terça-feira, 26 de novembro de 2019

TRABALHO FINAL DE INTRODUÇÃO À CIÊNCIA POLÍTICA

TRABALHO FINAL DE INTRODUÇÃO À CIÊNCIA POLÍTICA – TURMA O
Bruna Arrias Monteiro – 190025417
Francisco Sousa – 190045809
Hiann Riell Sotero da Silva – 190059681
Júlia Vilela Garcia – 190057912
Nathalia Cerqueira Lins – 190035838

Em debates e reflexões no decorrer do semestre, notou-se que o conceito chave que guia o termo democracia é justamente o fato de a palavra significar “governo do povo”. A partir desse termo, é possível inferir que uma democracia pura compreende a participação ativa da comunidade, de forma igualitária e justa entre os cidadãos. Entretanto, o que muitos intelectuais nos mostram é que o termo democracia tem se tornado cada vez mais difuso e dotado de divergências. A democracia, que antes tinha como norte ser um governo do povo, culminou em inúmeras vertentes democráticas que, muitas vezes, se divergem em suas bases e não concordam entre si (MIGUEL, 2005; VITULLO, 2009).
Uma das dificuldades que alguns autores alegam para que a democracia seja de fato um governo em que haja a participação igualitária e ativa de toda uma comunidade é justamente o tamanho populacional exacerbado, que dificulta o processo de ouvir e se fazer ouvido por todos os cidadãos (MIGUEL, 2005; VITULLO, 2009). Assim, algumas vertentes da democracia, tal como a democracia liberal-pluralista, acreditam que a participação da população por meio do voto – que elege um representante apto para o governo – seria suficiente para que um governo seja considerado democrático (MIGUEL, 2005). Por outro lado, outras vertentes democráticas, encaram o voto como não suficiente para garantir a participação plena dos cidadãos, posto que eles elegem um governador, mas não podem de fato governar, ou seja, a democracia se torna restrita ao sufrágio. Esse é um dos principais desafios da democracia participativa, cujo princípio é a busca pela participação dos indivíduos para além do voto.
Essa vertente democrática é muito bem descrita por Miguel (2005) e Vitullo (2009). Este último ainda acredita que uma síntese entre democracia participativa e democracia representativa deve ser vista como uma forma de democracia contra hegemônica (VITULLO, 2009, p. 272). Para o autor, a população deve não só eleger seus representantes, como participar ativamente e diretamente dos processos democráticos complementando e corrigindo possíveis falhas da democracia representativa. Visão semelhante a necessidade de se ter uma participação ativa e para além do voto é descrita por Hanna Pitkin (2003). A autora disserta acerca da necessidade de o eleitor, mesmo em uma democracia representativa, acompanhar e fiscalizar as atividades do representante, engajando-se politicamente e cobrando dos governantes uma posição adequada.
É importante ressaltar que para que os eleitores possam cobrar e contribuir para a melhoria do governo exista uma circulação de informações que não busque privar o indivíduo de ter conhecimentos múltiplos acerca de sua realidade, mas que abra os seus horizontes e o permita ter uma visão crítica do mundo. Isso porque a informação é a principal arma para que os cidadãos possam participar ativamente de um governo, uma vez que é ela quem molda a forma com que observamos e agimos no mundo. É a informação que detém o poder não só de fazer abrir os horizontes dos indivíduos, mas de limitar os seus interesses e, em uma escala menor, os interesses políticos que serão cobrados pelos eleitores dos representantes.
Segundo Miguel (2007) grande parte da informação que os indivíduos obtêm advém dos meios de comunicação de massa, ou seja, da mídia. Esse veículo de informações, adaptável às novas tecnologias da comunicação, têm em si um grande potencial para a democracia quando apoiado no pluralismo de ideias, o que garantiria algum espectro de neutralidade e imparcialidade. Entretanto, esse potencial midiático, embora valorizado pela maior parte da população, não existe de forma plena, posto que ao mesmo tempo em que coloca algumas opiniões públicas em destaque, também possui o potencial de reprimir outras. Isso se dá devido a uma concentração, cada vez maior dos meios de comunicação nas mãos de poucos grupos, impactando diretamente o espaço de debate democrático. Desse modo, compreende-se que a lógica do mercado liberal não foi capaz de coibir com a formação de oligopólios midiáticos, dando a eles o poder de agenda.
