terça-feira, 26 de novembro de 2019

Relatório: A nova toupeira



SADER, Emir. A crise hegemônica na América Latina; O futuro da América Latina. In: SADER, Emir. A nova toupeira: os caminhos da esquerda latino-americana. São Paulo: Boitempo, 2009.

Em 2019: equatorianos foram as ruas pelo aumento dos preços do combustível; peruanos passam por uma crise política grave; bolivianos foram as urnas, elegeram um presidente que renunciou por pressão das forças armadas; chilenos vão as ruas por uma nova constituição; venezuelanos enfrentam o governo autoritário de Nicolas Maduro; negociações sobre o valor da energia de Itaipu levam paraguaios as ruas; com a miséria superando 40% da população argentina, governo é obrigado a promover lei de assistência alimentar.
Emir Sader escreveu em 2009, mas sua leitura nunca tão foi atual. Aparentemente a América Latina passa por ciclos de crises periodicamente, e olhar para a história conturbada desse território pode nos ajudar a compreender os porquês do título “A crise hegemônica na América Latina” parecer tão atual.
O texto tem inicio com uma reconstrução histórica do período pós-Grande Depressão, observando as respostas que os diversos países encontraram para a crise. É verificado pelo autor uma transformação sem paralelos da “fisionomia” latino-americana, marcada ou pela “elaboração de projetos nacionais” ou pelo “desenvolvimento das forças produtivas”, inaugurando um robusto “ciclo expansivo” tanto econômico quanto de direitos sociais e políticos, mesmo que marcado pela desigualdade social arraigada. Nesse sentido, surgiu uma diferenciação em três grupos de países: (1) os que adotaram “projetos de industrialização para substituir as importações, transformando desse modo a estrutura produtiva”; (2) “os que deram passos nessa direção”; e (3) “os que não conseguiram sair da estrutura primário-exportadora”.
O período descrito acima, tendo como pano de fundo a política desenvolvimentista ou nacional desenvolvimentista foi hegemônico por algumas décadas, todavia encontrou seu esgotamento na década de 70, em crises que levaram a ditaduras horrendas com transições complicadas: o Estado perdia a capacidade reguladora, as políticas sociais eram cada vez mais enfraquecidas, o patrimônio público era privatizado e as economias eram escancaradas para o mercado internacional. O fim do ciclo desenvolvimentista abriu espaço para a instalação de modelos neoliberais experimentais de joelhos para a “hegemonia imperial norte-americana”. Projetos alternativos pareciam inviáveis ou nem mesmo eram construídos. O capital, antes muito regulado pelo Estado, acabou “liberado de suas travas”, todavia essa liberdade o levou ao setor financeiro, pontapé inicial para uma nova hegemonia mundial baseado no capital financeiro “agora aliado aos grandes grupos exportadores, e com um novo protagonismo dos agronegócios”. Uma ferida aparentemente irremediável foi aberta.
O modelo neoliberal, ao conquistar espaço já na década de 80, parecia inabalável: contava com apoio irrestrito da “grande mídia privada”. O controle da inflação e a promessa de um novo ciclo de crescimento, aliado a aparente estabilidade financeira colocaram um modelo em um pedestal. Todavia a aparente vitória durou pouco: a partir da década de 90 as economias latino-americanas começaram a implodir sucessivamente passando por crises cambiais, sociais, entre outras. “A abertura das economias, aliadas à dependência estrutural do capital especulativo, produziu fragilidades” e sem bases sociais fortes pela ausência de distribuição de renda a primeira onda neoliberal ruiu, mesmo com a “grande mídia mercantil” fazendo uma defesa ferrenha do modelo fracassado. Todavia, o neoliberalismo deixou legados de vertente ideológica: produziu uma “fragmentação social e cultural [...] em toda a imensa massa da população” e alienou as pessoas quanto a sua capacidade de agência histórica e política. As consequências desses legados são vistas ainda hoje com a dificuldade da “capacidade de manifestação, de negociação, de apelo à justiça, de construção de força política, [...] de identificação com o mundo do trabalho e com a sua cultura”, abrindo espaço para a ausência de pensamento crítico, ou seja, entregando os indivíduos a ideologia artificial de culto a “globalização, a tecnologia, a competição e a riqueza”. Nessa parte do texto recordei de uma composição brasileira dos anos 80 que ilustra bem o resultado da alienação e da fragmentação sociocultural:
Ultraje a Rigor (1983): "A gente não sabemos; Escolher presidente; A gente não sabemos; Tomar conta da gente; A gente não sabemos; Nem escovar os dente; Tem gringo pensando; Que nóis’ é indigente; A gente faz carro; E não sabe guiar ;A gente faz trilho; E não tem trem prá’ botar; A gente faz filho; E não consegue criar; A gente pede grana; E não consegue pagar; Inúteu’!; A gente somos inúteu’!".

