terça-feira, 26 de novembro de 2019

Relatório: Neoliberalismo, neodesenvolvimentismo, socialismo


KATZ, Claudio. Neoliberalismo, neodesenvolvimentismo, socialismo. 1° ed. São Paulo: Expressão Popular, 2016.

Claudio Katz é economista argentino, professor da Universidade de Buenos Aires e um crítico ferrenho aos resultados da política neoliberal na Argentina e na América Latina, com uma orientação claramente à esquerda. O autor de diversas obras, entre elas “Neoliberalismo, neodesenvolvimentismo e socialismo” (2016), deixa evidente sua posição progressista, apesar de não poupar críticas as várias vertentes políticas que chegaram ao poder nas primeira e segunda décadas do século XXI.
Quanto a obra alvo desse resumo (“Neoliberalismo, neodesenvolvimentismo e socialismo”, 2016), os três capítulos elencados tem objetivos completamente diferentes. O primeiro, intitulado “Economia e classes”, se ocupa com a reinserção da América Latina na econômica global pós-crise de 2008. O segundo, intitulado “As economias centrais”, aborda o panorama do que chamamos de países desenvolvidos, demarcando os conflitos internos e externos pelos quais esses países trafegam.  E no terceiro, “Ascendente, intermediários e periferia”, o autor se debruça principalmente sobre a China e as heteronomias entre as divisões que são feitas do globo.
Para tal analise, C. Katz observou na longa duração as sincronias e diacronias que marcaram a história latina, pontuando inicialmente os fatores que se tornaram de certa forma hegemônicos na última década e promoveram “grandes transformações econômicas, socais e políticas [...] na região”, sendo eles: a “política exterior independente, a multiplicação de governos progressistas e o retrocesso da direita”.
Vale destacar que essa multiplicação de governos progressistas não significou o abandono dos moldes neoliberais, até porque muitos acabaram reforçando “um padrão de especialização exportadora”, visto que a região foi reinserida num contexto mundial como “provedora de produtos básicos”. Nesse sentido, é de grande relevância o papel que as commodities tiveram no crescimento latino americano, mesmo que a intensificação desse sistema tenha gerado encargos aos pequenos produtores. Dentro das commodities, são exemplos importantes a soja, frutas e vinhos e a mineração, sendo essa última, em maior escala que as outras duas, um catalisador dos efeitos da mudança climática. Pós-crise de 2008, a dependência dos países sobre as commodities intensificou-se, fortalecendo o modelo agroexportador e aumentando a “fragilidade estrutural” dos países pela “afluência de investimentos estrangeiros” e pela ausência de liderança desse setor (agroexportador) nas lutas nacionais, muito pelo contrário: o “agrobusiness” praticou e pratica uma exploração voraz do assalariado e renega terras aos pequenos e médios produtores, gerando grande êxodo do campo para as cidades.
Ainda nesse eixo dos prejuízos da estrutura agroexportadora, é valido lembrar algo que o autor destaca e que está extremamente evidente em 2019: a afirmação da informalidade como norma no mercado de trabalho pelas massas crescentes de “excluídos urbanos”. As consequências desse modelo são não só a informalidade, mas um aumento da criminalidade e a expansão da pobreza, acompanhada da perda de proteção social para os empregados. À essas questões os governos deram respostas com programas de assistência social que não tratavam a causa dos problemas, e, até mesmo essas medidas estão passando, atualmente, por desmonte.
Outra consequência é um certo abandono do mercado interno, posto que a exportação recebe um enfoque maior e “prefere a redução de custos à ampliação do consumo [interno]”. O resultado direto é uma reorganização dos grupos locais entorno do financiamento externo e da capitalização da bolsa, em uma relação que beneficia muito mais os países de origem do capital. Todavia, Katz afirma que, diferente do que pode parecer e do que alguns podem afirmar, a América Latina não é mero fantoche dos países desenvolvidos: há ímpeto para gerar desenvolvimento local, todavia os padrões de competição, investimento e exploração atuam como freio para esse movimento, promovendo uma incapacidade para alcançar tal objetivo.
Quanto a indústria, muito similar ao que se assiste hoje (2019) no Brasil, a América Latina enfrentou um processo de “reprimarização”, com uma forte deterioração dos investimentos em infraestrutura e predomínio industrial estrangeiro que tem como principal insumo a força de trabalho barata. As grandes multinacionais deixaram seus países de origem em busca de garantias trabalhistas e ambientais mais flexíveis, promovendo no local onde se instalam uma criminalização da sindicalização e destruição ambiental.
Ainda sobre as receitas dos países latino americanos, o autor destaca o papel das remessas e do turismo. Quanto a primeira, é deixado evidente há uma “situação dual de rendas produzidas em um país e consumidas em outro”. Já quanto ao turismo, o que se observa é o aumento do foço entre ricos e pobres evidenciado pela construção imaginária de uma “periferia do prazer”, reavivando o “racismo e o elitismo” em práticas de turistas vindos das “economias centrais”.