Esse poder de agendamento de pautas, tão citado por Bachrach e Baratz (2011), deixa, aqui, de ser um poder única e exclusivamente dos governantes, como bem colocado pelos autores, e passa a fazer parte também de uma lógica midiática que oferece aos espectadores apenas o que se acredita que possa dar um retorno positivo para o veículo de comunicação, limitando seus horizontes de conhecimento e, consequentemente, interferindo em uma participação política democrática. Isso se dá justamente porque o poder de selecionar as informações a serem veiculadas, junto a transmissão unidirecional das informações pelos canais convencionais – como a televisão, o jornal e o rádio – resulta em uma ausência de análise crítica por parte dos consumidores, constituindo um risco para a democracia.
Para além dos riscos que o poder de agendamento midiático possui, o qual é capaz de mobilizar o interesse público e subjugar a política enquanto debate de ideias – apresentando apenas uma caracterização maniqueísta da realidade – existe também o risco inerente de que os meios de comunicação de massa atuem sobre a formação da preferência dos indivíduos.
De acordo com Sunstein (2009), o foco da sociedade moderna, deixa de ser o bem comum e passa a ser os interesses individuais, de tal forma que esses se tornam o principal alvo da discussão pública e passam a regulamentar as ações estatais. Entretanto, essa visão afirma falsamente a ideia de que as preferências dos indivíduos são fixas e previamente dadas, ignorando o fato de que elas são, na verdade, moldadas pelo contexto em que cada indivíduo se localiza e age no mundo, bem como pelo acesso a informação que este possui. As preferências, portanto, possuem um caráter endógeno, sendo fruto do contexto social e podendo ser constantemente moldadas pela circulação de informações. Considerá-las como rígidas e individuais, seria, então um risco para a democracia.
 O grande problema que aí reside, é justamente na relação entre agenda, circulação midiática, participação e preferências que são constantemente construídas e modificadas com o tempo e o contexto social. Uma vez que a mídia, pautada em um oligopólio, seleciona aquilo que é veiculado, pressupõe-se que a circulação restrita de informações leva o indivíduo a refletir e moldar suas visões de mundo apenas com relação àquilo que é veiculado, sendo difícil para os espectadores buscarem outros veículos que ofereçam informações distintas.
Exemplos do agendamento midiático político atrelado à formação de preferências, participação e opinião pública não são recentes. Nas décadas de 40 e 50, o então presidente Getúlio Vargas, notando as potencialidades que o rádio possuía para veicular informações sobre sua figura e sua política, regulamentou o setor para que o governo obtivesse maior controle sobre as transmissões do rádio (SILVA, 2012). Esse controle midiático culminou na transformação de Vargas em um líder político e no fortalecimento e popularização do seu poder governamental, contribuindo para a ideia de que a mídia possui um grande poder de manipulação e interferência não só nas preferências dos indivíduos, mas em uma participação amplamente democrática.
Para além do agendamento efetuado pela mídia tradicional, o advento da Internet e da Web 2.0[1] facilitou a circulação de informações em tempo real. Essas informações são, muitas vezes, propagadas por veículos alternativos de comunicação, como blogs, indivíduos que possuem o status de digital influencer, ou até mesmo a partir de um transmissor anônimo. Isso culminou em uma circulação não só de informações acerca do mundo todo em uma velocidade jamais vista anteriormente, mas em um índice elevado de notícias falsas, constantemente manipuladas, ferindo ainda mais a participação democrática efetiva e impondo novos obstáculos ao regime democrático.
Exemplos de como os perigos de veicular falsas informações podem impactar na política foi o recente caso político da eleição do presidente Jair Bolsonaro. Em uma reportagem do site de notícias ISTOÉ (2018) nota-se a afirmação de que o, na época, candidato à presidência, consolidava sua candidatura “pela propagação e disseminação de informações falsas, distorções de fatos históricos ou de ações sem qualquer comprovação técnica ou científica”. Isso fez com que as informações fossem altamente veiculadas, moldando a percepção de seus eleitores, como prova uma pesquisa feita pelas organizações Avaaz e IDEA Big Data, posteriormente veiculada pelo jornal on-line Folha de São Paulo (2018). O estudo revelou que cerca de 90% dos eleitores de Jair Bolsonaro acreditavam nas notificas falsas veiculadas nos canais de comunicação, constituindo uma falsa percepção política e democrática do governo.
