sexta-feira, 25 de junho de 2021

CRESCER PARA BAIXO: REFLEXÕES SOBRE O REPLANTIO DA ROSA DO DESERTO

 

Nesse texto analisaremos os cuidados com rosas do deserto em ambiente doméstico partir de um período curto de observação (entre 12 e 19 de maio) através da descrição da cadeia operatória da rega e do replantio, atentando-se especialmente às ideias que estão presentes nos processos (COUPAYE, 2017). Destaco que, pelo curtíssimo período de observação, a análise é mais inclusiva que crítica, ganhando um tom ensaístico.

Na realidade foi uma surpresa a monotonia da observação dos cuidados com as plantas, posto que a realização desses é limitada por uma série de atores não humanos, estabelecendo o cultivo caseiro de rosa do deserto como ação direta negativa, ou seja: o sujeito tem um contato bastante direto com a planta, entretanto o itinerário é definido por uma série de externalidades, de outros agentes (HAUDRICOURT, 2013). É o que pretendo demonstrar ao longo do texto.

 Antes de seguirmos, cabe a caracterização das protagonistas da observação: as rosas do deserto são plantas suculentas com, ao menos, cinco variedades no mercado. Crescem livremente no leste e nordeste da África e em toda a Península Arábica, atingindo até 2 metros de altura. São variedades de rosas do deserto: Adenium arabicum, Adenium coetaneum, Adenium honghel. Ao contrário de uma rosa verdadeira, o Adenium é tolerante à seca porque armazena água da estação chuvosa em suas raízes grossas e bulbosas e tronco. Integram a família Dogbane (Apocynaceae / Asclepiadaceae), que reúne: Palma de Madagascar, Allamanda, Oleandro, Plumeria, entre outras. A família é conhecida pela produção de seiva venenosa.

Observamos a relação da sra. Elenária junto as suas rosas do deserto por uma semana, dispostas sobre um antigo poço artesiano, de variadas cores, tamanhos e idades. Pelo fato de trabalhar com educação de crianças, as comparações entre desenvolvimento estudantil e da planta são inevitáveis.

Os cuidados com as rosas do deserto dependem de fatores externos (a fase lunar, a localização geográfica, incidência de luz solar, a umidade média do ar) e internos (o vaso, o substrato, a semente, a rega, o replantio período, a poda da raiz com fins estéticos) e visam, em último caso, fazer com que a planta cresça e floresça.

Durante o curto período de observação pude acompanhar a rega, a preparação do substrato, o replantio e a poda das raízes.  De início, pareceu-me que haveria pouquíssimo material para me debruçar, mas quando perguntei sobre os demais cuidados com a planta abriu-se um mundo de atores e regras que definem o itinerário de cuidados. Mesmo a rega e o replantio[1] são processos mais complexos que o curto período de execução demostra.

O texto está divido em três partes: tratamos primeiramente dos atores que definem o itinerário de cuidados com as rosas (a lua, o sol etc); em seguida, tratamos das atividades realizadas no período de observação (rega e replantio); e, por fim, nos ocupamos da discussão sobre ação direta positiva e indireta negativa e sua serventia para caracterizar os cuidados com as rosas do deserto.

Os dois primeiros dias de observação foram de extrema monotonia: as atividades de cuidado se resumiam a rega diária com mangueira (baixa vazão) entre as 18 e 19h (depois notei que esse procedimento estava repleto de outras questões, mas discutiremos isso mais a frente). Quando perguntei sobre os demais cuidados (poda, por exemplo) obtive a seguinte resposta:

Cuidar de planta é igual cuidar de criança, tem hora pra tudo. Agora nós estamos na lua minguante, é a fase de crescer pra baixo, é o momento que as raízes se desenvolvem. Na roça, era época de plantar mandioca. Com a rosa do deserto não é diferente... O que dá pra fazer de diferente agora é trocar de pote, já que as raízes vão ter força pra crescer.

 

Eu não sabia a respeito da influência da lua sobre as plantas[2], fazendo "crescer pra baixo". Estava diante um agente delimitador do itinerário de ação sobre a planta e fui buscar mais informações.

O ciclo lunar apresenta dois movimentos: o movimento crescente, que ocorre entre a lua nova e a lua cheia; e o movimento minguante, que é o período entre a última lua cheia até a próxima lua nova. Durante as fases crescentes, as plantas desenvolvem melhor as partes que ficam acima do solo (folhas, caules, flores). Nas fases decrescentes, são as partes que ficam dentro do solo (raízes) que são melhor desenvolvidas (daí a associação com a mandioca, provavelmente).