Todavia, o texto revela que, apesar de indicadores sociais muito mais elevados que os latino americanos e periféricos em geral, as economias centrais convivem com a crise como fato cotidiano onde “sinais promissores de reanimação se dissolvem com o reaparecimento de tempestades financeiras e paralisações produtivas”. Um dos fatores que contribuíram para essa situação foi o tratamento dado as crises pelo Estado, impedindo a quebra dos grandes bancos com rombos nos cofres públicos. As vítimas da crise convivem com a pobreza, o desemprego e a queda dos salários enquanto os responsáveis não sofrem punições parelhas aos problemas que causaram.
Os Estados Unidos, onde a crise explodiu, continua com “a primazia do dólar no comércio e nas finanças” mundiais de tal forma que “definem o ritmo e as características da reforma do sistema financeiro” global. Com esses fatos e a reabilitação do FMI como “auditor das economias nacionais”, os EUA tiveram e tem uma capacidade de socializar mundialmente suas crises. Mas essa capacidade apresenta também pontos negativos no território norte americano. Obviamente que o gigante capitalista não permitiria que seus ricos participassem do processo de partilha dos prejuízos, logo são os trabalhadores que sofrem com os impactos internos sob forma de ampliação das desigualdades sociais e desemprego.
A supremacia norte americana ainda conta com o fator bélico para reafirmação do seu protagonismo econômico, atuando como “policial do planeta” numa política de “guerra perpétua” que não se incomoda em ferir liberdades democráticas. No plano econômico, a atuação se dá por “sufocamento” do adversário, obrigando-o a negociar e perseguindo com sansões econômicas qualquer um que tente o desenvolvimento bélico de forma autônoma, rememorando em parte o Tratado de Versalhes (1919), com a completa humilhação da Alemanha, que aparece no livro como potencia que passou a encabeçar o “velho mundo”.
Num contexto em que a Europa se encontra presa “em um círculo vicioso de quebras bancárias e déficit fiscal”, a Alemanha despontou na União Europeia com o aumento da produtividade acima dos salários e a corrosão das garantias sociais. O panorama geral, inaugurado na ultima década do século XX, é de privatização e desregulamentação, mesmo que sem resultados efetivos sobre a estagnação e o desemprego, usando “a permanência no euro para justificar a destruição do Estado de bem-estar”. Nesse sentido, a União Europeia acaba servindo como ferramenta de socialização dos problemas, tornando a desigualdade econômica regional e a recriação da ordem centro-periferia uma realidade interminável.
Os problemas internos são numerosos: já não se pode mais falar de um pacto federativo de peso, mesmo que seja de reinvindicação popular, posto que qualquer ideologia federativa para a “Europa do capital” se tornou incompatível com a realidade neoliberal. Os efeitos mais imediatos foram: (1) o domínio de “uma casta supranacional”; (2) a perda geral de soberania econômica e popular; e (3) a aceleração das privatizações, base do modelo e Hayek. Evidentemente a população não aceitou e nem aceita “férias da democracia” em completo silêncio, o que fica comprovado pelo “prestígio das correntes eurocéticas” que persiste até hoje (2019).
Katz traz ainda exemplos da África e da Ásia, todavia esses continentes assistem em grau diferentes a deterioração que a inserção da lógica neoliberal causa, com os prejuízos já citados anteriormente em maior ou menor escala. Garantindo alguma celeridade à esse resumo, o último capítulo sugerido para a leitura se ocupa com analisar as contradições que os nomes podem gerar, aglutinando em um mesmo grupo países com características muito diferentes, como é o caso chinês, posto no grupo dos emergentes.
Descrita como a nova “oficina do mundo”, a China encontrou nas crises do século XXI a oportunidade de rivalizar os EUA como principal potencia econômica. O crescimento cavalar (com média anual de 10%) teve inicio com reformas mercantis e planificação econômica em meados da década de 80. A virada para o capitalismo ocorreu pós-1990 com privatizações e a formação de uma classe capitalista capaz de realizar investimentos em empresas nascentes. Os números demonstravam uma triplicação da renda per capita, todavia a pratica revelou um aumento dos níveis de desigualdade social e retrocessos das conquistas populares, interrompendo o ciclo de progresso conquistado pela revolução. Todavia a formula de crescimento chinesa encontrou/a obstáculos internos e externos, mas talvez o principal deles esteja na “altíssima taxa de investimento”. Para o restante do mundo, é importante lembrar que o modelo exportador chinês não é agregador nem inclusivo.
