SADER, Emir. A crise
hegemônica na América Latina; O futuro da América Latina. In: SADER, Emir. A
nova toupeira: os caminhos da esquerda latino-americana. São Paulo: Boitempo,
2009.
Em 2019: equatorianos
foram as ruas pelo aumento dos preços do combustível; peruanos passam por uma
crise política grave; bolivianos foram as urnas, elegeram um presidente que
renunciou por pressão das forças armadas; chilenos vão as ruas por uma nova
constituição; venezuelanos enfrentam o governo autoritário de Nicolas Maduro;
negociações sobre o valor da energia de Itaipu levam paraguaios as ruas; com a
miséria superando 40% da população argentina, governo é obrigado a promover lei
de assistência alimentar.
Emir Sader escreveu em
2009, mas sua leitura nunca tão foi atual. Aparentemente a América Latina passa
por ciclos de crises periodicamente, e olhar para a história conturbada desse
território pode nos ajudar a compreender os porquês do título “A crise
hegemônica na América Latina” parecer tão atual.
O texto tem inicio com
uma reconstrução histórica do período pós-Grande Depressão, observando as
respostas que os diversos países encontraram para a crise. É verificado pelo
autor uma transformação sem paralelos da “fisionomia” latino-americana, marcada
ou pela “elaboração de projetos nacionais” ou pelo “desenvolvimento das forças
produtivas”, inaugurando um robusto “ciclo expansivo” tanto econômico quanto de
direitos sociais e políticos, mesmo que marcado pela desigualdade social
arraigada. Nesse sentido, surgiu uma diferenciação em três grupos de países:
(1) os que adotaram “projetos de industrialização para substituir as
importações, transformando desse modo a estrutura produtiva”; (2) “os que deram
passos nessa direção”; e (3) “os que não conseguiram sair da estrutura
primário-exportadora”.
O período descrito acima,
tendo como pano de fundo a política desenvolvimentista ou nacional
desenvolvimentista foi hegemônico por algumas décadas, todavia encontrou seu
esgotamento na década de 70, em crises que levaram a ditaduras horrendas com
transições complicadas: o Estado perdia a capacidade reguladora, as políticas
sociais eram cada vez mais enfraquecidas, o patrimônio público era privatizado
e as economias eram escancaradas para o mercado internacional. O fim do ciclo
desenvolvimentista abriu espaço para a instalação de modelos neoliberais
experimentais de joelhos para a “hegemonia imperial norte-americana”. Projetos
alternativos pareciam inviáveis ou nem mesmo eram construídos. O capital, antes
muito regulado pelo Estado, acabou “liberado de suas travas”, todavia essa
liberdade o levou ao setor financeiro, pontapé inicial para uma nova hegemonia
mundial baseado no capital financeiro “agora aliado aos grandes grupos
exportadores, e com um novo protagonismo dos agronegócios”. Uma ferida
aparentemente irremediável foi aberta.
O modelo neoliberal, ao conquistar
espaço já na década de 80, parecia inabalável: contava com apoio irrestrito da
“grande mídia privada”. O controle da inflação e a promessa de um novo ciclo de
crescimento, aliado a aparente estabilidade financeira colocaram um modelo em
um pedestal. Todavia a aparente vitória durou pouco: a partir da década de 90
as economias latino-americanas começaram a implodir sucessivamente passando por
crises cambiais, sociais, entre outras. “A abertura das economias, aliadas à
dependência estrutural do capital especulativo, produziu fragilidades” e sem
bases sociais fortes pela ausência de distribuição de renda a primeira onda
neoliberal ruiu, mesmo com a “grande mídia mercantil” fazendo uma defesa
ferrenha do modelo fracassado. Todavia, o neoliberalismo deixou legados de
vertente ideológica: produziu uma “fragmentação social e cultural [...] em toda
a imensa massa da população” e alienou as pessoas quanto a sua capacidade de
agência histórica e política. As consequências desses legados são vistas ainda
hoje com a dificuldade da “capacidade de manifestação, de negociação, de apelo
à justiça, de construção de força política, [...] de identificação com o mundo
do trabalho e com a sua cultura”, abrindo espaço para a ausência de pensamento
crítico, ou seja, entregando os indivíduos a ideologia artificial de culto a
“globalização, a tecnologia, a competição e a riqueza”. Nessa parte do texto
recordei de uma composição brasileira dos anos 80 que ilustra bem o resultado
da alienação e da fragmentação sociocultural:
Ultraje a Rigor (1983): "A
gente não sabemos; Escolher presidente; A gente não sabemos; Tomar conta da
gente; A gente não sabemos; Nem escovar os dente; Tem gringo pensando; Que
nóis’ é indigente; A gente faz carro; E não sabe guiar ;A gente faz trilho; E
não tem trem prá’ botar; A gente faz filho; E não consegue criar; A gente pede
grana; E não consegue pagar; Inúteu’!; A gente somos inúteu’!".
Essa sensação de
inutilidade construída fez com que mesmo com a “capacidade tecnológica para
construir ‘outro mundo’” a sensação de impotência se impusesse, compondo uma
realidade inevitável.