Essa sensação de inutilidade construída fez com que mesmo com a “capacidade tecnológica para construir ‘outro mundo’” a sensação de impotência se impusesse, compondo uma realidade inevitável.
Posto essa curta explanação, é conveniente trazer a divisão de períodos que o autor traz: “surgimento, consolidação e crise”. Se faz necessária a crítica: E. Sader coloca em uma mesma fase (surgimento) os governos Thatcher-Reagan e a ditadura de Pinochet. Pela diferença clara entre regimes democráticos e autoritários talvez caiba o acrescimento de mais uma fase anterior ao surgimento, uma fase embrionária que abarque o Chile pinochetista. Feita a crítica, a primeira fase, o surgimento, engloba neoliberalismos mais duros: Chile, Estados Unidos e Inglaterra. A segunda fase, a consolidação, é marcada pela hegemonia mundial com o neoliberalismo adentrando o eixo político conhecido por “terceira via”, as socialdemocracias, sob liderança de nomes como FHC, Fujimori, Andrés Pérez, entre outros. Apresentavam versão menos dura que o neoliberalismo ortodoxo, onde ainda havia espaço para medidas de bem-estar social. Todavia, essa fase se esgota já nos anos 1990, como descrito anteriormente.
Nesse cenário de deterioração do neoliberalismo do início do século XXI, governos de espectro político fervilharam por toda a América Latina. Sader os nomeia “pós-neoliberais”, “híbridos” que se sustentam na união de forças de diversas vertentes, ocupando as brechas do neoliberalismo com políticas sociais e integração regional. Um curto parêntese para o protagonismo chinês, que com o crescimento galopante se mostrava como uma opção anti-estadunidense para a diversificação das relações comerciais.
Lula, Evo Morales, Rafael Correa, entre outros são os nomes dessa nova fase pós-neoliberal. A América Latina viveu um período dourado, com lideranças alinhas à integração regional, sobrepondo a solidariedade ou livre-comércio. Começava-se a caminhar para uma ruptura com o neoliberalismo. Todavia, apesar da aparente estabilidade, essas lideranças enfrentavam forte oposição interna de uma direita neoliberal que começava a recuperar seu folego e “lançou mão das esferas em que sua hegemonia não havia sido atingida [...]: o poder econômico e o midiático”. Acusavam as lideranças pós-neoliberais de corrupção, ameaça de liberdade de imprensa, desabastecimento, entre outras insinuações a depender do local. O pensamento conservador renasce com “a inflação e a violência”. A analise do autor se encerra nesse ponto, as próximas observações que E. Sader elaboração são projeções: possíveis eleições da oposição ou continuação dos regimes; o interesse mundial na América Latina pela capacidade energética e pela força do agronegócio; o medo dos Estados Unidos pela capacidade impar latino-americana de uma integração alheia ao restante do mundo, entre outras possíveis realidades. Todavia, já vivenciamos os anos que o autor tenta predizer.
A partir de 2014 os governos do espectro pós-neoliberais começaram a perder força. Piñera foi eleito no Chile, apesar da reeleição a Dilma Roussef é derrubada por um golpe no Brasil, Macri é eleito na Argentina, entre outros. A direita neoliberal ressurgiu e hoje, 2019, tenta se impor a força. Como demostrado no paragrafo inicial do texto: a América Latina entra em convulsão outra vez e o futuro parece a cada dia mais sombrio. O que esperar quando um presidente pós-neoliberal é forçado a renunciar no seu país e presidentes neoliberais se mantem no poder mesmo com ampla rejeição popular? E até mesmo o socialismo do século XXI, uma alternativa trazida pelo autor, encabeçado por Hugo Chavez foi levado a lama por uma ditadura. O presente é violento e o futuro parece aterrorizante. O neoliberalismo perdeu a capacidade de chegar ao poder por vias democráticas e não se preocupa com o autoritarismo, a sua flexibilidade para a manutenção dos privilégios é incrível e não deve ser desprezada. Enquanto acadêmicos, talvez o nosso papel esteja em, como fez T. Piketty, mostrar opções alternativas para a vida em sociedade, afinal, como afirma o professor Ladislau Dowbor no artigo “A burrice no poder” (2018) “não estamos aqui sugerindo perfeita igualdade, mas sim uma situação menos obscena, em que cada pessoa possa valer pelo que vale como pessoa, e ter as suas oportunidades de crescer. [...] Temos os recursos, temos as tecnologias, sabemos como fazer, e custa muito pouco. É exagero falar de ignorância?”. Quem escreve esse relatório acredita que não é exagero. Não é mais uma questão econômica de espectros a esquerda ou a direta, mas é uma questão de dignidade humana. Encerro com mais uma composição musical nacional que ilustra a situação para qual tendemos:
Augusto Boal e Geny Marcondes (1961): “Passo a vida trabalhando; Dando duro no batente; A comer de vez em quando; Isso é vida minha gente‎;Se ser livre é passar fome; Não basta ser livre, não; Pro’ patrão pedi aumento; Só levei um pontapé; Sem comida e sem vintém;  E agora, sêo’ José?‎; Se ser livre á passar tome; Não basta ser livre, não; No xadrez não me quiseram; Posse fome lá pra fora; se estou livre, estou faminto; Com a barriga dando hora.‎; Sem comida a liberdade; É mentira. não é verdade; Zé da Silva é um homem livre; O que, o que, o que‎;Zé da Silva é um homem livre‎;O que ele vai fazer?‎;O que?‎;Livre é livre, é livre.‎;Livre, livre, livre; É livre!‎;Aqui! Que eu sou livre.”.





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