segunda-feira, 30 de novembro de 2020

Resenha do filme “NO” (Diretor: Pablo Larrain)

Em 1988 foi realizada uma consulta popular sobre a continuidade do general Augusto Pinochet no poder do Chile. Parte da oposição ao ditador enxergou a votação como a única forma de encerrar a ditadura chilena, marcada por um longo período de perseguição política, desaparecimentos, mortes, concentração de poder, suspensão dos direitos fundamentais e por um choque neoliberal – importado - brutal, que deixou 40% da população em péssimas condições econômicas. Pela ótica de René Saavedra, um publicitário chileno, acompanhamos o desenrolar das campanhas pela permanência do general (SIM) ou por sua saída (NÃO).

Logo de início já conhecemos as duas faces do governo pinochetista: de um lado alguns pequenos grupos privilegiados com a “liberdade econômica” e de outro o terror da ditadura, com perseguição a opositores (GALEANO, 1987). Essas faces nos são apresentadas dentro da casa de René, na convivência com sua companheira e filho: enquanto o publicitário tinha uma vida confortável – podendo adquirir até mesmo os últimos lançamentos tecnológicos, como o micro-ondas – sua companheira mora em uma casa de fachada nada pomposa e é presa e agredida inúmeras vezes durante o filme. Todavia, há um componente comum: os dois trabalham para o fim da ditadura, de maneiras diferentes.

A companheira de René era uma militante, que enfrentava os militares na rua. René nos foi apresentado conformado com o regime, posto que, ao ser convidado para a campanha do NÃO apresentou alguma resistência inicial, que em parte se deveu ao chefe – publicitário responsável pela campanha do SIM – e, em parte, pelo terror que a ditadura conseguia transmitir, onde os indignados com o sistema eram tratados como traidores da pátria, exilados em sua própria terra, se tornando cada vez menos dispostos a  se indignar contra a injustiça (GALEANO, 1987).

A campanha pelo SIM era baseada em uma distorção que pretendia fazer entender o governo de Pinochet como um governo legal/legítimo, com menos “aparência” militar. Prova disso é que o publicitário e alguns ministros insistem para que o general aparecesse sem a farda, reforçando uma imagem mais paternal de Pinochet. “Obrigado por nos dar onde morar, presidente!” dizia uma criança na propaganda. Era uma operação mental para atingir a subjetividade social de forma a tornar dominante a ideia de que o regime chileno era legitimo (ROUQUIE, s/d). 

A campanha pelo NÃO apresentou várias dificuldades: havia muitos partidos na oposição, haviam dúvidas sobre retratar ou não a face violenta do regime. Fora o medo de que o outro lado não aceitasse o resultado. Fato é que a campanha pelo NÃO foi “alegre”, com poucas representações do terror instaurado por Pinochet. O objetivo era tornar o NÃO mais tragável, e aqui há várias questões levantadas no próprio filme e que precisam ser debatidas, como: quem era essa gente feliz? o que estavam festejando? era realmente tempo de alegria?, mas que careceriam de mais que o limite de espaço desse texto.

O filme acabou com o resultado que já conhecemos: o NÃO venceu. Isso concretiza a afirmação de Rouquié (s/d) sobre as eleições: não são mais do que uma forma de expressar as relações de força. Assim que a consulta publica apontou um vencedor, o comitê pelo “NÃO” foi cercado e teve a luz cortada. Porém, quando os generais começam a abandonar Pinochet – o que é transmitido pela televisão – as relações de força mudam e o governo cai, aceitando a vitória dos opositores.

 

Referências bibliográficas

Rouquié, Alain. Dictadores, militares y legitimidad en América Latina. Revista Crítica e Utopia, N. 5.  

GALEANO, Eduardo. As veias abertas da América Latina.  (Pósfacio – Sete anos despois) 25ª edição. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987 [1976]. 

 

  

Resenha de “La teta asustada” (Dir. Claudia Llosa)

 

A Teta Assustada narra a história de Fausta, moradora de um povoado próximo de Lima. Na canção de abertura do filme descobrimos que sua mãe, estuprada décadas atrás, com Fausta ainda no útero, fato que teria originado a doença da “Teta Assustada”: um medo de viver supostamente transmitido pelo leite materno. A trama começa a se desenrolar com a morte da mãe de Fausta, o que leva a jovem a buscar um modo de levar sua mãe para o vilarejo de onde vieram a fim de garantir um enterro digno. Para tanto ela teria que enfrentar sua "doença" que se expressava no medo constante de ser violada, tendo por consequência uma péssima capacidade de se relacionar com qualquer pessoa, mas principalmente homens, mesmo das formas mais simples como apenas conversar. Medo esse que levou a jovem a introduzir uma batata na própria vagina como método de proteção: "Só o asco impede o asqueroso".

Interpretada pelo prisma que Verena Stolcke (2000) propõe, a “doença” de Fausta é uma forma de naturalizar ideologicamente as desigualdades e problemas sociais, a exemplo da cultura do estupro no filme. Essa naturalização se dá atribuindo a um fator natural/biológico questões sociológicas/cosmológicas, operando da mesma forma que a ideia de “raça”.

Por esse prisma, o longa acaba demonstrando nitidamente como a “naturalização” ideológica é central na reprodução da sociedade de classes, pois os reflexos da “doença” impedem Fausta de viver como as outras pessoas e abrem caminho para o roubo, literalmente no filme, das potencialidades da jovem. E o mais perverso é a eficácia dessa “naturalização” para a continuidade dos problemas sociais, pois as pessoas mais próximas de Fausta aderem ao raciocínio de que o medo constante é fruto da doença e não de um problema real cotidiano.

Para conseguir dinheiro para enterrar sua mãe, Fausta se sujeita a uma série de trabalhos, entre eles o de empregada doméstica em uma casa pomposa em Lima. Atentemo-nos para a empregada que a recebe: negra e com o filho na cadeia. Na casa, é estabelecida uma situação inusitada de exploração: a chefa branca de Fausta plagia uma das canções criadas pela jovem, é o roubo de potencialidade citado anteriormente. Depois de apresentar a canção ao pública, a chefa demite a jovem a abandonando na estrada a noite.

Esse emprego na casa é cheio de significados que podem ser explorados com o texto de Stolcke (2000). Primeiramente o racismo implícito como constituinte da desigualdade de classes no fato da chefa ser branca e as funcionárias serem negra e nativa peruana. Em um nível mais profundo de análise pode-se dizer que há também uma vinculação de mulheres, nesse caso negras e nativas, com o serviço doméstico, que contribui para a reprodução da desigualdade social. No limite é mais uma experiencia de opressão enfrentada pelas mulheres e marcadas por características fenotípicas.

Encerro chamando atenção para o fato de que na mesma casa em que Fausta trabalha como empregada doméstica, ela conhece o jardineiro, um sujeito de hábitos simples preocupado com o bem estar da jovem. Todavia, seguindo ainda as ideias de Stolcke (2000), há nessa relação entre Fausta e o jardineiro mais uma forma de “naturalização” do domínio masculina sobre as mulheres, reforçando a ideia de que elas necessitam de proteção masculina. O filme se encerra com um grande rompimento: Fausta passa por uma cirurgia para retirar a batata e, a caminho de enterrar sua mãe, pede para descer do carro que era conduzido por um homem, seu tio. Metaforicamente ela toma a direção da sua vida.

 Referências

STOLCKE, Verena ¿Es el sexo para el género lo que la raza para la etnicidad... y la naturaleza para la sociedad? Revista Política y Cultura, número 014Universidad Autónoma Metropolitana - XochimilcoDistrito Federal, Méxicopp. 25-60

Resenha de “También la lluvia” (Diretora: Icíar Bollaín)

 

O filme “También la lluvia” (2010) foi um soco no estômago por demonstrar como a dominação ocidental continuou – e continua - operando por séculos depois do fim da colonização. Isso foi feito com a vinculação do modus operandi do neoliberalismo com o dos primeiros colonos. O filme acompanhou a história de uma equipe de cinema que estava na Bolívia para gravar um filme sobre a chegada de Colombo nas Américas, com foco na história de Las Casas. Os nativos do século XV foram encenados pelos moradores da cidade em que as gravações ocorreram. O contexto das gravações era a “Guerra da Água”, um conflito que ocorreu nos anos 2000 em decorrência da tentativa de privatização do abastecimento de água. Buscando compreender um pouco mais sobre a ligação entre colonização e neoliberalismo recorreu-se a Theotonio dos Santos (s/d).