 
        Especificamente para a rosa do deserto, o período de replantio ocorre na lua minguante, pelo fato de deixar parte das raízes da planta exposta, para que ela continue “crescendo para baixo” forte e sadia. Como veremos mais adiante, o replantio está sujeito a riscos que podem resultar na não eficácia dos cuidados.

Já o sol, além do já conhecido papel na fotossíntese, apareceu entre as conversas de maneira indireta:

A gente rega sempre no final da tarde, começo de noite, porque aqui em Goiás, lá em Brasília também, o sol é esturricado, deixa o dia seco... Se você rega de manhã, às 10 horas o sol pode estar tão quente que cozinha a planta. Ainda mais a rosa do deserto que é só água e flor.

 

O sol aparece associado a localização geográfica e a umidade relativa do ar. Esses fatores determinam a recorrência da rega, diária mesmo no inverno, pois é característico do centro oeste um inverno frio e seco. Referir-se a rosa do deserto como "só água e flor" está ligado ao fato de se tratar de uma suculenta. Com isso, conhecemos os atores que ditam o itinerário das atividades observadas ao longo da semana, das quais nos ocuparemos agora.

A rega ocorre diariamente, no fim da tarde. Fora utilizado em todos os dias de observação uma mangueira de jardim simples, azul, sem bico especial, com fluxo de água baixo.

O gesto consistia em aproximar a mangueira do solo e circular a planta com o jato de água. Deve-se cuidar para não empossar água (principalmente próximo a planta) e não empapar o substrato (por isso é importante circular a planta, o que limita o tempo e, por consequência, a quantidade de água). Não é recomendado molhar o corpo de plantas com flores, pois a ação pode resultar em queda. A ponta da mangueira[3] deve estar próxima ao solo (aproximadamente 10 cm de distância no máximo), caso contrário incorre-se no erro da "água cair pesada" e abrir buracos no substrato, ou seja, a pressão da água caindo a distância, mesmo em fluxo baixo, pode separar o substrato da raiz.

 


Outra ação direta de cuidado com as rosas do deserto é o replantio período, que deve ocorrer sempre na lua minguante, pois necessitará "crescer para baixo". O replantio se divide em pelo menos quatro outras atividades menores: preparação do pote e substrato; arranque e transferência; poda das raízes; e finalização.

 O pote ideal para o cultivo doméstico de rosa do deserto é o tipo cuia ou bacia. Trata-se de um recipiente de boca larga e altura baixa. Vasos altos podem diminuir a percolação de água, resultando no adoecimento das raízes. A furação padrão de fábrica não costuma ser suficiente para garantir a rápida percolação, por tanto é recomendado fazer mais furos. Para isso pode-se recorrer a objetos pontiagudos (facas e tesouras) ou objetos metálicos aquecidos no fogo. Não há quantidade ideal de furos. Quando virado de ponta cabeça, é possível notar círculos no fundo do vaso. Fora perfurado todo o último círculo, com distanciamento máximo de meio centímetro entre furos.



O passo seguinte consiste na preparação do substrato. O mais importante é que seja "pedaçudo", ou seja, tenha granulometria elevada, a fim de facilitar a percolação e o crescimento das raízes

 Há substratos prontos, com diversos tipos de composição. No caso observado, fora utilizado uma mistura pronta de terra orgânica e casca de pinus acrescido carvão moído, casca de banana torrada e moída, pó de casca de ovo torrada e borra de café (repare na quantidade de outros processos relacionados a uma ação). A parte pronta (terra e pinus) garante a granulometria elevada. Acredita-se que o carvão tenha função de prevenir "doenças da terra", mantendo o substrato "limpo" por mais tempo. Os outros três elementos foram descritos como "receita caseira de adubo que todo mundo conhece". Partindo da minha formação anterior (técnico em edificações) e da experiência com ensaios de mecânica dos solos e química orgânica, afirmo com segurança que se trata de um composto com potássio (casca de banana), fósforo (casca de ovo) e nitrogênio (borra de café), os famosos NPK, nutrientes essenciais para o desenvolvimento de qualquer planta. A preparação desse adubo me lembrou de pronto o olhar maussiano sobre a técnica enquanto ato tradicional e eficaz: tradicional enquanto convenção geral, transmitida (“todo mundo conhece”) e eficaz na medida em que reúne elementos cotidianos que trazem uma carga de conhecimento específico com a finalidade comprovada de tornar o substrato mais fértil (MAUSS, 2003 [1937]).



