo: Augustin François Saint-Hilaire
(1779-1853), Johann Baptist Emanuel Poh (1782-1834), José Vieira Couto de
Magalhães (1837-1898), João Barbosa Rodrigues (1842-1909), Alfred Maria Adriano
d'Escragnolle Taunay (1843-1899). O denominador comum desse grupo era a crença
nas vantagens econômicas das produções naturais para o progresso da humanidade
e em uma ligação entre a ideia de civilização e exploração racional da natureza.
Se soma a essas crenças a ideia de que a decadência das províncias do cerrado
era causada, em parte, pela “ausência de ímpeto capitalista”, “preguiça”,
“moleza” e outras palavras utilizadas para designar as práticas de camponeses
pobres, adeptos da vertente do “tradicionalismo lento” (SOUZA, 2013; WILCOX, 2017).
Os camponeses operavam, majoritariamente,
a agropecuária itinerante de queimadas, entendidas pelos adeptos da vertente
modernizadora como um manejo “destrutivo e preguiçoso”. Esses camponeses,
adeptos da vertente tradicionalista, eram sobreviventes do “desenvolvimento” da
indústria da mineração, que enriqueceu alguns poucos habitantes da província e
levou à morte escravizados, indígenas e trabalhadores pobres. A sociedade na
qual viviam, dispersa pelo território, tinha por característica marcante a itinerância,
pobreza e a carestia, motivadas pela escassez alimentar e insalubridade
sanitária (SOUZA, 2013; WILCOX, 2017; MCCREERY, 2006).
E quem tinha razão? Comecemos pelos argumentos da
vertente da modernização inovadora no século XIX, crítica às queimadas:
Saint-Hilaire escreveu sobre a necessidade de se abandonar as “técnicas
rudimentares” na forma de manejo para cultivo; Pohl reclamou da impossibilidade
de coletar plantas para estudo em razão das queimadas; Barbosa Rodrigues
sugeriu, em 1896, que os campos secaram por causa do gado e queimadas
indiscriminadas; Taunay atribuiu à queima descontrolada a propagação de
gramíneas resistentes ao fogo no oeste de São Paulo, no Triângulo Mineiro, no
oeste de Goiás e leste de Mato Grosso. Como efeitos do uso do fogo a longo
prazo podemos listar ainda: (1) o consumo do nitrogênio do solo; (2) o solo se
torna pobre em minerais, sem húmus e duro, acarretando em erosão; (3) o estimulo
ao crescimento de gramíneas invasoras, mais resistentes ao fogo; (4) a expulsão
de espécies que habitavam a região, expondo muitos animais de pequeno porte a
predação; (5) a atração de insetos nocivos, a exemplo dos cupins; e (6) a viabilização
das condições para parasitas (SAINT-HILAIRE, 1976; POHL, 1976; SANTANA, 2014;
WILCOX, 2017). Pode-se acrescentar ainda: morte da copa, limitando o tamanho
das árvores; redução da produção de sementes; e o favorecimento de espécies
herbáceas em detrimento das espécies arbóreas (SILVA et al., 2011). É possível
concluir a partir desses relatos que, mesmo antes de Warming (1908), já havia
uma sistematização sobre queimadas no cerrado compondo a sensibilidade
ambiental dos oitocentistas (ALVES & SILVA, 2011).
Para os adeptos da vertente tradicionalista, a queima foi
um método rápido e econômico para (1) renovar gramíneas velhas e grossas; (2) deixar
uma camada de cinzas rica em minerais (cálcio, magnésio e potássio); (3) matar
parasitas e insetos; (4) formar clareiras de proteção contra incêndios
acidentais; e (5) atrair animais para uma área que, de outra forma, seria
evitada por causa de gramíneas disponíveis (WILCOX, 2017). Estudos recentes
reforçam que o fogo pode atuar na deposição de cinzas, redução da acidez,
disponibilização de nutrientes e elevação da temperatura do solo (SILVA et al.,
2011).
O contexto político-econômico da região no XIX
corroborou para continuidade das práticas enquadradas na vertente do
tradicionalismo lento, pois os camponeses não tinham perspectiva de posse da
terra e transporte e comunicação eram precários. O baixo valor das terras
desestimulava a fixação em um mesmo local. O crédito rural era escasso, e,
combinado aos altos impostos, inviabilizava a competição das propriedades do
cerrado com fazendas de outras áreas do Brasil. E há ainda que levar em consideração
as condições ambientais: os rios caudalosos e encachoeirados dificultavam a
navegação; a aridez e pobreza de alguns pontos do cerrado tornavam o cultivo
mais difícil; os campos alagadiços e as cidades baixas acabavam por estimular a
proliferação de doenças; a vegetação ocultava animais selvagens; e, no período
de chuvas, as cheias dos rios deixavam muitas estradas intransitáveis (MCCREERY,
2006; SOUZA, 2013; WILCOX, 2017).