O ponto de encontro entre colonialismo e neoliberalismo no filme foi a exploração. Essa ideia foi muito bem representada usando os povos quíchua para encenar os nativos do XV. Houve uma serie de acontecimentos similares nos desdobramentos, mas distantes temporalmente. De início, a própria forma com que a equipe de filmagem se relacionou com os bolivianos deixou a exploração em nome do lucro evidente. A cena mais marcante disso, logo nos primeiros minutos de filme foi quando os bolivianos levantam uma cruz com mais de 7 metros correndo riscos sérios de vida. Risco esse que é reconhecido pelo diretor Sebastián, mas que é justificado por Costa com o argumento de que era uma economia de “trinta e cinco mil”. Essa situação é indiretamente um reflexo das medidas neoliberais que, como afirma Santos (s/d), puxam os salários para baixo. Mais adiante esse reflexo indireto se torna bem direto numa conversa de Costa ao telefone, em que ele fala sobre a felicidade dos bolivianos em receber apenas dois dólares por dia e como isso é benéfico para a produtora.

A questão dos salários baixos foi retomada em outra cena que resume a cosmologia neoliberal: durante a ocupação da praça pelos cidadãos indignados com a privatização da água, a equipe de filmagem travou um curto debate com um político boliviano sobre a razão – ou ausência dela – na invasão na praça. De um lado os membros da equipe afirmam que as pessoas estavam certas em resistir ao aumento da tarifa, pois recebiam apenas dois dólares por dia. A resposta do político foi em defesa da globalização, afirmando que o “vitimismo” daquelas pessoas impedia a modernização, que se o governo cedesse apenas 1 centímetro, os indígenas provavelmente os levariam “de volta à idade da pedra” e que o salário de dois dólares era o mesmo salário pago pela produtora.

Observemos ponto a ponto da resposta do político tendo por prisma o texto de Santos (s/d). Primeiramente, a ideia de “retornar à idade da pedra” retoma uma dualidade antiga entre civilização e barbárie, onde a elite letrada – aqui representada pelo político – justificou um suposto atraso em relação a “evolução rápida” do mundo de prevalência de valores culturais ocidentais pela presença cultural, social e étnica majoritariamente não-europeia. Isso é reforçado pela afirmação de “vitimismo”, que escancara a dicotomia entre o moderno e o arcaico, entre o urbano e o rural, entre o progresso e o atraso que imperou desde a colonização, obscurecendo o protagonismo das etnias não-europeias. Se atentarmos para alguns minutos antes desse debate entre a equipe e o produtor, ouviremos um agradecimento pela produção de um filme sobre Las Casas e não sobre os nativos americanos que passaram pelo processo de subjugação. Essa é uma armadilha comum na qual muitos de nós caímos ainda hoje: contar uma história sobre um suposto defensor de boas práticas, a frente de seu tempo e não dos oprimidos.

Outro ponto interessante da fala do político foi o de “não recuar 1 centímetro”, relembrando a “Teoria do Choque” empregada no processo de implantação neoliberal que tinha por método a imposição de um "ajuste estrutural" aos países dependentes, que assistiam a uma elevação da taxa de juro internacional, sugando os excedentes econômicos do país atingido, e resultando em estagnação e retrocesso econômico-social. O que retoma a questão inicial dos dois dólares, pois um dos efeitos diretos desse ajuste é a rebaixa brutal dos níveis salariais e da participação dos salários nas rendas nacionais, abrindo precedentes para a marginalização social, a pobreza e a indigência (SANTOS, s/d).

Saindo do debate econômico, gostaria de encerrar comentando sobre as cenas em que os bolivianos, com uma caracterização que se constituiu estereótipo de indígena ao longo do tempo resistem a empreitada policial contra Daniel, uma liderança tanto no enredo do filme, quanto na luta contra a privatização, sendo ele um sobrevivente, o real “homem contra o império” do qual Costa falou para animar Sebastian a sair da cama. Além disso, me chama atenção o uso dos cachorros nas filmagens, o que é fiel aos relatos históricos, e posteriormente o uso dos mesmos animais pela força policial na contenção de manifestantes. Os anos passam, mas as armas – físicas e subjetivas – continuam as mesmas.

 

Referência bibliográfica

SANTOS, Teotônio. O desenvolvimento latino-americano: passado, presente e futuro. Uma homenagem a André Gunder Frank. s/d.

Resenha de “Sin nombre” (Diretor: Cary Fukunaga)

 

"Sin Nombre" é um filme sensível às adversidades que as pessoas enfrentam para chegar ao norte global. A questão da imigração ilegal é central. As pessoas que se submetem a esse processo colocam suas vidas em risco por semanas ou meses em busca do fictício "sonho americano". O filme narra duas histórias. Uma envolve Sayra, uma jovem hondurenha que se junta ao pai e ao tio em uma viagem pela Guatemala e pelo México com o objetivo de encontrar parentes em Nova Jersey. O outro envolve Willy, apelidado de Casper, um jovem membro de uma gangue do México, que se junta a seu líder e a um recruta de 12 anos para roubar os imigrantes no topo de vagões de carga. Seus caminhos se cruzam. As motivações são diferentes.  A história de Sayra é “clássica”: ela e seus parentes são motivados pela busca por melhores condições de vida em Nova Jersey. Casper, por outro lado, viaja depois de ter matado o líder de sua gangue, fato pelo qual sabe que morrerá. Casper cria um vínculo com Sayra após tê-la salvado de um estupro. O problema dessa união é que ele é um homem condenado, ninguém o protegerá das gangues.

A união dos dois demonstra o quanto as migrações modernas estão fortemente ligadas com a racialização, o colonialismo, a expansão do capitalismo e as decorrentes estruturas de dominação e, principalmente, desigualdades sociais. Além de jogar luz sobre o espectro amplo de fatores que podem levar a migração: trabalho, trânsito, união familiar, causas ambientais, aposentadoria, estudo, aspectos afetivos, gênero, conflitos e guerras (o fator mais latente no filme), entre outros. Devendo ser interpretada sob o prisma de múltiplos aspectos que se conectam, sendo eles o: social, cultural, histórico, geográfico, econômico, entre outros (CAVALCANTI et.al, 2017).

De uma forma ou de outra, ambos acabam caindo na ilusão do "sonho americano". O sonho é chegar aos Estados Unidos. O pesadelo é fazer a jornada para chegar lá. As circunstâncias nas quais os protagonistas se encontravam não eram muito promissoras e Nova Jersey e o Texas acabam representando como um paraíso para onde os protagonistas podem fugir. O filme é sobre a imigração ilegal, porém quase nada de seu tempo de execução acontece dentro das fronteiras dos Estados Unidos. O foco central são os fatores que fazem com que alguns indivíduos corram o risco de encarceramento, deportação – no caso do tio de Sayra – e até a morte – como se sucedeu com o pai da protagonista -  por uma chance de cruzar a fronteira e escapar dos ciclos de pobreza, impotência e violência de gangues, reforçando o papel das consequências da expansão do capitalismo nas migrações.

No caminho as personagens encontram vários locais de apoio aos imigrantes, organizações privadas e instituições voluntárias tornam o projeto migratório um pouco mais fácil. São instituições e organizações que ocuparam o espaço no mercado criado pelo desequilíbrio entre o número de pessoas que pretendem entrar nos países ricos e o número de vistos concedidos para entrada neles, atuando até mesmo no mercado ilegal, promovendo serviços de transporte – como o caso da “tia” de Casper – ou travessia de fronteira além de trabalho para imigrantes sem identidade, falsificação de documentos, casamentos por conveniência, entre outros. Há também instituições voluntárias – como é o caso da Casa de Caridade gerida por freiras no longa – que fornecem orientações, serviços de assistência básica e assessoramento jurídico. Com o tempo e o número de imigrantes que obtém sucesso na viagem, essas entidades vão se tornando mais conhecidas e “tornam-se suportes fundamentais que viabilizam os projetos migratórios, dando origem à concepção de indústria migratória” (CAVALCANTI et.al, 2017).