Outra polêmica que envolveu o presidente Jair Bolsonaro foi o uso de bots, isto é, o uso de perfis automatizados, no impulsionamento e na veiculação de notícias falsas (VILICIC, Filipe; LOPES, André, 2018). O uso de inteligência artificial para promover o candidato foi algo polêmico, visto que parte de uma campanha política pautada em informações falaciosas e não orgânica. Os perigos dos perfis anônimos e automatizados para a democracia e participação política são retratados no texto “Deep Fake, a mais recente ameaça distópica”, de Michael K. Spencer (2019). Segundo o texto, a tecnologia possui um potencial alarmante, posto que a inteligência artificial chegou ao ponto de criar humanos digitais, pessoas que não existem na vida real, mas que se comunicam e são capazes de formar redes de confiança on-line, alcançando um novo nível de manipulação de informações, o que foi explicitamente notado na campanha de Bolsonaro. Para além da criação de humanos artificiais, é possível também manipular vídeos e imagens que se tornam verdade universal e incontestável para aqueles que assistem, posto que as imagens são consideradas uma prova cabal da realidade.
Conclui-se que o acesso a informação no atual contexto afeta tanto de forma positiva, quanto de forma negativa a prática democrática. Por um lado, o acesso à informação permite não só que a representação tenha qualidade, mas faz com que os representados se engajem politicamente e sejam aptos para avaliar a representação política, bem como ver se as ideologias são coerentes. Para mais, com o acesso à informação, os representados podem entender melhor os projetos políticos, e assim cobrar, coletivamente, o que havia sido proposto pelo representante. Em contrapartida, o acesso à informação, pode trazer consequências negativas, uma vez que há uma concentração de propriedade midiática e um controle e seleção das informações que são disseminadas. Com isso, comumente, observa-se a criação de informações falaciosas, o que gera um problema político preocupante, posto que implica na limitação do espaço de debate e também impossibilita uma pluralidade de pontos de vistas na mídia – aspecto extremamente importante para atividade democrática.
Diante disso, assistimos a uma era da desinformação que põe em jogo a participação ativa e democrática dos cidadãos no ambiente político. De um lado, o problema do oligopólio midiático poderia ser solucionado, ou ao menos suavizado, com uma regulamentação da mídia, como bem colocado por Sunstein (2009). A regulamentação é primordial para que se garanta uma pluralidade de informações circulando e alcançando os indivíduos, para que estes possam ser capazes de criar um senso crítico ponderando as diferentes informações de canais divergentes entre si. Vale lembrar que a regulamentação não visa a regulação de conteúdo, mas justamente a sua multiplicidade de forma ética e respeitosa. Assim, a partir da regulamentação midiática, o espectador pode participar de forma mais ativa do cenário político, moldando suas preferências não só com base em informações previamente agendadas de um oligopólio, mas a partir de uma multiplicidade de conteúdo.
Entretanto, como regulamentar um ambiente tão aberto e dinâmico como a internet, que ultimamente tem propiciado inúmeras informações falaciosas? Apesar de a internet ter assegurado espaço para novas discussões e gerado importantes debates e articulações políticas, como manifestações, atos e até mesmo uma rede de discussões sobre o governo, a web ainda é um território de certo modo “sem lei”, gerando, ao mesmo tempo, muita desinformação e interferindo na participação democrática, sendo necessário, portanto, um olhar mais cauteloso acerca da circulação informacional, bem como a criação de medidas que visem combater a desinformação. Exemplo disso, é o primeiro site especializado em checagens de informação da Agência Lupa, vinculado à revista Piauí e ao Grupo Folha e até mesmo o serviço de checagem Fato ou Fake, proporcionado pelo Grupo Globo. Contudo, aqui, mais uma vez, caímos no problema do oligopólio midiático.