Rodolpho Endlich (1903) não considerou o fogo uma
prática destrutiva, pois a mata – de árvores adaptadas ao cerrado - não era
destruída. Para o autor, o manejo com fogo deveria ser empregado em todo o
Brasil, com a finalidade de renovar as gramíneas de forma econômica e eliminar parasitas.
Todavia, a queima deveria ser controlada e adotada em paralelo à rotação de
pastagens. Estudos da última década corroboram com parte do argumento de
Endlich, na defesa de um regime que misture blocos de queimadas prescritas
combinados com queimadas naturais, e combate a incêndios antrópicos na estação
seca, para o cerrado e não para todo o país (SILVA et al., 2011). Todavia, isso
carecia de maiores gastos e trabalho adicional, que simplesmente fugiam do
orçamento camponeses do oitocentos, especialmente os mais pobres, com espaço
limitado (WILCOX, 2017).
Desse modo, no século XIX, o manejo com
fogo possibilitou aos camponeses a superação de condições políticas e
ambientais desfavoráveis e a falta de recursos (mão de obra e equipamentos mais
sofisticados que não podiam ser comprados pelos camponeses). Tendo como
resultado um bom uso dos recursos abundantes na região (terra). Além disso, a
escala da degradação gerada pelas queimadas apresentava efeitos mais teóricos
que práticos a curto prazo. E a longo prazo, o método de manejo itinerante era
inviável, pois a pressão para a delimitação das propriedades aumentava com o
decorrer do tempo, diminuindo a mobilidade da agricultura e o espaço para a
pecuária extensiva. É importante ressaltar ainda, como afirmou Silva et al. (2011),
que, mesmo sem manejo, os incêndios ocorreriam no cerrado. Não houve nenhuma
perspectiva completamente correta. A vertente inovadora ignorou a realidade da
vida cotidiana dos pobres e pregou a abolição das queimadas, elemento de
equilíbrio no cerrado. Os camponeses aderiram a práticas de manejo com fogo sem
o devido controle. Nesse sentido, pensar as queimadas no cerrado ao longo do
século XIX é pensar em como meio ambiente, políticas públicas e populações se
condicionaram mutuamente.
Palavras-chave:
cerrado,
manejo com fogo, modernização inovadora, tradicionalismo lento, camponeses
pobres.
Referências
bibliográficas
ALVES,
Ruy José Válka; SILVA, Nílber Gonçalves. O fogo é sempre um vilão nos campos
rupestres? Biodiversidade Brasileira, Brasília, v. 2, p. 120-127, 2011.
Disponível em:
https://revistaeletronica.icmbio.gov.br/index.php/BioBR/issue/view/15. Acesso
em: 02 set. 2020.
Endlich,
Rodolpho. A criação do gado vaccum nas partes interiores da America do Sul.
Boletim da Agricultura 3: 12 (1902): 740-746, 810-821.
MCCREERY,
David. Frontier Goiás, 1822-1889. Stanford, Califórnia, Stanford
University Press, 2006.
MORAN,
Emilio Frederico. Meio ambiente e ciências sociais: interações
homem-ambiente e sustentabilidade. São Paulo: Senac, 2011.
POHL,
Johann Emanuel. Viagem no interior do Brasil. Belo Horizonte/São Paulo:
Itatiaia/Edusp, 1976.
SAINT-HILAIRE,
Auguste de. Viagem à Província de Goiás. Belo Horizonte/São Paulo:
Itatiaia/Edusp, 1976.
SANTANA,
Raimundo Nonato Ribeiro. História e Natureza: mudanças ambientais no
norte de goiás em relatos de cronistas e viajantes naturalistas no século xix.
SILVA,
Danilo Muniz et al. Os efeitos dos regimes de fogo sobre a vegetação de
Cerrado no Parque Nacional das Emas, GO: considerações para a conservação
da diversidade. Biodiversidade Brasileira, Brasília, v. 2, p. 26-39, 2011.
Disponível em:
https://revistaeletronica.icmbio.gov.br/index.php/BioBR/issue/view/15. Acesso
em: 02 set. 2020.
SOUZA,
Fabíula Sevilha de. Rios e Terras: história ambiental de Goiás
(1822-1850). 216 f. Tese (Doutorado) - Curso de História, Universidade Estadual
Paulista, Assis, 2013.
Warming
E. 1908, Lagoa Santa. Contribuição para a Geographia Phytobiológica.
Tradução de E. Löfgren. Imprensa Official do estado de Minas Geraes, Bello
Horizonte. Reprint 1973.
WILCOX,
Robert W.. Cattle in the Backlands: Mato Grosso and the evolution of
ranching in the brazilian tropics. Austin: University Of Texas Press, 2017.
FONTE ORIGINAL: SOUSA, Francisco Octávio Bittencourt de. Por uma história do fogo no cerrado.II Simpósio do Cerrado: manejo, conservação e educação ambiental. Universidade Federal de São Carlos. 2020. Disponível em: https://sgasproex.wixsite.com/website/post/resumos-sem-apresenta%C3%A7%C3%A3o-oral. Consultado em setembro de 2020.
Nenhum comentário:
Postar um comentário