Posto essa curta
explanação, é conveniente trazer a divisão de períodos que o autor traz:
“surgimento, consolidação e crise”. Se faz necessária a crítica: E. Sader
coloca em uma mesma fase (surgimento) os governos Thatcher-Reagan e a ditadura
de Pinochet. Pela diferença clara entre regimes democráticos e autoritários
talvez caiba o acrescimento de mais uma fase anterior ao surgimento, uma fase
embrionária que abarque o Chile pinochetista. Feita a crítica, a primeira fase,
o surgimento, engloba neoliberalismos mais duros: Chile, Estados Unidos e
Inglaterra. A segunda fase, a consolidação, é marcada pela hegemonia mundial
com o neoliberalismo adentrando o eixo político conhecido por “terceira via”,
as socialdemocracias, sob liderança de nomes como FHC, Fujimori, Andrés Pérez,
entre outros. Apresentavam versão menos dura que o neoliberalismo ortodoxo,
onde ainda havia espaço para medidas de bem-estar social. Todavia, essa fase se
esgota já nos anos 1990, como descrito anteriormente.
Nesse cenário de
deterioração do neoliberalismo do início do século XXI, governos de espectro
político fervilharam por toda a América Latina. Sader os nomeia
“pós-neoliberais”, “híbridos” que se sustentam na união de forças de diversas
vertentes, ocupando as brechas do neoliberalismo com políticas sociais e
integração regional. Um curto parêntese para o protagonismo chinês, que com o
crescimento galopante se mostrava como uma opção anti-estadunidense para a
diversificação das relações comerciais.
Lula, Evo Morales, Rafael
Correa, entre outros são os nomes dessa nova fase pós-neoliberal. A América
Latina viveu um período dourado, com lideranças alinhas à integração regional,
sobrepondo a solidariedade ou livre-comércio. Começava-se a caminhar para uma
ruptura com o neoliberalismo. Todavia, apesar da aparente estabilidade, essas
lideranças enfrentavam forte oposição interna de uma direita neoliberal que
começava a recuperar seu folego e “lançou mão das esferas em que sua hegemonia
não havia sido atingida [...]: o poder econômico e o midiático”. Acusavam as
lideranças pós-neoliberais de corrupção, ameaça de liberdade de imprensa,
desabastecimento, entre outras insinuações a depender do local. O pensamento
conservador renasce com “a inflação e a violência”. A analise do autor se
encerra nesse ponto, as próximas observações que E. Sader elaboração são
projeções: possíveis eleições da oposição ou continuação dos regimes; o
interesse mundial na América Latina pela capacidade energética e pela força do
agronegócio; o medo dos Estados Unidos pela capacidade impar latino-americana
de uma integração alheia ao restante do mundo, entre outras possíveis
realidades. Todavia, já vivenciamos os anos que o autor tenta predizer.
A partir de 2014 os governos
do espectro pós-neoliberais começaram a perder força. Piñera foi eleito no
Chile, apesar da reeleição a Dilma Roussef é derrubada por um golpe no Brasil,
Macri é eleito na Argentina, entre outros. A direita neoliberal ressurgiu e
hoje, 2019, tenta se impor a força. Como demostrado no paragrafo inicial do
texto: a América Latina entra em convulsão outra vez e o futuro parece a cada
dia mais sombrio. O que esperar quando um presidente pós-neoliberal é forçado a
renunciar no seu país e presidentes neoliberais se mantem no poder mesmo com
ampla rejeição popular? E até mesmo o socialismo do século XXI, uma alternativa
trazida pelo autor, encabeçado por Hugo Chavez foi levado a lama por uma
ditadura. O presente é violento e o futuro parece aterrorizante. O neoliberalismo
perdeu a capacidade de chegar ao poder por vias democráticas e não se preocupa
com o autoritarismo, a sua flexibilidade para a manutenção dos privilégios é
incrível e não deve ser desprezada. Enquanto acadêmicos, talvez o nosso papel
esteja em, como fez T. Piketty, mostrar opções alternativas para a vida em
sociedade, afinal, como afirma o professor Ladislau Dowbor no artigo “A burrice
no poder” (2018) “não estamos aqui sugerindo perfeita igualdade, mas sim uma
situação menos obscena, em que cada pessoa possa valer pelo que vale como
pessoa, e ter as suas oportunidades de crescer. [...] Temos os recursos, temos
as tecnologias, sabemos como fazer, e custa muito pouco. É exagero falar de
ignorância?”. Quem escreve esse relatório acredita que não é exagero. Não é
mais uma questão econômica de espectros a esquerda ou a direta, mas é uma
questão de dignidade humana. Encerro com mais uma composição musical nacional
que ilustra a situação para qual tendemos:
Augusto
Boal e Geny Marcondes (1961): “Passo a vida trabalhando; Dando duro no
batente; A comer de vez em quando; Isso é vida minha gente;Se ser livre é
passar fome; Não basta ser livre, não; Pro’ patrão pedi aumento; Só levei um
pontapé; Sem comida e sem vintém; E
agora, sêo’ José?; Se ser livre á passar tome; Não basta ser livre, não; No
xadrez não me quiseram; Posse fome lá pra fora; se estou livre, estou faminto;
Com a barriga dando hora.; Sem comida a liberdade; É mentira. não é verdade;
Zé da Silva é um homem livre; O que, o que, o que;Zé da Silva é um homem
livre;O que ele vai fazer?;O que?;Livre é livre, é livre.;Livre, livre,
livre; É livre!;Aqui! Que eu sou livre.”.
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