Há também que se falar da pessoa que espera os imigrantes no fim de sua jornada. A pessoa de quem a protagonista é obrigada a decorar o número de telefone na primeira metade do longa. Ela é a representação das redes migratórias em que as pessoas se apoiam para ganhar acesso a recursos e diminuir possíveis riscos econômicos, sociais e psicológicos do processo migratório, estremecendo as bases individualistas da ideologia capitalista (CAVALCANTI et.al, 2017).

É impossível deixar de citar o pequeno Smiley, com seu sorriso cativante, é o personagem mais assustador, por demonstrar como um efeito poderoso, mesmo hipnótico, a cultura de gangue pode ter sobre os desassistidos. A seus olhos, o Mago – líder da gangue assassinado por Casper no trem – é ​​uma inspiração. A gangue oferece status de colega e ocupa o papel de prestadora de serviços sociais que deveria ser do estado. Para oprimidos e marginalizados, a participação na gangue oferece a oportunidade de ser respeitado mesmo que por meio do medo e da intimidação.

 

Referência

CAVALCANTI, Leonardo, et.al., Dicionário crítico de migrações internacionais. Ed. UnB. Brasília. 2017. (Introdução - Um convite às teorias e conceitos sobre migrações internacionais / Verbetes: Imigrante (imigração) e Indústria das migrações).

 

 

 

Resenha de “Memoria del Saqueo” (Dir. Pino Solanas)

 

“Memoria del Saqueo” (2004) é um documentário sobre a história argentina recente que demonstra como um país rico ruiu, abrindo um enorme fosse entre ricos e pobres, elevando as taxas de desemprego, miséria e indigência, propiciando um verdadeiro genocídio social. O longa passa pelos governos de Raul Alfonsín (1983-1989), Carlos Saul Menem (1989-1999), e termina com Fernando De la Rúa (1999-2001).

O contexto econômico era de desequilíbrio, pois, na década de 80, com a apreciação do valor do dólar, as exportações de matérias primas acabaram entrando em colapso, resultando numa contração dos mercados exportadores. O antigo motor da economia já não funcionava tão bem (MARTÍNEZ RANGEL & SOTO REYES,2012). Surge nesse momento o “reformismo” do Consenso de Washington, pregando a abertura dos mercados, austeridade fiscal, privatizações e encolhimento do estado, tópicos bem marcados pelo documentário (BORÓN, 2004).

Apesar de muitas promessas, as conquistas foram poucas e nem são apresentadas no filme, até porque as consequências da adoção das medidas neoliberais invalidam qualquer avanço possível. O povo argentino foi afogado numa onda de pobreza, indigência e exclusão social, se tornando cava vez mais vulnerável e dependente (BORÓN, 2004). Mesmo com a reação dos argentinos, saindo as ruas, a violência, em diferentes formas, tomou conta do país. Fosse ela direta, praticada pelos militares responsáveis por dispersar as manifestações, fosse pelas mentiras proferidas pela classe política viciada, aliada das grandes corporações; fosse ainda a violência silenciosa dos ajustes que matava de fome 35 mil crianças, adultos e idosos por ano. 

Assim se fundou uma “mafiocracia” na qual o poder econômico, a justiça e os narcotraficantes aplaudiam a espetacularização da política, assistindo a republica ser degradada em ritmo acelerado. A dita “destruição criadora” só cumpriu a primeira promessa, vendendo estatais e sucateando as estruturas já existentes; e os governantes já não se preocupavam mais em combater a pobreza, a ideia era combater os pobres, com mais e mais ajustes, confiscos e corrupção (BORÓN, 2004). A esse tempo, o Consenso de Washington já havia se convertido numa ideologia para além de propostas econômicas, se tornando uma ferramenta de controle do estado financiada por megacorporações da qual os países latinos necessitavam para conquistar a aprovação dos organismos internacionais (MARTÍNEZ RANGEL & SOTO REYES,2012).

O filme encerra com a saída de Fernando De la Rúa do poder. Apesar da vitória temporária da população argentina, em 2001, até hoje (2020) é latente a necessidade de projetos de esquerda inovadores que presem pela democracia – e, por consequência, por menos capitalismo – e pela integração regional, garantindo aos latinos melhores condições de vida, fortalecendo as empresas locais para uma competição em igualdade de circunstancias com as outras partes do globo (BORÓN, 2004; MARTÍNEZ RANGEL & SOTO REYES,2012).

 

Referências bibliográficas

MARTÍNEZ RANGEL, Rubí; SOTO REYES, Garmendia Ernesto.  El Consenso de Washington: la instauración de las políticas neoliberales en América Latina. Revista Política y Cultura, primavera 2012, núm. 37, pp. 35-64.

BORÓN, Atílio. Introdución: Después del saqueo: El capitalismo latino-americano a comienzos del neuvo siglo.  In: Estado, capitalismo y democracia em América Latina. CLACSO, Junio de 2004. 

 

 

Resenha de “Amores Perros” (Dir. Alejandro González Iñárritu)

 

É assustador imaginar que em pleno século XXI ainda haja espaço no debate acadêmico para teorias em que o social aparece como biológico para explicar desigualdades de renda e desenvolvimento educacional através da composição genética de cada pessoa, invocando raças “superiores” e “inferiores” (NAVARRO, 2013). É assustador, porém aconteceu – e acontece – como nos revela o pequeno texto de Navarro (2013), em que ficou exposto um estudo de Harvard, claramente racista, cheio de inconsistências metodológicas que defendia uma falsa uniformidade genética para explicar a pobreza latino-americana. Essa falácia poderia ser desconstruída de muitas formas, porém, façamos desse momento algo proveitoso, nos debruçando sobre o filme “Amores Perros” (2000), dirigido por Alejandro González Iñárritu.

O longa agregou três histórias diferentes envolvendo traição, violências, diferentes classes sociais e cachorros. Não existiam heróis ou vilões, eram pessoas normais sofrendo com as consequências das escolhas que faziam, demonstrando que independente de genética, no fim são nossas escolhas que realmente importam. Escolher tentar seduzir a esposa do irmão, escolher abandonar a mulher e filhas para se casar novamente, escolher matar, escolher cuidar, escolher ajudar, penosamente escolher.

Escolhas limitadas por classes sociais, obviamente. E a melhor demonstração dessas limitações impostas por classes são os cachorros: na primeira parte, intitulada Octavio y Susana, os cachorros são amados como método de fazer dinheiro. Os animais são colocados para brigar em rinhas sangrentas. São reflexo da violência que os donos sofriam cotidianamente, apertados em casas pequenas, sem empregos de qualidade, preocupados com o bem estar de crianças, vivenciando abusos, em suma, desassistidos. Na segunda parte, o casal Daniel e Valeria, empresário e modelo, enchem o cachorro de mimos, porque eles não precisam fazer dinheiro com o cachorro, e mesmo assim, acabam enfiando o cachorro num buraco (literal e metaforicamente).

A terceira história é diferente das demais: o Chivo, um caminhante que cuidava de inúmeros cachorros, estava numa jornada de redenção. Ele é a demonstração pura e simples de que a vida, pra muito além de expressões do genótipo, é feita de escolhas: ele escolheu abandonar a família e o emprego, escolheu acreditar em um mundo melhor, escolheu lutar contra as limitações que lhe foram impostas depois da prisão – por métodos violentos, mas como julga-lo nas condições que o cercava? – e, diferentemente das outras duas histórias em que as escolhas caminharam pra dor e morte, a caminhada de vida de Chivo é ascendente, encaixotando o argumento do estudo de Harvard.

 

Referências

NAVARRO, Vicenç, Las teorias geneticistas de las desigualdades, Público, 15 de agosto de 2013.

 

 

Resenha de “A missão” (Dir. Roland Joffé)

 Retratando o período pombalino, o filme “A missão” (1986) conseguiu transmitir em cerca de 120 minutos parte dos conflitos sociais e contradições políticas da América nos séculos de colonização.  A partir das reflexões de Quijano (2004), essa resenha objetivou se debruçar sobre o longa com um olhar atendo aos absurdos que marcaram a história do “Novo Mundo”. O filme acompanha os dias de um padre jesuíta Gabriel na Missão de São Carlos com indígenas Guarani. O conflito inicial surgiu no encontro do padre com um comerciante de escravos Rodrigo Mendoza, que capturou alguns nativos na região da missão, o que era proibido pelas leis espanholas. Esse mesmo comerciante, pouco depois, acabou cometendo um crime passional e, numa jornada de redenção, passou a acompanhar o padre jesuíta na missão com os Guarani. O contexto político era de instabilidade, pois o território estava sendo redividido entre Portugal e Espanha. Portugal tinha interesse no trabalho escravo dos indígenas. E quando o território em que a missão estava localizada passou a ser de Portugal, os nativos entram em guerra com os agentes da coroa, terminando em um banho de sangue.

