NOTAS SOBRE UM ANIVERSÁRIO PARA O QUILOMBO KALUNGA
Francisco Octávio Bittencourt de Sousa
Antes de qualquer coisa, é importante destacar que o que há nesse texto são apenas sugestões de um pesquisador interessado na história fundiária desse país e na obtenção da cidadania pela terra. Dessa forma, as observações feitas são de tom ensaístico e propositivo, apoiadas sobre os estudos que realizei nos últimos dois anos a respeito da grilagem de terras em um fragmento do território Kalunga, o imóvel Bonito. Para tal estudo foi necessária uma rigorosa revisão bibliográfica a partir da qual teço meus comentários.
A comemoração de um aniversário é dividir conquistas e alegrias com outras pessoas, fortalecendo a rede de relações que cultivamos. Além disso, na celebração é comum recordar o que se tem e traçar planos sobre o que se quer alcançar. Isso para além da demarcação temporal de existência.
O aniversário de uma pessoa é simples de ser definido, trata-se da data de nascimento que consta nos registros de nascimento, batismo etc. O aniversário de uma organização já pode variar um pouco, tendo marcos temporais simbólicos e oficiais, registrados - por exemplo - no momento de regularização da entidade.
Um evento que se prolonga ao longo do tempo também gera alguma confusão para a definição de um aniversário. Nesses casos, normalmente se apela para a data de começo ou fim, também registrada em algum tipo de documento: um jornal, um panfleto, uma lei etc. Ou seja, os aniversários aparentam ter, na maioria dos casos, algum respaldo legal, documental.
Daí surge uma dúvida: como definir uma data de aniversário para uma organização criada à margem da legalidade e que os atuais membros optaram pelo esquecimento das origens por se tratar de um passado manchado de sangue? Essa é a questão que me atormentou durante a tarde do dia 19 de maio de 2022, enquanto pensava sobre os Kalunga.
De início, gostaria de desmentir algumas afirmações que estão entremeadas no imaginário coletivo quando falamos de quilombo. A primeira delas diz respeito ao próprio dinamismo dos quilombos: quilombos sempre atraíram forte repressão e vários foram desmantelados por incursões militares, mas isso não impedia que os habitantes dos quilombos - escravizados fugidos, indígenas, brancos pobres etc - voltassem a se organizar nesses espaços móveis de resistência.
É comum também que criem uma relação entre quilombo e isolamento, o que é uma farsa desmentida desde a década de 70 pelo menos. É provável que muitos núcleos populacionais do que em algum momento se chamou de sertões só tenham existido - e mesmo prosperado - graças à existência de quilombos nas proximidades. Os quilombos proviam não só alimentos, como também força de trabalho, com estruturas econômicas complexas.
Por esses e outros fatos, contar a história e definir o aniversário de um quilombo nem sempre é tarefa simples. Os quilombos estão em movimento, misturados nos registros policiais, comerciais, jurídicos e na memória coletiva dos remanescentes.
Por onde começar então? Minha primeira resposta seria pelos próprios Kalunga, porém, como dito anteriormente: durante minha pesquisa de campo, notei que - ao menos no fragmento da comunidade estudado - optou-se por um apagamento seletivo da memória “de guerra” em si, das origens (sempre) violentas de um quilombo.
Constatado o apagamento, resta então as fontes oficiais. Em 1722, o bandeirante Bartolomeu Bueno da Silva, juntamente com João Leite da Silva Ortiz, chegou àquelas terras que iriam ser chamadas de "minas dos Goiases", nome de um povo indígena que vivia na região. Foi então que começou a exploração das minas. Atrás do ouro tinham vindo bandeirantes, mineradores e seus escravizados.
A distância de mais de 1.500 quilômetros entre Salvador e Vila Boa, provocava a morte de inúmeras pessoas pelo caminho, pois chegavam esgotados da travessia do Atlântico. Muitos cativos permaneciam temporariamente na Bahia, Rio de Janeiro e Minas Gerais, antes de serem negociados e enviados para Goiás. Em condições melhores que os escravizados, Luís da Cunha Menezes, demorou 37 dias de viagem para tomar posse no cargo de capitão geral de Goiás.
A distância entre Goiás e os portos litorâneos tornava o tráfico para o “sertão” bastante oneroso. Havia o risco de “perder a mercadoria” ao longo do caminho, seja por fuga, morte por doenças, ou ataques dos naturais da terra. Por outro lado, essa distância proporcionava aos traficantes de escravos a certeza de que atividades ilícitas, como contrabando, dificilmente seriam descobertas. Contudo, não só traficantes e sonegadores se beneficiaram da extensão da capitania.
A história oficial dos quilombos de Goiás pode ter começado com um bando em 1727 que ameaçava punir com açoites os africanos que em fuga se abrigavam junto a outros moradores e intimidava com multa a quem não lhes denunciasse a fuga. É improvável, no entanto, que a década de 1720 marcasse o início do quilombismo em Goiás porque os escravos indígenas já fugiam no século XVII, e nós acreditamos que africanos fugidos do Maranhão, Bahia e Pernambuco percorreram a rota do sertão com destino ao norte e nordeste de Goiás.
