terça-feira, 26 de novembro de 2019

A ESCOLA DE ANTROPOLOGIA FRANCESA


III RESUMO - TEORIA ANTROPOLÓGICA

O século XIX foi marcado por certa estabilidade em um mundo guiado pela Europa, não é ao acaso que o período que corresponde ao final desse século e começo do seguinte ficou conhecido como belle époque[1]. Havia um certo equilíbrio de poder entre as grandes potências do globo, o mundo vivia uma fase de intensas inovações tecnológicas (cinema, automóvel, telefone, entre outros) e a discussão política entrou em hibernação. Todavia, desenvolveram-se também, em grande escala, a indústria bélica, o que contribuiu para acentuar o fosso entre nações desenvolvidas e nações subdesenvolvidas[2] que fortalecia os nacionalismos internos de cada Estado. O resultado disso? A eclosão da Primeira Grande Guerra em 1914.
É nesse período em que viveu o sociólogo Émile Durkheim. Talvez o período de tranquilidade que tenha vivido na infância e a conturbada geopolítica internacional que acirrava cada vez mais a rivalidade entre nações e fortalecia conflitos internos (aumentando taxas de suicídio e espraiando a pobreza) tenha influenciado diretamente na escrita desse francês que buscava fontes de consenso e solidariedade entre os membros da sociedade.
Como a sociedade em que vivia estava passando por um momento de extrema instabilidade, Durkheim recorre ao estudo de “sociedades primitivas”, teoricamente mais simples e mais previsíveis, onde a consciência individual é subjugada pela consciência coletiva e os “germes” das categorias de entendimento estão mais evidentes, lendo etnografias de outros pesquisadores. Nesse estudo, o francês encontra sistemas de representações que tratam do mundo e do próprio indivíduo formas de organização social que auxiliam na criação de laços para a coesão social (DURKHEIM, 2015).
Esses “sistemas de representações que tratam do mundo e do próprio indivíduo” E. Durkheim chamou de “religiões”. As religiões, eminentemente sociais, além de teoria do conhecimento, eram formas de contemplação da própria sociedade, formas de falar delas mesmas. Eram importantes tanto na criação de laços para a coesão social (“solidariedade”), atuando sobre a moralidade pública, quanto para a divisão do trabalho social (guiada por laços de parentesco). Era um “fato social”, ou seja, estavam acima do indivíduo, oprimindo-o, mas possibilitando-o viver em sociedade e, a partir da vida social, dar os primeiros passos rumo a vida lógica/produção de cultura (DURKHEIM, 2015).
Com essa teoria, apresentada por meio de modesto resumo acima, Durkheim tornou-se um cânone da sociologia e contribuiu para inúmeras áreas do conhecimento, entre elas, a antropologia. O objeto empírico formulado, ou seja, a discussão do “mundo primitivo” e da diversidade foi o grande legado do francês para os antropólogos. Um antropólogo que bebeu bastante da fonte de Durkheim é Marcel Mauss, sobrinho do grande sociólogo.
M. Mauss desenvolveu, junto de Henri Hubert, um estudo sobre “magia” como um fenômeno social. Na mesma linha teórica do tio, Mauss afirma que na magia é possível verificar princípios iniciais/germes de ciência, técnica e religião, sendo a magia uma mistura concreta dos três voltada para a vida social, para a resolução de conflitos cotidianos. Ele acredita que pode “encontrar, na origem a magia, a forma primeira de representações coletivas que se tornavam, depois, os fundamentos do entendimento individual". Está ligada a “mana”: uma força mística e fluida, que abarca misteriosamente todas as coisas e seres do universo (magia, atos, representações, o mágico). Tem diferentes expressões de sociedade para sociedade e é um construto social de poder/legitimidade, pois vem necessariamente da força coletiva. Nesse sentido, é capaz de mobilizar indivíduos para algo que não necessariamente é positivo para todo o coletivo (MAUSS, 2003a).
A construção social de um mágico é um exemplo dessa mobilização: o mágico é um sujeito que demonstra o mana, todavia esse processo precisa ser reconhecido por um coletivo. Nenhum sujeito afirma-se mágico, ele é reconhecido mágico pela sociedade. O reconhecimento não necessariamente vira com prestígio, tudo que envolve poder acaba por atrair medo, logo o mágico pode ser expurgado pelo fato de ser reconhecido como mágico. Ou, por outro lado, pode ser exaltado como um grande líder (MAUSS, 2003a).
O mana, e por consequência a magia, são dificilmente compreendidos caso fiquemos presos a visão científica ocidental, pois ele mistura total técnica a misticismo para oferecer explicações de mundo alternativas com eficácia “sui-generis”. É desse pressuposto que parte uma parte importante da contribuição de M. Mauss para a antropologia: a busca por uma teoria etnográfica dos coletivos estudados e não a “tradução” para a ciência ocidental. Mesmo preso a dualidade moderno e primitivo, como o tio, ao reconhecer que a ciência moderna/ocidental não tem suporte para tudo (como se pensava e afirmava), Mauss dá um primeiro passo rumo a um reconhecimento de saberes não hegemônicos, de saberes que transcendem o universo acadêmico encastelado (MAUSS, 2003a).
Ao dizer que o mana é uma “mistura total”, abre-se espaço para uma outra discussão postulada por Marcel Mauss sobre “fato social total”, ou seja, algo com implicações em todas as esferas de poder e convivência de uma sociedade. A “dádiva” é um fato social total, um sistema de “prestação de trocas”, compreendido por “dar-receber-retribuir” em um ciclo infinito, para além de questões somente humanas. É a formulação (ou quebra) de um contrato (“os contratos fazem-se sob a forma de presentes”), que quando demonstrada “prestação positiva” tem por resultado a construção de alianças, respeito mútuo e generosidade. Todavia, quando o ciclo é quebrado e a reciprocidade passa a ser “agonística”, os resultados são de cunho negativo, sendo entendido como traição e podendo levar a guerra (MAUSS, 2003b).  
O “fato social total” é importante não só para a antropologia, mas para grande parte das áreas de conhecimento por se tratar de uma categoria analítica totalizante, a visa abranger não apenas uma característica do coletivo estudado, mas essa característica como parte do todo, com resultados em diversas esferas.