A violência no processo de conquista não é uma novidade. Mas, como bem aponta Quijano (2004) e como o filme deixou subentendido, a maior ameaça aos povos nativos era a escravização. Essa afirmação é reforçada pelo trecho em que um dos representantes de Pombal afirmou que os nativos não eram humanos, pois assassinavam os seus filhos. O padre jesuíta retrucou afirmando que matavam como estratégia de sobrevivência, pois só poderiam carregar um filho durante as fugas que tinham de empreender com a aproximação de mercenários e representantes das coroas.

Essa passagem do filme é muito significativa não só pela citação do infanticídio – que ainda é retomada em narrativas contemporâneas para justificar intervenção no modo de vida dos povos ancestrais -, mas por dois outros fatores que marcam o período colonial e estão presentes no texto de Quijano (2004). O primeiro deles é a questão “do corpo”. O indígena é apontado pelo representante de Portugal como um “animal com voz humana”, em outras palavras, um corpo desprovido de razão e que, justamente por isso, pode ser caçado, escravizado e morto. Um corpo sem espírito, entregue aos anseios puramente naturais, que “desconhece o direito de propriedade e a lei real”. Essa dualidade entre espírito e natureza é a segunda questão significativa que não se pode deixar de apontar.

O nativo é menos humano ou não é humano enquanto está na “natureza” (aqui como sinônimo de meio ambiente, mas que também pode aparecer como “estado de natureza”), o que é reforçado mais a frente no filme com falas dos próprios nativos: “O diabo vive na floresta” ou “Saímos da floresta por vontade de Deus”. Essa dualidade foi marcante no discurso moderno, onde a ideia de uma “civilização” - europeia e branca - só tinha sentido com a sua oposição à vida com a mata de pé. Ser civilizado era sinônimo de “domar” o meio ambiente. Essa cosmologia serviu de embasamento para as atrocidades cometidas pelos colonos, como bem indicou a própria autoridade portuguesa enviada para avaliar a transferência de terras, quando, ao falar do massacre final, afirmou: “O mundo não é assim... nós o fizemos assim”.

Entretanto, há que se pensar também que essa oposição entre civilização e natureza não é válida a todo momento no discurso do colonizador. A mesma natureza alheia a razão, é espaço de contemplação, descrito como "jardim do Éden", onde havia "contado mais próximo com Deus". Isso revela mais contradições entre as ideias dos colonos, que, como dito por Quijano (2004), não tinham muitos interesses comuns, longe de serem um bloco monolítico. Não caiamos também na armadilha de reduzir os povos indígenas a um único bloco homogêneo. São diversos povos com cosmologias diferentes, como pôde ser apreciado no filme, durante a guerra final: os portugueses tinham como aliados alguns nativos que atearam fogo a missão que os Guarani tentavam defender. Podemos ir mais fundo, identificando entre os próprios defensores da missão aqueles que pegaram em armas e foram combater os colonos e aqueles que se juntaram na resistência passiva, que nos enche os olhos numa cena belíssima de uma procissão durante a guerra.

Encerro com um último comentário sobre as missões e os jesuítas, que podem parecer heróis momentaneamente, por exemplo, no momento em que o padre afirmou que as missões eram o último refúgio dos nativos. Não sejamos ingênuos a ponto de deixar de reconhecer a violência implícita na evangelização, pois o controle sobre a subjetividade, a cultura e o conhecimento foi, e ainda é, uma das principais formas de dominação.

 

Referência bibliográfica

QUIJANO, Aníbal. Colonialidad del poder, eurocentrismo y América Latina. Revista Venezolana de Economia y Ciencias Sociales. Enero/abril, Año/Vol.10, Número 001. Universidad Central de Venezuela. Caracas, Venezuela, 2004, pp. 7

segunda-feira, 16 de novembro de 2020

Por uma história do fogo no cerrado

FONTE ORIGINAL: SOUSA, Francisco Octávio Bittencourt de. Por uma história do fogo no cerrado.II Simpósio do Cerrado: manejo, conservação e educação ambiental. Universidade Federal de São Carlos. 2020. Disponível em: https://sgasproex.wixsite.com/website/post/resumos-sem-apresenta%C3%A7%C3%A3o-oral. Consultado em setembro de 2020.

Tema: Manejo.

Resumo: O fogo é um fator ambiental determinante e necessário para a manutenção do equilíbrio biológico no cerrado (ALVES & SILVA, 2011). Anos antes de Warming (1908), as queimadas já eram discutidas por diferentes perspectivas. No século XIX, destacam-se duas: tradicionalismo lento e modernização inovadora. O tradicionalismo lento, que insistia em manter as mesmas técnicas “rudimentares” de relações ecológicas. Já a vertente de modernização inovadora almejava alcançar o progresso da nação pelo uso racional dos recursos disponíveis (WILCOX, 2017). Pela análise comparativa das duas vertentes, partindo dos relatos dos viajantes do século XIX, pretendo demonstrar que essa divisão ignora alguns fatos do cotidiano dos camponeses pobres no século XIX. Pelo prisma da História Ambiental, o objetivo é encontrar sensibilidades ambientais específicas dos oitocentos e jogar luz sobre parte da história desses camponeses e a sua relação com o fogo.

Os adeptos da vertente da modernização inovadora eram membros da elite imperial: viajantes, militares, acadêmicos e presidentes de província. Servem de exemplo: Augustin François Saint-Hilaire (1779-1853), Johann Baptist Emanuel Poh (1782-1834), José Vieira Couto de Magalhães (1837-1898), João Barbosa Rodrigues (1842-1909), Alfred Maria Adriano d'Escragnolle Taunay (1843-1899). O denominador comum desse grupo era a crença nas vantagens econômicas das produções naturais para o progresso da humanidade e em uma ligação entre a ideia de civilização e exploração racional da natureza. Se soma a essas crenças a ideia de que a decadência das províncias do cerrado era causada, em parte, pela “ausência de ímpeto capitalista”, “preguiça”, “moleza” e outras palavras utilizadas para designar as práticas de camponeses pobres, adeptos da vertente do “tradicionalismo lento” (SOUZA, 2013; WILCOX, 2017).

Os camponeses operavam, majoritariamente, a agropecuária itinerante de queimadas, entendidas pelos adeptos da vertente modernizadora como um manejo “destrutivo e preguiçoso”. Esses camponeses, adeptos da vertente tradicionalista, eram sobreviventes do “desenvolvimento” da indústria da mineração, que enriqueceu alguns poucos habitantes da província e levou à morte escravizados, indígenas e trabalhadores pobres. A sociedade na qual viviam, dispersa pelo território, tinha por característica marcante a itinerância, pobreza e a carestia, motivadas pela escassez alimentar e insalubridade sanitária (SOUZA, 2013; WILCOX, 2017; MCCREERY, 2006).

E quem tinha razão? Comecemos pelos argumentos da vertente da modernização inovadora no século XIX, crítica às queimadas: Saint-Hilaire escreveu sobre a necessidade de se abandonar as “técnicas rudimentares” na forma de manejo para cultivo; Pohl reclamou da impossibilidade de coletar plantas para estudo em razão das queimadas; Barbosa Rodrigues sugeriu, em 1896, que os campos secaram por causa do gado e queimadas indiscriminadas; Taunay atribuiu à queima descontrolada a propagação de gramíneas resistentes ao fogo no oeste de São Paulo, no Triângulo Mineiro, no oeste de Goiás e leste de Mato Grosso. Como efeitos do uso do fogo a longo prazo podemos listar ainda: (1) o consumo do nitrogênio do solo; (2) o solo se torna pobre em minerais, sem húmus e duro, acarretando em erosão; (3) o estimulo ao crescimento de gramíneas invasoras, mais resistentes ao fogo; (4) a expulsão de espécies que habitavam a região, expondo muitos animais de pequeno porte a predação; (5) a atração de insetos nocivos, a exemplo dos cupins; e (6) a viabilização das condições para parasitas (SAINT-HILAIRE, 1976; POHL, 1976; SANTANA, 2014; WILCOX, 2017). Pode-se acrescentar ainda: morte da copa, limitando o tamanho das árvores; redução da produção de sementes; e o favorecimento de espécies herbáceas em detrimento das espécies arbóreas (SILVA et al., 2011). É possível concluir a partir desses relatos que, mesmo antes de Warming (1908), já havia uma sistematização sobre queimadas no cerrado compondo a sensibilidade ambiental dos oitocentistas (ALVES & SILVA, 2011).