Não há uma exata proporção na mistura: forrou-se o fundo do pote tipo cuia com a mistura pronta de terra e pinus (diretamente do saco); acrescentou-se 1 pote pequeno de carvão moído; e 1 mão cheia de cada um dos demais. Tudo isso ocupa pouco mais da metade do recipiente. A mistura é feita com as mãos, revirando o solo (trazendo o que está embaixo para cima). Está pronto quando não se vê com exatidão o branco da casca dos ovos. Conclui-se assim a etapa de preparação do pote e substrato.

O arranque é aparentemente a etapa mais simples e mais arriscada: bate-se levemente nas laterais do recipiente em que a planta se encontra; periodicamente puxa-se a planta pelo caule, verificando se está solta do vaso; constatando que sim, a planta é arrancada com o substrato anterior em forma de torrão misturado com as raízes (o recipiente primário fica limpo) e colocada no novo pote.

Quando perguntei se eu poderia tentar realizar o arranque e a transferência a resposta, apesar de negativa, foi interessante: pessoas inexperientes não devem fazer o arranque, pois a planta pode ficar “ressentida” e deixar de dar flores e sementes ou ter "levas chochas" (feias, estragadas, ruins).

Apenas olhando a atividade parece realmente simples, mas há que se recordar da fragilidade da planta, nos fazendo refletir sobre os parâmetros de força, pegada e agilidade ideais para o arranque. O gesto de segurar se assemelha a segurar um copo largo. Não sou capaz de precisar a força empregada, mas todo o movimento é rápido: somado com as batidas no pote, não supera dois minutos por planta.

 Transferida para o novo pote, é importante que a base da planta fique para fora do vaso no mínimo dois centímetros (dois dedos), idealmente três, com limite máximo de quatro centímetros. Enche-se as laterais com a mistura de terra e casca de pinus e é realizada a quebra cuidadosa das extremidades do substrato anterior, fazendo um ponto de encontro entre o antigo e o novo substrato em formato chanfrado (semelhante a um morro, pirâmide, muro de contenção). Terminada a quebra, passa-se a descobrir parte da planta que estava enterrada e inicia-se a poda das raízes.



É difícil precisar quais partes do rizoma devem ser retiradas, posto que a escolha é estética, pois parte da raiz ficará exposta. Mais fácil é detalhar as ferramentas e os métodos empregados. Na poda observada foram utilizados: um estilete, um pano com álcool para esterilização e canela em pó. Me foi dito da importância de utilizar luvas nas primeiras vezes, pois o leite da planta poderia causar irritação na pele, mas que, com o tempo e costume, as luvas deixam de ser necessárias.

Com o estilete esterilizado, corta-se com cuidado raízes finas e que fujam do padrão estético esperado sempre cuidando para não ferir a planta mais que o necessário. A cada raiz retirada, limpa-se o estilete com o pano com álcool e passa-se canela em pó no ferimento, o que inibe a vazão do leite.

 Terminada essa etapa que varia muito de planta para planta, tornando complicado estabelecer limites temporais, dá-se início a finalização que nada mais é que cobrir o substrato com brita ou pedra branca. A razão é estética, apesar de que a brita ou pedra serve também para distribuir a água da rega sobre o substrato, auxiliando para que não haja acúmulo ou "empapamento" e impede que outras plantas (consideradas indesejadas) cresçam (remetendo às questões acerca da técnica e vida, gestão da vida e da morte, abordadas no “2° Seminário Transformações técnicas em perspectivas locais. Técnica e Vida: imbricações e desafios etnográficos”). Um último detalhe é que não é recomendado que esse processo seja feito em plantas floridas, correndo o risco de queda das flores.

 É possível notar como as esferas da vida da dona das rosas, sra. Elenária, se misturam no cuidado com as plantas: seja no vocábulo das comparações (plantas são como crianças ou as vezes temos que podar os alunos etc), seja no emprego de instrumentos do colégio (estilete normalmente utilizado para cortar EVA) no processo de poda da planta. A própria capacidade de explicação detalhista das ações é marca dessa mistura de esferas.

 Cabe ressaltar também que apesar da eficácia estética do processo, há também uma eficácia terapêutica, posto que durante os períodos de cuidado com as plantas, o celular (principal ferramenta de trabalho) é deixado de lado e a concentração é destinada apenas as ações de cuidado. Cabe refletir junto a De Laet e Mol (2012) quanto a inconsciência das ações que geram ações: cuidando das plantas, a cuidadora acaba cuidando de si mesmo.

