III
RESUMO - TEORIA ANTROPOLÓGICA
O século XIX foi marcado
por certa estabilidade em um mundo guiado pela Europa, não é ao acaso que o
período que corresponde ao final desse século e começo do seguinte ficou
conhecido como belle époque[1]. Havia um certo equilíbrio
de poder entre as grandes potências do globo, o mundo vivia uma fase de
intensas inovações tecnológicas (cinema, automóvel, telefone, entre outros) e a
discussão política entrou em hibernação. Todavia, desenvolveram-se também, em
grande escala, a indústria bélica, o que contribuiu para acentuar o fosso entre
nações desenvolvidas e nações subdesenvolvidas[2] que fortalecia os
nacionalismos internos de cada Estado. O resultado disso? A eclosão da Primeira
Grande Guerra em 1914.
É nesse período em que
viveu o sociólogo Émile Durkheim. Talvez o período de tranquilidade que tenha
vivido na infância e a conturbada geopolítica internacional que acirrava cada
vez mais a rivalidade entre nações e fortalecia conflitos internos (aumentando
taxas de suicídio e espraiando a pobreza) tenha influenciado diretamente na
escrita desse francês que buscava fontes de consenso e solidariedade entre os
membros da sociedade.
Como a sociedade em que
vivia estava passando por um momento de extrema instabilidade, Durkheim recorre
ao estudo de “sociedades primitivas”, teoricamente mais simples e mais
previsíveis, onde a consciência individual é subjugada pela consciência
coletiva e os “germes” das categorias de entendimento estão mais evidentes,
lendo etnografias de outros pesquisadores. Nesse estudo, o francês encontra
sistemas de representações que tratam do mundo e do próprio indivíduo formas de
organização social que auxiliam na criação de laços para a coesão social
(DURKHEIM, 2015).
Esses “sistemas de
representações que tratam do mundo e do próprio indivíduo” E. Durkheim chamou
de “religiões”. As religiões, eminentemente sociais, além de teoria do
conhecimento, eram formas de contemplação da própria sociedade, formas de falar
delas mesmas. Eram importantes tanto na criação de laços para a coesão social (“solidariedade”),
atuando sobre a moralidade pública, quanto para a divisão do trabalho social
(guiada por laços de parentesco). Era um “fato social”, ou seja, estavam acima
do indivíduo, oprimindo-o, mas possibilitando-o viver em sociedade e, a partir
da vida social, dar os primeiros passos rumo a vida lógica/produção de cultura
(DURKHEIM, 2015).
Com essa teoria, apresentada
por meio de modesto resumo acima, Durkheim tornou-se um cânone da sociologia e
contribuiu para inúmeras áreas do conhecimento, entre elas, a antropologia. O
objeto empírico formulado, ou seja, a discussão do “mundo primitivo” e da
diversidade foi o grande legado do francês para os antropólogos. Um antropólogo
que bebeu bastante da fonte de Durkheim é Marcel Mauss, sobrinho do grande
sociólogo.
M. Mauss desenvolveu,
junto de Henri Hubert, um estudo sobre “magia” como um fenômeno social. Na
mesma linha teórica do tio, Mauss afirma que na magia é possível verificar
princípios iniciais/germes de ciência, técnica e religião, sendo a magia uma
mistura concreta dos três voltada para a vida social, para a resolução de
conflitos cotidianos. Ele acredita que pode “encontrar, na origem a magia, a
forma primeira de representações coletivas que se tornavam, depois, os
fundamentos do entendimento individual". Está ligada a “mana”: uma força
mística e fluida, que abarca misteriosamente todas as coisas e seres do
universo (magia, atos, representações, o mágico). Tem diferentes expressões de
sociedade para sociedade e é um construto social de poder/legitimidade, pois
vem necessariamente da força coletiva. Nesse sentido, é capaz de mobilizar
indivíduos para algo que não necessariamente é positivo para todo o coletivo
(MAUSS, 2003a).