Para os adeptos da vertente tradicionalista, a queima foi um método rápido e econômico para (1) renovar gramíneas velhas e grossas; (2) deixar uma camada de cinzas rica em minerais (cálcio, magnésio e potássio); (3) matar parasitas e insetos; (4) formar clareiras de proteção contra incêndios acidentais; e (5) atrair animais para uma área que, de outra forma, seria evitada por causa de gramíneas disponíveis (WILCOX, 2017). Estudos recentes reforçam que o fogo pode atuar na deposição de cinzas, redução da acidez, disponibilização de nutrientes e elevação da temperatura do solo (SILVA et al., 2011).

O contexto político-econômico da região no XIX corroborou para continuidade das práticas enquadradas na vertente do tradicionalismo lento, pois os camponeses não tinham perspectiva de posse da terra e transporte e comunicação eram precários. O baixo valor das terras desestimulava a fixação em um mesmo local. O crédito rural era escasso, e, combinado aos altos impostos, inviabilizava a competição das propriedades do cerrado com fazendas de outras áreas do Brasil. E há ainda que levar em consideração as condições ambientais: os rios caudalosos e encachoeirados dificultavam a navegação; a aridez e pobreza de alguns pontos do cerrado tornavam o cultivo mais difícil; os campos alagadiços e as cidades baixas acabavam por estimular a proliferação de doenças; a vegetação ocultava animais selvagens; e, no período de chuvas, as cheias dos rios deixavam muitas estradas intransitáveis (MCCREERY, 2006; SOUZA, 2013; WILCOX, 2017).

Rodolpho Endlich (1903) não considerou o fogo uma prática destrutiva, pois a mata – de árvores adaptadas ao cerrado - não era destruída. Para o autor, o manejo com fogo deveria ser empregado em todo o Brasil, com a finalidade de renovar as gramíneas de forma econômica e eliminar parasitas. Todavia, a queima deveria ser controlada e adotada em paralelo à rotação de pastagens. Estudos da última década corroboram com parte do argumento de Endlich, na defesa de um regime que misture blocos de queimadas prescritas combinados com queimadas naturais, e combate a incêndios antrópicos na estação seca, para o cerrado e não para todo o país (SILVA et al., 2011). Todavia, isso carecia de maiores gastos e trabalho adicional, que simplesmente fugiam do orçamento camponeses do oitocentos, especialmente os mais pobres, com espaço limitado (WILCOX, 2017).

Desse modo, no século XIX, o manejo com fogo possibilitou aos camponeses a superação de condições políticas e ambientais desfavoráveis e a falta de recursos (mão de obra e equipamentos mais sofisticados que não podiam ser comprados pelos camponeses). Tendo como resultado um bom uso dos recursos abundantes na região (terra). Além disso, a escala da degradação gerada pelas queimadas apresentava efeitos mais teóricos que práticos a curto prazo. E a longo prazo, o método de manejo itinerante era inviável, pois a pressão para a delimitação das propriedades aumentava com o decorrer do tempo, diminuindo a mobilidade da agricultura e o espaço para a pecuária extensiva. É importante ressaltar ainda, como afirmou Silva et al. (2011), que, mesmo sem manejo, os incêndios ocorreriam no cerrado. Não houve nenhuma perspectiva completamente correta. A vertente inovadora ignorou a realidade da vida cotidiana dos pobres e pregou a abolição das queimadas, elemento de equilíbrio no cerrado. Os camponeses aderiram a práticas de manejo com fogo sem o devido controle. Nesse sentido, pensar as queimadas no cerrado ao longo do século XIX é pensar em como meio ambiente, políticas públicas e populações se condicionaram mutuamente.

 

Palavras-chave: cerrado, manejo com fogo, modernização inovadora, tradicionalismo lento, camponeses pobres.

 

Referências bibliográficas

ALVES, Ruy José Válka; SILVA, Nílber Gonçalves. O fogo é sempre um vilão nos campos rupestres? Biodiversidade Brasileira, Brasília, v. 2, p. 120-127, 2011. Disponível em: https://revistaeletronica.icmbio.gov.br/index.php/BioBR/issue/view/15. Acesso em: 02 set. 2020.

Endlich, Rodolpho. A criação do gado vaccum nas partes interiores da America do Sul. Boletim da Agricultura 3: 12 (1902): 740-746, 810-821.

MCCREERY, David. Frontier Goiás, 1822-1889. Stanford, Califórnia, Stanford University Press, 2006.

MORAN, Emilio Frederico. Meio ambiente e ciências sociais: interações homem-ambiente e sustentabilidade. São Paulo: Senac, 2011.

POHL, Johann Emanuel. Viagem no interior do Brasil. Belo Horizonte/São Paulo: Itatiaia/Edusp, 1976.

SAINT-HILAIRE, Auguste de. Viagem à Província de Goiás. Belo Horizonte/São Paulo: Itatiaia/Edusp, 1976.

SANTANA, Raimundo Nonato Ribeiro. História e Natureza: mudanças ambientais no norte de goiás em relatos de cronistas e viajantes naturalistas no século xix.

SILVA, Danilo Muniz et al. Os efeitos dos regimes de fogo sobre a vegetação de Cerrado no Parque Nacional das Emas, GO: considerações para a conservação da diversidade. Biodiversidade Brasileira, Brasília, v. 2, p. 26-39, 2011. Disponível em: https://revistaeletronica.icmbio.gov.br/index.php/BioBR/issue/view/15. Acesso em: 02 set. 2020.

SOUZA, Fabíula Sevilha de. Rios e Terras: história ambiental de Goiás (1822-1850). 216 f. Tese (Doutorado) - Curso de História, Universidade Estadual Paulista, Assis, 2013.

Warming E. 1908, Lagoa Santa. Contribuição para a Geographia Phytobiológica. Tradução de E. Löfgren. Imprensa Official do estado de Minas Geraes, Bello Horizonte. Reprint 1973.

WILCOX, Robert W.. Cattle in the Backlands: Mato Grosso and the evolution of ranching in the brazilian tropics. Austin: University Of Texas Press, 2017.

FONTE ORIGINAL: SOUSA, Francisco Octávio Bittencourt de. Por uma história do fogo no cerrado.II Simpósio do Cerrado: manejo, conservação e educação ambiental. Universidade Federal de São Carlos. 2020. Disponível em: https://sgasproex.wixsite.com/website/post/resumos-sem-apresenta%C3%A7%C3%A3o-oral. Consultado em setembro de 2020.

 

Filme “O Garoto Selvagem”

 

Muitos conceitos presentes neste filme serão analisados diante do estudo do sujeito histórico cultural em Lev Vygotsky. Para este momento, após assistir ao filme, reflita e considere os seguintes tópicos:

 

1.            Liste 4 estratégias positivas utilizadas pelo Prof. Jean Itard que contribuíram para o desenvolvimento de Victor de Aveyron, o Garoto Selvagem;

Quanto as estratégias utilizadas pelo Prof. Jean Itard que contribuíram para o desenvolvimento de Victor de Aveyron, o Garoto Selvagem, creio que, para além das questões mais básicas (higiene, sono e alimentação), o atendimento individual às carências específicas do garoto, o próprio gesto de dar um nome (demonstração de carinho e criação de vínculo afetivo), os vários métodos diferentes de tentar ensinar algo (seja pelo alfabeto, seja pelos desenhos), e a ideia de recompensar o aprendizado (o problema desse ponto é o Prof. Jean Itard acaba condicionando todos os momentos de prazer e lazer de Victor ao sucesso nos estudos).