FONTES
HASTINGS, Max. Catástrofe: 1914 - a Europa vai à guerra. Trad. Berilo Vargas. Rio de Janeiro: Intrínseca, 2014.

DURKHEIM, Émile. Da Divisão do Trabalho Social. São Paulo: Martins Fontes, 2015[1893].

MAUSS, Marcel. Esboço de uma teoria geral da magia. In; Sociologia e Antropologia, São Paulo, Cosac & Naif, 2003a.

MAUSS, Marcel. Ensaio sobre a dádiva: forma e razão da troca nas sociedades arcaicas. In; Sociologia e Antropologia, São Paulo, Cosac & Naif, 2003b.








[1] Compreende o período entre 1871 e 1914, descrito por Max Hastings (2014) como período marcado por "[…] avanços tecnológicos, sociais e políticos alastravam-se pela Europa e pelos Estados Unidos numa escala nunca vista em qualquer outro período, um piscar de olhos da experiência humana. Einstein anunciou a sua teoria especial da relatividade, Marie Curie isolou o rádio, e Leo Baekeland inventou a baquelita, o primeiro polímero sintético. Telefones, gramofones, veículos motorizados, sessões de cinema e casas com eletricidade tornaram-se lugar-comum entre pessoas abastadas nas sociedades mais ricas. Jornais de circulação em massa adquiriram influência social e poder político sem precedentes" (HASTINGS, 2014).
[2] Hoje já não se utiliza mais a divisão “desenvolvido e subdesenvolvido”. Cabe utiliza-la apenas para um período histórico demarcado no qual está incluso o eixo desse texto.

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