terça-feira, 26 de novembro de 2019

RELATÓRIO: DA CATECHESE DOS ÍNDIOS NO BRASIL, LEOLINDA DALTRO


RELATÓRIO: DA CATECHESE DOS ÍNDIOS NO BRASIL, LEOLINDA DALTRO

FRANCISCO OCTÁVIO BITTENCOURT DE SOUSA

Antes de mais nada, algo que me incomodou muito foi o fato de o livro parecer uma propaganda do trabalho da professora Leolinda Daltro, principalmente na parte dos resultados. Talvez isso se explique por ser um diário.
Com esse relatório pretendo evidenciar as imagens do índio e as representações dos sertanejos, afim de poder comparar com relatórios com o mesmo objetivo sobre outras obras analisadas.
Quanto a organização do livro: ele é dividido em duas partes. Na primeira, L. Daltro narra a viagem que fez acompanhada do Capitão Sepé e outros indígenas catequisados, afim de falar com o presidente da república (Prudente de Moraes) sobre um projeto maior de catequização, posse de terras, apoio financeiro, entre outras coisas. Durante a viagem, os nativos passam por todo tipo de adversidades, possivelmente evitáveis caso não fossem alvo de preconceito. A segunda parte do livro se volta para os resultados obtidos pelo projeto de Leolinda Daltro. É uma parte composta por cartas e relatórios de todo dia, desde filhos a entidades internacionais (é à essa parte que volto a critica inicial).
No capitulo intitulado “Explicação necessária”, algo similar a uma introdução, já se encontram descritos tanto índios como sertanejos. Os índios e o estilo de vida são descritos na perspectiva iluminista do bom selvagem, vivendo na “simplicidade e no encanto”, alvo da hostilidade dos “altruísticos” sertanejos, que se tornaram “fanáticos e ignorantes” graças ao trabalho dos “hipócritas” servos de Deus (DALTRO, 1920).
Essas imagens se repetem inúmeras vezes ao longo do livro: os que concordam com Leolinda Daltro e seu projeto de catequização leiga, “[...] obra santa [...]”, partilham da mesma visão, acrescentando graus diferentes de carência de tutela aos nativos “[...] pobres e [...] infelizes aborígenes perdidos na espessura do sertão”. Já os que discordam do projeto, hora afirmam que os índios são selvagens sem aptidão a civilização, bárbaros que pouco diferem de animais e cuja a única solução seria a morte, por serem empecilho ao avanço da sociedade. Todavia, essa visão dissonante vai aparecer com um pouco mais de força na segunda parte do livro (DALTRO, 1920).
A afirmação da catequização proposta por Leolinda Daltro ser “obra santa” é intrigante, pois deveria ser o exato oposto, visto que a catequização religiosa era arduamente combatida pela professora. Já a afirmação de que os nativos estão “perdidos na espessura do sertão” é de uma ignorância absurda: é ignorar toda a história dos povos originais do sertão.
Na primeira parte o bom selvagem, disposto a compartilhar a civilização, domina a cena. O próprio Capitão Sepé é um exemplo descrito como “magnífico exemplo da catequese”, vindo de uma aldeia de “ex-selvagens que vivem exemplarmente entregues ao trabalho, numa ordem admirável [...] tem excelentes maneiras levando mesmo em vantagem [...] indivíduos civilizados de nascença [...]”. Só essa passagem já mereceria um estudo: ela resume o grande objetivo do governo a época, ou seja, transformar o índio em trabalhador. É justamente esse projeto que Leolinda Daltro e o Capitão Sepé visam dar continuidade com o apoio do presidente (DALTRO, 1920).
Já os sertanejos são ironicamente descritos como “bondosos”. Ironicamente pelo fato de como é descrito a hospedagem oferecida por esses aos viajantes: “A dureza das pedras, a humidade infecta [...] a vizinhança afrontosa [...] a sentinela armada [...], eis a comodidade oferecida [...]” (DALTRO, 1920). Todavia, de acordo com a autora, os sertanejos não são intrinsicamente maus, se tornaram assim pelo contato com os missionários. A acusação contra os missionários é no mínimo curiosa, pois eram esses que competiam pelo projeto de catequização e domínio dos nativos.
Apesar de muito encorajada a continuar a viagem pelos sertões com seu projeto de catequização, recebendo grandes quantias em doação, Leolinda Daltro também enfrentava oposição a sua missão. A oposição, geralmente, vinha acompanhada de afirmação sobre a selvageria dos nativos e o fracasso dos jesuítas ao tentar civiliza-los: “[...] o selvagem do Brasil é indomável e a prova é que os santos missionários jesuítas não conseguiram, no decurso de centenas de anos, com os recursos materiais necessários e o apoio dos governos, educar convenientemente, ao menos, um único selvagem [...]” (DALTRO, 1920).
A oposição também encontrava embasamento para sua crítica no fato da professora Leolinda Daltro ser uma mulher, fazendo afirmações do tido “É tão extraordinário, tão assombroso mesmo, o que D. Leolinda Daltro acaba de fazer, que não posso compreender nem aceitar se não por uma das muitas modalidades do histerismo ou da loucura!” (DALTRO, 1920).
Outros temiam pela vida da professora, trazendo como justificativa a perseguição que L. Daltro sofria dos missionários locais ou as dificuldades da vida no sertão. Enfim, a professora continuou a viagem, retornando ao Rio de Janeiro anos mais tarde e tendo o trabalho reconhecido nacional e internacionalmente.
Todavia, aqui já é possível identificar varias características do que nos ocupada nesse curto relatório: índios e sertanejos. Os índios podem expressos em dois grandes grupos, um definido por Daltro e seus seguidores, e outro definido pelos que não concordavam com a viagem a professora. No primeiro caso o índio é um ser disposto a receber a civilização de abraços abertos, com anseio para se tornar um trabalhador rural e para aprender os costumes da sociedade citadina. O maior exemplo desse bom selvagem seria o próprio Capitão Sepé, o projeto magnifico da catequização, disposto a dar continuidade ao projeto que transformava os nativos em camponeses.
Dentro dessa seção “bom selvagem” se encontraram outras chaves de analise: como a aldeia de Sepé, descrita como “ex-selvagem” e grupos do entorno dispostos a se tornar civilizados.
O outro espectro em que o nativo aparece é no da selvageria, como um ser indomável, violento, empecilho ao avanço civilizatório. Apesar menos frequente e de não ter conseguido uma proeminência nas políticas nacionais, cabe citar para demonstrar que essa chave de pensamento estava presente.
Já o sertanejo aqui é posto em uma grande seção: eles não são ruins ou malvados por natureza, mas o contato com os “hipócritas” a serviço de Deus (os missionários), os tornavam fanáticos e violentos. Indiretamente são descritos como resistentes e de muita coragem, posto que para a realização da viagem pelo sertão essas características seriam necessárias à professora, logo: se há pessoas vivendo ali é porque possuem essas características.

FONTES
DALTRO, Leolinda. Da catequese dos índios no Brasil. Notícias e documentos para a História (1896-1911). Rio de Janeiro: Typografia da Escola Orsina da Fonseca, 1920.

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