 

2.            Considerando que estratégias de ensino-aprendizagem são técnicas que utilizam diferentes meios para que os alunos se apropriem de novos conhecimentos, liste 4 delas que ao seu ver poderiam contribuir ainda mais para o desenvolvimento de Victor e justifique.

Uma coisa que me incomodou muito no filme foi o fato de o Prof. Jean Itard simplesmente ignorar todo o conhecimento, mesmo que não falado, de Victor sobre o meio natural. Ora, ensiná-lo a partir da vivência que o garoto teve, ensiná-lo em contato com a natureza, poderia ter uma eficácia muito maior. É possível que, aplicando esse ensino a partir das experiências particulares, outras medidas fariam com que Victor se sentisse mais incentivo a aprender de forma independente, ou seja, uma outra estratégia de ensino-aprendizagem que seja orientada pela curiosidade do aluno.

Há no filme um momento em que Victor mora junto a outras crianças. Por mais traumática que essa primeira experiência tenha sido, é provável que o contato com semelhantes (crianças) pudesse auxiliar no processo de aprendizagem, a questão é que esse contato teria que se submeter a uma vigorosa vigilância, posto a primeira experiência do garoto. Fato é que compartilhar as descobertas pode ser enriquecedor.

Por fim, há algo simples, algo que fez a diferença na minha infância e adolescência: a contação de histórias. O Prof. Itard poderia adotar essa estratégia para estimular a imaginação de Victor, além de fazer com que, com o tempo, Victor consiga contar a sua história de vida na floresta.

 

 

 

 

 

 

Resumo de Papália & Feldman, 2013, pp. 36 a 53

 

Dentre as muitas áreas do conhecimento há uma que se interessa pelo processo de transformação dos seres humanos durante toda a vida. A partir da análise “dos processos sistemáticos de mudança e estabilidade que ocorrem nas pessoas” esse campo de conhecimento, em constante atualização, tenta auxiliar as pessoas na “criação, educação e saúde das crianças, e também nas diretrizes sociais em relação a elas” e, para os adolescentes e adultos, nas diferentes formas de “entender e lidar com as transições da vida”. Dessa forma, é uma área de pesquisa, bem como o próprio objeto – o desenvolvimento humano - que compreende toda a vida.

Dentro desse objeto, os desenvolvimentistas dedicam especial atenção aos aspectos inter-relacionados: físico, cognitivo e psicossocial. Podem ser mapeados por divisões do ciclo da vida, apesar dessas divisões variarem de sociedade para sociedade. A divisão mais aceita nas sociedades industriais ocidentais segue uma sequencia de oito períodos, a mesma divisão presente no livro. Esse mapeamento não é extremamente rígido, mas é consentido entre “(...) os cientistas do desenvolvimento sugerem que certas necessidades básicas precisam ser satisfeitas e certas tarefas precisam ser dominadas para que ocorra um desenvolvimento normal”. Ou seja, o tempo também é uma variável da extensa equação do desenvolvimento humano.

Além dos aspectos inter-relacionados e do tempo, outros fatores também influenciam no desenvolvimento, como as características herdadas dos pais, o ambiente em que o grupo ou indivíduo estudado se encontra, a maturação do corpo e do cérebro, a renda, a vizinhança, os entes familiares que dividem a moradia, o contexto social e histórico, o grupo étnico, costumes e crenças, entre muitos e muitos outros. Fato é “(...) nos processos a que todas as pessoas estão submetidas, os ritmos e os momentos do desenvolvimento variam”.

Houve um tempo em que esses fatores eram ignorados e dava-se uma ênfase na questão racial, forma de se pensar que hoje já não é mais aceita. Hoje é consenso que

(...)muitos aspectos do desenvolvimento, mesmo no domínio físico, mostraram plasticidade, ou desempenho passível de modificação, talvez seja mais útil pensar em termos de períodos sensíveis, quando uma pessoa em desenvolvimento é especialmente receptiva a certos tipos de experiências (Bruer, 2001). São cada vez maiores as evidências de que a plasticidade não é apenas uma característica geral do desenvolvimento que se aplica a todos os membros de uma espécie, mas que também há diferenças individuais na plasticidade de respostas aos eventos do ambiente.

 

Além da (1)plasticidade, “Paul B. Baltes (1936-2006) e seus colegas (1987; Baltes e Smith, 2004; Baltes, Lindenberger e Staudinger, 1998; Staudinger e Bluck, 2001)” identificaram outros seis  “princípios básicos na abordagem ou teoria do desenvolvimento do ciclo de vida”, sendo eles – não necessariamente nessa ordem: (2) o desenvolvimento é vitalício, (3) o desenvolvimento é multidimensional, (4) o desenvolvimento é multidirecional, (5) as influências relativas da biologia e da cultura se alteram durante o ciclo de vida, (6) o desenvolvimento envolve mudança de alocação de recursos, e (7) o desenvolvimento é influenciado pelo contexto histórico e cultural.

 

Referências bibliográficas:

Papalia, D. E., Olds, S. W., & Feldman, R. D. (2013). Desenvolvimento humano. 13ª ed. Porto Alegre: AMGH. 

 

Breve apresentação de transtornos de aprendizagem: dislexia, disortografia, discalculia e TDAH

 

·         Dislexia: de acordo com National Institute of Child Health and Human Development – NICHD, trata-se de um transtorno específico de aprendizagem de origem neurobiológica, caracterizada por dificuldade no reconhecimento preciso e/ou fluente da palavra, na habilidade de decodificação e em soletração. Não tem cura, mas pode ser superada com tratamento com fonoaudiólogo e psicólogo que permita criar estratégias para superar as dificuldades com as palavras e outras eventuais barreiras no dia a dia, além de crises de autoestima. Na escola, o aconselhável é estimular a criança a desenhar, pintar, tocar instrumentos musicais e praticar esportes.

 

·         Disortografia: de acordo com o Instituto de Apoio e Desenvolvimento (ITAD), disortografia é uma perturbação específica de aprendizagem, de origem neurobiológica que afeta as capacidades da expressão escrita, em particular a precisão ortográfica, a organização, estruturação e composição de textos escritos, a construção frásica é pobre e por norma curta e observa-se ainda a presença de muitos erros ortográficos. Para permitir a superação dos das dificuldades trazidas pela disortografia é preciso que haja um complemento educacional que englobem a percepção auditiva, visual e espaço-temporal, a memória visual e auditiva. Na escola, os exercícios devem buscar o reconhecimento de formas gráficas; identificação de erros; distinção de direita/esquerda, cima/baixo, frente/trás; consciencialização do fonema isolado, em sílaba e soletração; análise de frases; substituição de um fonema por outro na sílaba e palavra.

 

·         Discalculia: de acordo com o Instituto ABCD, é um transtorno específico de aprendizagem em que a pessoa apresenta um desempenho matemático significativamente abaixo do esperado considerando-se a sua idade cronológica, experiências e oportunidades educacionais. O Instituto Inclusão Brasil recomenta que o tratamento seja acompanhado por um psicopedagogo, focalizando os níveis orgânicos, educacionais e psicológicos, atendendo a a criança com discalculia nas suas especificidades para possibilitar a passagem a um novo desenvolvimento nas suas práticas educacionais multidisciplinares, com menos dificuldades, com um maior desempenho escolar, conforto e acima de tudo proporcionar uma vida cada vez mais próxima da normalidade.

 

·         TDAH: de acordo com a Associação Brasileira do Déficit de Atenção (ABDA), TDAH ou DDA é um transtorno neurobiológico, de causas genéticas, que aparece na infância e frequentemente acompanha o indivíduo por toda a sua vida. Ele se caracteriza por sintomas de desatenção, inquietude e impulsividade. As crianças portadoras de TDAH não se adaptam bem a instituições de ensino muito tradicionais e que tenham um código disciplinar muito rígido. Para conquistar a atenção do aluno com TDAH, o professor pode incluí-lo nos exemplos de explicações. Sem que isso cause constrangimento, mas em situações em que a turma esteja inteirada. Além disso, existem escolas que dispõem de atendimento psicopedagógico. Essas instituições podem contar com o acompanhamento de profissionais que auxiliarão o estudante a uma vida acadêmica mais proveitosa, com o auxílio de medicamentos (estimulantes) receitados por outros especialistas.