O primeiro grande quilombo assinalado da região situa-se próximo ao Rio das Mortes, em 1746, nos vastos campos e serras que separavam Minas Gerais dos Goyases. Consta que mais de seiscentos fugitivos lá se concentravam, numa sociedade organizada com rei e rainha. Esse quilombo foi destruído em 1751 por Bartolomeu Bueno Prado.
Em 1760, dom João Manoel de Melo, aponta alguns quilombos no vale do Rio Paranã, onde se congregavam duzentos negros que estavam situados em regiões férteis e propícias á agricultura, em que promoveram roças e pomares. Esses desenvolveram-se a partir das contínuas fugas das lavras das minas da região dos afluentes do Rio Paranã e do Tocantins no século XVIII, estas fugas se intensificaram, principalmente nas minas do arraias de São João da Palma, Conceição, Natividade, Flores, Arraias, São Félix e Cavalcante.
No final do século XVIII, os índios apinajés tinham sido acusados de assaltarem o quilombo de Pederneiras para roubar ferramentas. Antes disso, os índios avá-canoeiro já eram conhecidos por seus contatos com os quilombolas. Nesse período há evidências de que muitos quilombolas estavam migrando para regiões mais interioranas das Minas Gerais e também Goiás, procurando novas áreas para se protegerem da repressão.
Enfim, espero que tais fatos sejam suficientes para apoiar a tese de que a história dos Kalunga provavelmente começou ainda no século XVII, com os escravizados fugidos de outras regiões do país. No século XVII, na Bahia a realidade colonial era de constantes fugas de escravos, expansão de quilombos, “entradas” para o sertão e políticas dos senhores e da administração régia para coibir as revoltas e motins estavam presentes. Os conflitos relacionados a escravidão indígena no Maranhão empurravam as populações perseguidas ora por escravizadores ora por catequisadores cada vez mais para o sul. E a elite escravocrata de Pernambuco comandou parte do tráfico interno até o século XVIII.
Considerando ao menos uma geração anterior ao evento de 1727, alcançamos a década de 1690. Me parece, levando em consideração todos os apontamentos feitos, uma boa década para situar o surgimento do que mais tarde viria a ser conhecido como Quilombo Kalunga. Partindo de 1690 comemoramos, neste ano de 2022, 332 anos do quilombo.
Somente com relatos orais, já havíamos alcançado 200 anos de história. Anteriormente citei um certo apagamento seletivo da memória coletiva a respeito dos eventos passados da história dos Kalunga. Pois bem, esse apagamento foi constatado no "Estudo sobre a ocupação Kalunga da área que compõe o imóvel Bonito, na margem dos rios Paranã e Prata", que consta em anexo na minha monografia.
Para esse estudo, entrevistamos 30 anciões do território, e percebemos que a memória coletiva se moldou em torno das festas e celebrações religiosas locais. Com base nessa revisão inicial dos dados pudemos retornar para, ao menos, 150 anos com uma ocupação já consolidada, em que ocorriam festejos e incursões da Igreja Católica. Se considerarmos um período mínimo de 50 anos para atingir tal nível de organização, alcançaremos os 200 anos de ocupação, chegando a 1821.
Nossa conclusão foi que a memória coletiva da população se confunde com a história contada pelos historiadores e há provas cabais dos relatos nos arquivos da paróquia local. Tais registros nos permitem recuperar mais antepassados e atingir um período ainda mais longo de ocupação, como fica claro nesse ensaio.
Espero que essas conclusões sejam questionadas e estudadas, ensejando maiores debates sobre a história do povo Kalunga. O texto tem um tom ensaístico e propositivo, não almejando responder todas as perguntas sobre essa trajetória de resistência. Havendo novos estudos, peço que por favor revejam minhas afirmações.
Estimada a idade, resta então encontrar uma data para a comemoração. Aqui não há receita. Minha proposta é que encontrem uma data importante para a comunidade e sua história. Talvez, como sugestão, o 21 de janeiro, em que foi sancionada a Lei Estadual n° 11.409/91, que criou o Sítio Histórico Kalunga; ou o 2 de agosto, quando - em 1983 - foi feita a primeira reivindicação escrita dos Kalunga ao IDAGO. Quem sabe o 10 de dezembro, quando - em 1985 - fica autorizado o poder executivo do Estado de Goiás a doar terras para uso da comunidade Kalunga. Talvez a data de nascimento do Kalunga mais velho ainda vivo ou de uma das lideranças; a data de fundação da AQK etc
A data, bem como a idade, serão símbolos da antiguidade da ocupação Kalunga do território e da renovação dos laços da rede de relações da comunidade e seus aliados. Não tendo mais nada a acrescentar, agradeço o leitor e o convido a ajudar a compor essa história de luta e resistência no cerrado goiano.
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