A construção social de um
mágico é um exemplo dessa mobilização: o mágico é um sujeito que demonstra o
mana, todavia esse processo precisa ser reconhecido por um coletivo. Nenhum
sujeito afirma-se mágico, ele é reconhecido mágico pela sociedade. O
reconhecimento não necessariamente vira com prestígio, tudo que envolve poder
acaba por atrair medo, logo o mágico pode ser expurgado pelo fato de ser
reconhecido como mágico. Ou, por outro lado, pode ser exaltado como um grande
líder (MAUSS, 2003a).
O mana, e por
consequência a magia, são dificilmente compreendidos caso fiquemos presos a
visão científica ocidental, pois ele mistura total técnica a misticismo para
oferecer explicações de mundo alternativas com eficácia “sui-generis”. É desse
pressuposto que parte uma parte importante da contribuição de M. Mauss para a
antropologia: a busca por uma teoria etnográfica dos coletivos estudados e não
a “tradução” para a ciência ocidental. Mesmo preso a dualidade moderno e
primitivo, como o tio, ao reconhecer que a ciência moderna/ocidental não tem
suporte para tudo (como se pensava e afirmava), Mauss dá um primeiro passo rumo
a um reconhecimento de saberes não hegemônicos, de saberes que transcendem o
universo acadêmico encastelado (MAUSS, 2003a).
Ao dizer que o mana é uma
“mistura total”, abre-se espaço para uma outra discussão postulada por Marcel
Mauss sobre “fato social total”, ou seja, algo com implicações em todas as
esferas de poder e convivência de uma sociedade. A “dádiva” é um fato social
total, um sistema de “prestação de trocas”, compreendido por “dar-receber-retribuir”
em um ciclo infinito, para além de questões somente humanas. É a formulação (ou
quebra) de um contrato (“os contratos fazem-se sob a forma de presentes”), que
quando demonstrada “prestação positiva” tem por resultado a construção de
alianças, respeito mútuo e generosidade. Todavia, quando o ciclo é quebrado e a
reciprocidade passa a ser “agonística”, os resultados são de cunho negativo,
sendo entendido como traição e podendo levar a guerra (MAUSS, 2003b).
O “fato social total” é
importante não só para a antropologia, mas para grande parte das áreas de
conhecimento por se tratar de uma categoria analítica totalizante, a visa
abranger não apenas uma característica do coletivo estudado, mas essa
característica como parte do todo, com resultados em diversas esferas.
FONTES
HASTINGS,
Max. Catástrofe: 1914 - a Europa vai à guerra. Trad. Berilo Vargas. Rio de
Janeiro: Intrínseca, 2014.
DURKHEIM,
Émile. Da Divisão do Trabalho Social. São Paulo: Martins Fontes, 2015[1893].
MAUSS,
Marcel. Esboço de uma teoria geral da magia. In; Sociologia e Antropologia, São
Paulo, Cosac & Naif, 2003a.
MAUSS,
Marcel. Ensaio sobre a dádiva: forma e razão da troca nas sociedades arcaicas. In;
Sociologia e Antropologia, São Paulo, Cosac & Naif, 2003b.
[1] Compreende o período entre 1871 e
1914, descrito por Max Hastings (2014) como período marcado por "[…]
avanços tecnológicos, sociais e políticos alastravam-se pela Europa e pelos
Estados Unidos numa escala nunca vista em qualquer outro período, um piscar de
olhos da experiência humana. Einstein anunciou a sua teoria especial da
relatividade, Marie Curie isolou o rádio, e Leo Baekeland inventou a baquelita,
o primeiro polímero sintético. Telefones, gramofones, veículos motorizados,
sessões de cinema e casas com eletricidade tornaram-se lugar-comum entre
pessoas abastadas nas sociedades mais ricas. Jornais de circulação em massa
adquiriram influência social e poder político sem precedentes" (HASTINGS,
2014).
[2] Hoje já não se utiliza mais a
divisão “desenvolvido e subdesenvolvido”. Cabe utiliza-la apenas para um
período histórico demarcado no qual está incluso o eixo desse texto.
Nenhum comentário:
Postar um comentário