Aprendizagem Significativa - A teoria de Ausubel

 

Dentro do Cognitivismo e, mais especificamente, no construtivismo, encontramos vários autores, entre eles: Piaget, Vygotsky e Ausubel. Nessa matriz de pensamento acredita-se que o aluno é o principal agente construtor da aprendizagem. Nesse texto fez-se uma curtíssima apresentação da Teoria de Ausubel focalizando três pontos centrais: (1) o que é aprendizagem; (2) quando ela se torna significativa; e (3) as vantagens em relação a aprendizagem "decoreba" (Pelizzari et al, 2002).

David Paul Ausubel (1918-2008) foi um teórico e psicólogo da educação estadunidense. Insatisfeito com a educação violenta e reacionária, baseada em castigos, Ausubel tornou-se um dos defensores do cognitivismo, passando a defender uma educação que contribuísse de forma significativa para a construção da sociedade do conhecimento. Para alcançar seus objetivos, Ausubel esquematizou uma teoria em que a aprendizagem aparecia como um processo de vínculo entre uma nova informação e a estrutura cognitiva do aluno. Gosto de pensar essa ideia como a construção de um muro, em que cada tijolo seria uma nova informação a ser assentada sobre a estrutura já existente do muro. Se houver buracos no muro, ele não para de pé.

Pensando assim, podemos concluir, como fez Ausubel, é preciso levar em conta o conhecimento prévio (a estrutura do muro pré-existente) que o indivíduo possui como ponto de partida para um novo conhecimento (pra uma nova fiada de tijolos). Sendo assim, a aprendizagem significativa é possível quando a nova informação (tijolo) se ancora na estrutura de conceitos relevantes do aprendiz. Entretanto, não devemos esquecer que quem define a relevância de cada conceito é o próprio aluno (MOREIRA, 1999).

O que vai possibilitar o aprendizado significativo é a disposição para aprender, ou seja, a livre vontade - ausente de arbitrariedades - de construir vínculos com o novo conteúdo, fortalecendo sua estrutura cognitiva (seu muro). Enquanto professores, cabe a nós auxiliar nesse processo garantindo que os materiais e métodos que utilizamos são potencialmente significativos, ou seja, que tenham significado lógico e possam ser apreendidos pela estrutura cognitiva do aprendiz que o aprendiz já possui. Caso contrário, vamos estar tentando assentar um tijolo no nada, o que é empiricamente impossível (MOREIRA, 1995).

Com o processo de ensino-aprendizagem baseado nessa teoria, evitamos a aprendizagem "decoreba", em que o aprendiz decora enunciados para a prova e os apaga da memória na semana seguinte. Seguindo o legado de Ausubel, lecionamos de forma a superar a aprendizagem decoreba, pois o conhecimento assentado na estrutura prévia não se apaga com facilidade. Fortalecendo a estrutura cognitiva do aluno, possibilitamos que ele aumente a capacidade de aprender novos conteúdos (Pelizzari et al, 2002; MOREIRA, 1999). Voltando a metáfora do muro, possibilitamos que sejam ancoradas mais e mais fiadas de tijolos.

 

Referências

MOREIRA, M. A. Aprendizagem significativa. Brasília: Editora Universidade de Brasília. 1999.

MOREIRA, M. A. Teorias de Aprendizagens, EPU, São Paulo, 1995.

Pelizzari et al. TEORIA DA APRENDIZAGEM SIGNIFICATIVA SEGUNDO AUSUBEL. Rev. PEC, Curitiba, v.2, n.1, p.37-42, jul. 2001-jul. 2002.

 

Todas as crianças/pessoas podem aprender e se desenvolver: "As Borboletas de Zagorsk" (1990)

 

O documentário "As Borboletas de Zagorsk" (1990) conta parte do cotidiano de crianças com deficiência no fim da União Soviética. Um país (ou uma organização de países) que mesmo entrando em um período conturbado ainda tinha espaço para auxiliar pessoas com deficiência a desenvolverem outras capacidades para lidar com o mundo, partindo do legado de Lev Vigotski. O autor acreditava que "crianças deficientes não devem ser abordadas através de sua deficiência. Em vez disso, deveriam ser ensinadas a desenvolver seus outros sentidos ao ponto de poderem ser usados para compensar o que foi perdido".

Mais do que a crença na em que todas as crianças/pessoas podem aprender e se desenvolver, para Vigotski a comunicação era sinónimo de poder. E essa afirmação faz todo o sentido. Como o filme bem nos revela: as crianças que passaram por instituições com o método de Lev Vigotski puderam constituir uma vida cheia de sucessos, apesar da forma diferente de ver, ouvir e sentir o mundo. Puderam fazer uma universidade e se tornar também professores, psicólogos, jogadores etc.

Nesse sentido, e encaminhando para o fim, é importante destacar que mais que poder, a comunicação garante dignidade através da interação com os outros. Independente das limitações, todas as crianças/pessoas podem aprender e se desenvolver através de mecanismos compensatórios, passando a utilizar outros sentidos para substituir seus sentidos perdidos. E, através desse aprendizado, se supera dificuldades e tomasse conhecimento da própria força.

Recuperar esse documentário e o legado de Lev Vigotski é essencial no momento em que vivemos. A poucos dias um decreto do presidente Jair Bolsonaro aprovou a “nova política nacional de educação especial”[1], extinguindo a obrigação que as escolas regulares tinham de matricular pessoas com deficiência, estimulando a criação de ambientes específicos para receber pessoas com necessidades especiais, retornando a um modelo excludente. Vigotski nos lembra que pessoas com deficiência não podem colocadas a margem da sociedade, que é no convívio afetuoso que essas pessoas se desenvolverem plenamente.



[1] Fonte: nsctotal.com.br. Acesso no dia 16/10/2020.

Análise do filme de Miguel Ocelot, Kiricu e a Feiticeira

           Contexto do filme

O filme de Miguel Ocelot é uma adaptação de um conto africano em que a inteligência e a busca por conhecimento se mostram vitoriosas sobre as mais diversas dificuldades, acima dos maniqueísmos típicos dos filmes infantis. Kiricu é um pequeno ser humano que já nasce falando e andando. Isso é uma extrapolação da realidade para mostrar que ele é diferente dos demais membros de sua vila. Desde cedo faz muitas perguntas a sua mãe, ao sábio, ao tio. É rebelde, de certa forma, pois busca sair da inércia, superar a situação na qual seu povo se encontrava, submissos aos mandos e desmandos de uma feiticeira. Os relatos sobre a feiticeira, por mais terríveis que fossem - ela comeu os homens, sequestrou crianças, roubou o ouro, secou a fonte, queimou cabanas – não o impediram de seguir perguntando e buscando soluções cada vez mais criativas para os problemas que encontrava.

 

Kiricu, o inconformado?

A rebeldia de Kiricu é talvez a sua característica mais importante, ao menos para o desenvolvimento da história, pois é ela que o move. O pequeno guerreiro quis saber o motivo das coisas serem como são, um pesquisador nato. Inconformado com a sua realidade e com as explicações simplistas, não se dá por satisfeito ao ouvir que uma ou outra atitude não é própria para o seu tamanho ou sua idade. Exemplo mais latente disso é o questionamento incessante dos motivos da maldade da feiticeira. E é justamente esse “ímpeto pesquisador” a sua maior vantagem: as ilusões – das quais sua mãe afirma que Karabá necessita para manter seu poder – se desfazem no ar perante a “inteligência livre”, como caracterizou seu avô, de Kiricu.

 

A jornada do herói

Desde o início, a investigação dos fatos da narrativa só trouxe bons resultados finais a Kiriku. Mesmo com dificuldades no caminho, como bem ilustra a cena em que Kiricu está cavando por de baixo da cabana da bruxa, há sempre caminhos alternativos e, principalmente, criativos quando desenvolvemos a capacidade de usar o que temos a nosso favor. Além disso, uma outra questão de grande relevância, não só pra pesquisadores, é aprender a aproveitar e tirar o melhor de cada momento. Talvez uma das falas mais tocantes do filme seja a do avô de Kiricu lhe dizendo para aproveitar quando é pequeno para ser pequeno para, ao crescer, se alegrar por ter crescido e não almejar voltar a ser pequeno. Se posso fazer um comentário pessoal: essa fala do avô me lembrou uma antiga professora nos dizendo – calouros de ciências sociais – para nos permitirmos ser calouros, ter dúvidas, errar, para alcançar o fim último que é aprender.