Internamente, apesar de duas linhas diferentes (uma mais focada no comercio exterior e outra no desenvolvimento interior), todos os dirigentes concordam com uma “estratégia geopolítica defensiva” que não visa competir na vertente bélica com os EUA. “A China inunda o planeta de capitais e mercadorias, mas não de Forças Armadas e conspiradores”: essa frase define com qualidade o paradigma chinês. Ao contrário do que possa parecer, um confronto China-EUA não seria interessante para nenhuma das potencias, posto que há uma “codependência” entre as duas. Ao longo desse ano (2019) o mundo assistiu um início de confronto comercial que aparentemente ainda terá muitos desdobramentos. Mas, independente do conflito com os EUA, a China “incide diretamente sobre a marcha do ciclo global”, o que a diferencia dos demais países emergentes.
Com exceção da China, obviamente, o que une os emergentes são as taxas de crescimento variáveis e incertas, muito dependentes do “vaivém das commodities” e algum protagonismo regional efetivo ou projetado, todavia essa classificação “emergentes” já tem caído em desuso, por ser um conceito um tanto quanto vago, posto que os ditos “emergentes” apresentam mais diferenças que semelhanças. Todavia, considerando esses países intermediários, a realidade é que vivem tropeçando em segmentações que impedem o crescimento geral por meio de “redes protecionistas” ou “coalizões belicistas”; pelo contrário: buscam um nicho separado dentro da ordem neoliberal, por vezes aliando-se de forma pouco compensatória com potências maiores. O BRICS é um exemplo dessa segmentação: apesar de buscarem “confluências frente a contingencias de curto prazo” não avançam “em compromissos significativos”.
Ainda sobre esse grupo (BRICS): que união curiosa! Em um mesmo grupo estão: a (1) Rússia com o “totalitarismo democrático” de Putin que se mantem como potência não por índices sociais e econômicos, mas por sua indústria bélica; a (2) Índia, um gigante com mais de 1 bilhão de pessoas que tem uma série de problemas internos sem resolução e vivencia índices sociais aterrorizantes (77% da população na pobreza; 40% das crianças subnutridas; entre outros); a (3) África do Sul e o seu “capitalismo negro” neoliberal que prega o “renascimento africano”, presente no grupo não por índices, mas por alguma iniciativa de protagonismo regional; o (4) Brasil com um tímida guinada a esquerda, conservando os moldes neoliberais em associação ao progressismo dos governos do Partido dos Trabalhadores; e a (5) China, já muito descrita anteriormente.
Por fim, as margens do sistema mundial encontram-se os países periféricos, marcados pelo flagelo da fome que é reforçado pela divisão internacional do trabalho voltada para transferências de recurso da periferia para o centro. O mundo árabe é um representante emblemático dessa periferia: com países ainda sob o sistema de monarquia absolutista, vivencia um “neoliberalismo furioso”, marcado por privatizações e flexibilidade das leis trabalhistas (permitindo inclusive trabalho escravo), além da perigosa combinação subdesenvolvimento-rentismo, que promove pobreza e desigualdade, servindo como chamariz para mais multinacionais que enxergam na miséria a possibilidade de obtenção de força de trabalho barata. A flexibilidade abre caminho para a superexploração com “repressão e assassinato de sindicalistas”.
Como sugestão, para a conclusão desse curto resumo, recomenda-se o filme “Coringa” lançado em 2019. Dentro das paredes da universidade somos todos privilegiados, e os livros, por mais bem escritos que sejam por vezes transformam pessoas em dados, em números perdidos entre uma página e outra. A analise factual que C. Katz abre caminho para a visualização do problema que é de carne e osso, que está deitado na calçada e que muitas vezes ignoramos ao correr para apresentar um seminário. No filme “Coringa”, apesar de retratar a história de um anti-herói, a questão é que a ausência do Estado e a indiferença social chegaram a um pouco insustentável em que a única saída se tornou a loucura. Nesse sentido “Coringa” não é uma pessoa, mas sim uma ideia: o ponto de ruptura de um sistema excludente, como é o neoliberalismo que Katz analisou com maestria. Nas últimas manifestações pelo mundo diversas pessoas utilizaram a máscara do palhaço que protagoniza o filme e talvez isso seja um alerta de que um limite está sendo ultrapassado. O estado, a economia, os economistas, não deveriam trabalhar para o Mercado, praticamente endeusado nas correntes neoliberais, mas sim para as pessoas e para a garantia da dignidade humana. Concluo propondo a seguinte reflexão: salve todas as pessoas e queime todas as instituições, todo o dinheiro, todos os livros de economia. Deixe ruir até que não sobre nada além de cinzas. As pessoas vão criar instituições, vão inventar moedas e escrever livros. Salve todas as instituições, todo o dinheiro e todos os livros de economia. Queime todas as pessoas: crianças, adultos e idosos. Deixe ruir até que não sobre nada além de cinzas. O que vai acontecer?




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