Essa concentração se deve em parte à um itinerário ditado por atores externos a ser seguido. O processo todo é delimitado pela crença na influência das fases lunares sobre a planta, o que resulta na transformação de algumas ações aparentemente corriqueiras em ações que só devem ser realizadas em determinado período, caso contrário, se arriscaria a eficácia do processo.

 O replantio deve ser realizado no início da fase lunar minguante, para que as raízes cresçam fortes (crescer para baixo), permitindo inclusive a poda por razões estéticas da raiz. Se realizado em outro período lunar, é possível que o crescimento para baixo não seja adequado, o que resultaria em um enfraquecimento da planta e, no limite, a morte.

Fico me perguntando – e ainda não encontrei uma resposta – se as ações de cuidado realizadas conforme as fases lunares poderiam ser enquadradas dentro do espectro de ações estratégicas de que fala Lemonnier (1992), exemplifico: a operação de replantio deve ser executada necessariamente durante a fase minguante da lua, e a fase não pode ser parada (não pode ser atrasada, cancela ou substituída). Entretanto, as fases da lua têm comportamento cíclico, então a fase minguante retornaria, abrindo espaço para atraso na cadeia operatória (exemplifico: não realizarei o replantio nessa lua minguante, mas sim na próxima). Me parece que há margem de manobra por se tratar de um ciclo, inviabilizando a caracterização fechada/fixa enquanto ação estratégica.

Pensando os modelos de ação de Haudricourt (2013) (ação direta e positiva e ação indireta e negativa), me parece que há no caso aqui analisado um desvio aos modelos, posto que os cuidados com a rosa do deserto são diretos (de contato pela mão, de poda direcionando o crescimento etc), mas não é positiva (o itinerário de cuidados deve respeitar parâmetros externos: a lua, o sol etc). O contato com a planta é intenso somente em alguns períodos para que se obtenha o resultado esperado (o crescimento e florescimento). Dessa forma, os cuidados me parecem próximos ao tipo negativo (exemplificado por Haudricourt no cultivo de inhame pelos Melanésios da Nova Caledônia).

Sendo assim, é possível concluir que a ação de cuidado com as rosas do deserto na casa desse pretendente a antropólogo em Trindade, no interior de Goiás, é do tipo direta (há contato manual e constante entre ser humano e planta) e negativa (o itinerário é preestabelecido por uma série de atores não humanos). Me dediquei a descrição intensa dos processos observados ao longo da semana, mas reconheço que o texto tangencia diversos pontos abordados pela antropologia da técnica que merecem aprofundamento.


REFERÊNCIAS

            COUPAYE, L. Cadeia operatória, transectos e teorias: algumas reflexões e sugestões sobre o percurso de um método clássico. In: SAUTCHUK, Carlos (Org.). Técnica e transformação: perspectivas antropológicas. Rio de Janeiro: ABA Publicações, 2017: 475–494.

DE LAET, M. Y A. MOL. 2012. “La bomba de Bush de Zimbabwe: mecánica de una tecnología fluida”, Revista de estudios sociales de la ciencia, 18, 35, pp. 105-158.

HAUDRICOURT, A-G. Domesticação de animais, cultivo de plantas e tratamento do outro. Serie Tradução, DAN/UnB.

LEMONNIER, P. Elementos para una antropología de la tecnologia. Capítulo 1: Tecnología y Antropología. [Tradução de Elements for an Anthropology of Technology. Anthropological Papers, Museum of Anthropology, University of Michigan, No. 88. Ann Arbor, Michigan, 1992. Chap. 1: 1-24.]

MAUSS, M. 2003 [1937]. As Técnicas Do Corpo. In Sociologia e Antropologia. São Paulo: Cosac & Naify, pp. 399–422.



[1] que combina preparação do substrato, replantio em si e poda das raízes

[2] Me recordava de recomendações sobre corte de cabelo ("meninos cortam sempre da lua descrente, para que o cabelo demore a crescer e meninas cortam na lua crescente, para crescer rápido"), nas quais nunca acreditei

[3] Caso tenha um "chuveirinho" (bico dispersor) pode-se aumentar o fluxo de água e a distância entre bico e solo, jogando água inclusive sobre o corpo da planta. É especialmente necessário no "tempo da poeira", pois limpa as folhas e deixa a planta alegre. Na ausência do bico dispersor, é possível regar somente com a mangueira cobrindo a ponta parcialmente com o dedo de modo a formar um leque de água. A eficácia na rega não é a mesma, mas limpa a poeira das plantas.

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