 

Para além do maniqueísmo: a libertação da feiticeira

Como dito anteriormente, a pratica investigativa trouxe bons resultados a Kiriku. Talvez o melhor deles tenha sido o casamento com a feiticeira, depois de sua redenção. É aqui onde o longa superou o “maniqueísmo padrão” de muitas produções infantis. Karabá não é puramente má, ela é, em parte, uma vítima acostumada com a dor – neste caso física – de um espinho na coluna. Mas essa é mais uma das metáforas do filme: o quão maus podemos nos tornar ao acostumarmos com a dor, seja ela causada por qualquer motivo. E, além disso, não foi a feiticeira que secou a fonte de água, nem comeu guerreiros. Foi uma mistura de sentimentos e coincidências que colocou Karabá em sua posição de feiticeira e as pessoas da vila em posição submissa, por medo e por não tomar uma atitude proativa de buscar respostas para as questões do cotidiano. Não estou tomando o lado do opressor, apenas constatando que tanto a feiticeira como os moradores da vila já se encontravam em tal estado de conformidade que se tornaram imóveis. Tanto é que, no final, ao retornar casado a vila, Kiricu é recebido com dúvidas e ódio, o que é perfeitamente compreensível após anos de tormento. Sendo assim, pensar essa película é pensar sobre nossas atitudes diante das dificuldades da vida, seja na pesquisa ou no simples convívio cotidiano, superando maniqueísmos e buscando conhecimento para lidar de forma criativa com os empecilhos.

 

Referências bibliográficas

Kiriku e a Feiticeira (Michel Ocelot, 1998).

1. Na sua percepção, que postura o pesquisador deve ter considerando o filme “Kiriku e a Feiticeira”?

 

O filme de Miguel Ocelot é uma adaptação de um conto africano em que a inteligência e a busca por conhecimento se mostram vitoriosas sobre as mais diversas dificuldades, acima dos maniqueísmos típicos dos filmes infantis. Kiricu é um pequeno ser humano que já nasce falando e andando. Isso é uma extrapolação da realidade para mostrar que ele é diferente dos demais membros de sua vila. Desde cedo faz muitas perguntas a sua mãe, ao sábio, ao tio. É rebelde, de certa forma, pois busca sair da inércia, superar a situação na qual seu povo se encontrava, submissos aos mandos e desmandos de uma feiticeira. Os relatos sobre a feiticeira, por mais terríveis que fossem - ela comeu os homens, sequestrou crianças, roubou o ouro, secou a fonte, queimou cabanas – não o impediram de seguir perguntando e buscando soluções cada vez mais criativas para os problemas que encontrava.

 

 2. Qual é o ponto de partida para qualquer estudo/pesquisa segundo o filme “Kiriku e a feiticeira”?

 

A rebeldia de Kiricu é talvez a sua característica mais importante, ao menos para o desenvolvimento da história, pois é ela que o move. O pequeno guerreiro quis saber o motivo das coisas serem como são, um pesquisador nato. Inconformado com a sua realidade e com as explicações simplistas, não se dá por satisfeito ao ouvir que uma ou outra atitude não é própria para o seu tamanho ou sua idade. Exemplo mais latente disso é o questionamento incessante dos motivos da maldade da feiticeira. E é justamente esse “ímpeto pesquisador” a sua maior vantagem: as ilusões – das quais sua mãe afirma que Karabá necessita para manter seu poder – se desfazem no ar perante a “inteligência livre”, como caracterizou seu avô, de Kiricu.

 

 3. O que está disponível a todo pesquisador de acordo com o filme “Kiriku e a feiticeira”?

 

A “inteligência livre”, segundo o avô de Kiricu, que é percebida nas incessantes dúvidas e nas formas criativas de resolução dos problemas.

 

4. De onde vem a inquietude do pesquisador segundo o filme “Kiriku e a feiticeira”?

 

Da vontade de mudar a sua realidade, e, por consequência, do seu povo.

 

 5. Tomando a figura da feiticeira, na verdade contra o que Kiriku luta?

 

Contra a ilusão ou as ilusões, seja da bruxa, seja do povo do vilarejo. A pratica investigativa trouxe bons resultados a Kiriku. Talvez o melhor deles tenha sido o casamento com a feiticeira, depois de sua redenção. É aqui onde o longa superou o “maniqueísmo padrão” de muitas produções infantis. Karabá não é puramente má, ela é, em parte, uma vítima acostumada com a dor – neste caso física – de um espinho na coluna. Mas essa é mais uma das metáforas do filme: o quão maus podemos nos tornar ao acostumarmos com a dor, seja ela causada por qualquer motivo. E, além disso, não foi a feiticeira que secou a fonte de água, nem comeu guerreiros. Foi uma mistura de sentimentos e coincidências que colocou Karabá em sua posição de feiticeira e as pessoas da vila em posição submissa, por medo e por não tomar uma atitude proativa de buscar respostas para as questões do cotidiano. Não estou tomando o lado do opressor, apenas constatando que tanto a feiticeira como os moradores da vila já se encontravam em tal estado de conformidade que se tornaram imóveis. Tanto é que, no final, ao retornar casado a vila, Kiricu é recebido com dúvidas e ódio, o que é perfeitamente compreensível após anos de tormento. Sendo assim, pensar essa película é pensar sobre nossas atitudes diante das dificuldades da vida, seja na pesquisa ou no simples convívio cotidiano, superando maniqueísmos e buscando conhecimento para lidar de forma criativa com os empecilhos.

 

 6. O que leva as pessoas à ignorância?

 

O medo das ilusões e o conformismo com a situação de opressão.

 

 7. Como deve ser o questionamento do pesquisador?

 

Livre e adequado a realidade do pesquisador. Mesmo com dificuldades no caminho, como bem ilustra a cena em que Kiricu está cavando por de baixo da cabana da bruxa, há sempre caminhos alternativos e, principalmente, criativos quando desenvolvemos a capacidade de usar o que temos a nosso favor. Além disso, uma outra questão de grande relevância, não só pra pesquisadores, é aprender a aproveitar e tirar o melhor de cada momento. Talvez uma das falas mais tocantes do filme seja a do avô de Kiricu lhe dizendo para aproveitar quando é pequeno para ser pequeno para, ao crescer, se alegrar por ter crescido e não almejar voltar a ser pequeno. Se posso fazer um comentário pessoal: essa fala do avô me lembrou uma antiga professora nos dizendo – calouros de ciências sociais – para nos permitirmos ser calouros, ter dúvidas, errar, para alcançar o fim último que é aprender.

 

 8. Qual é o contraponto de Kiriku?

 

No geral, o pensamento alienado, que é bem representado pelo oráculo da aldeia. Ele afirma saber tudo, mas não é capaz de explicar nada e não percebe que só corrobora para perpetuar a opressão.

 

 9. Como a ciência deve ser encarada?

 

Como uma forma de encontrar soluções criativas para problemas complexos, que supere maniqueísmos e jogue luz sobre as ilusões que nos mantem inertes no conformismo.

 

10. Como é possível perceber a limitação da ciência no filme?

 

A cena da toca, onde os desafios podem representar os obstáculos ao longo da pesquisa e a cena em que Kiricu volta adulto e acompanhado de Karabá para a aldeia. No primeiro caso, são as limitações que aparecem durante o fazer científico, limitações de campo, parte do cotidiano dos cientistas e pesquisadores. No segundo caso, trata-se de um problema social: a negação da credibilidade da ciência, o negacionismo. Desde o início, esse descredito aparece com as tentativas de sequestrar as crianças empreendidas pela feiticeira, que foram todas frustradas por Kiricu. Mas no final, ao se deparar com o fato de que a feiticeira era recheada de muitos outros sentimentos além da maldade, sendo capaz até mesmo de amar, os moradores do vilarejo tem um ímpeto assassino, somente interrompido pela chegada do avó de Kiricu acompanhado dos homens que haviam sido escravizados.

 

 11. Qual é a postura necessária diante da ciência de acordo com o filme?

 

Ativa, sagaz e resiliente. Ativa para não se dar por satisfeito com o que te oferecem de realidade, sagaz para não se deixar se enganar pelas ilusões e resiliente para superar os percalços do caminho do fazer científico.

 

 

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