Referência Bibliográfica

BACHRACH, Peter; BARATZ, Morton S. Duas faces do poder. Revista de Sociologia e Política, v. 19, n. 40, 2011, p. 149-157. Disponível em:< http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S0104-44782011000300011&script=sci_abstract&tlng=pt>. Acesso em: 25 mai. 2019.
LAGO, Rudolfo; LIMA, Wilson; FILGUEIRA, Ary. Bolsonaro, o candidato fake. ISTOÉ. 2018. Disponível em:< https://istoe.com.br/bolsonaro-o-candidato-fake/>. Acesso em: 06 jun. 2019.
MIGUEL, Luis Felipe. “Teoria democrática atual: esboço de mapeamento”. BIB: Revista Brasileira de Informação Bibliográfica em Ciências Sociais, nº 59, 2005. pp. 5-42.
MIGUEL, Luis Felipe. “Mídia e opinião pública”. In: AVELAR, Lúcia; CINTRA, Antônio Otávio (orgs.). Sistema Político Brasileiro: uma introdução. UNESP, 2007.
O´REILLY, Tim. What Is Web 2.0. 2005. Disponível em:< https://www.oreilly.com/pub/a/web2/archive/what-is-web-20.html>. Acesso em: 06 jun. 2019.
PASQUINI, Patrícia. 90% dos eleitores de Bolsonaro acreditaram em fake news, diz estudo. Folha de São Paulo. São Paulo, 2018. Disponível em:< https://www1.folha.uol.com.br/poder/2018/11/90-dos-eleitores-de-bolsonaro-acreditaram-em-fake-news-diz-estudo.shtml>. Acesso em: 06 jun. 2019.
PITKIN, Hanna.“Representação: palavras, instituições e ideias”. Lua Nova, 67, 2003, pp. 15-47. Disponível em:<http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S0102-64452006000200003&script=sci_abstract>. Acesso em: 18 mai. 2019.
SILVA, Raíssa Araújo do Rosário. Papel e importância do Rádio através da história. Observatório da Imprensa, 2012. Disponível em:< http://observatoriodaimprensa.com.br/interesse-publico/ed718-papel-e-importancia-do-radio-atraves-da-historia/>. Acesso em: 08 jun. 2019.
SPENCER, Michael K. Deep Fake, a mais recente ameaça distópica. Outras Palavras. Tradução Gabriela Leite. São Paulo, 2019. Disponível em:< https://outraspalavras.net/internetemdisputa/deep-fake-a-ultima-distopia/>. Acesso em: 06 jun. 2019.
SUNSTEIN, Cass. “Preferências e política”. Revista Brasileira de Ciência Política, n. 1, 2009, pp. 219-254.
VILICIC, Filipe; LOPES, André. Bolsonaro, Ciro e táticas (sujas) da campanha na internet. Veja. 2018. Disponível em:<https://veja.abril.com.br/blog/a-origem-dos-bytes/bolsonaro-ciro-e-taticas-sujas-da-campanha-na-internet/>. Acesso em: 06 jun. 2019.
VITULLO, Gabriel. “Representação política e democracia representativa são expressões inseparáveis? Elementos para uma teoria democrática pós-representativa e pós-liberal”. Revista Brasileira de Ciência Política, n. 2, 2009, pp. 271-301. Disponível em:< http://periodicos.unb.br/index.php/rbcp/article/view/1641/1443>. Acesso em: 18 mai. 2019.



[1] Web 2.0 é um termo utilizado para designar a segunda geração de comunidades e serviços oferecidos na internet, por meio de aplicativos baseados em redes sociais e tecnologia da informação (O’REILLY, 2005).


RELATÓRIO: DA CATECHESE DOS ÍNDIOS NO BRASIL, LEOLINDA DALTRO


RELATÓRIO: DA CATECHESE DOS ÍNDIOS NO BRASIL, LEOLINDA DALTRO

FRANCISCO OCTÁVIO BITTENCOURT DE SOUSA

Antes de mais nada, algo que me incomodou muito foi o fato de o livro parecer uma propaganda do trabalho da professora Leolinda Daltro, principalmente na parte dos resultados. Talvez isso se explique por ser um diário.
Com esse relatório pretendo evidenciar as imagens do índio e as representações dos sertanejos, afim de poder comparar com relatórios com o mesmo objetivo sobre outras obras analisadas.
Quanto a organização do livro: ele é dividido em duas partes. Na primeira, L. Daltro narra a viagem que fez acompanhada do Capitão Sepé e outros indígenas catequisados, afim de falar com o presidente da república (Prudente de Moraes) sobre um projeto maior de catequização, posse de terras, apoio financeiro, entre outras coisas. Durante a viagem, os nativos passam por todo tipo de adversidades, possivelmente evitáveis caso não fossem alvo de preconceito. A segunda parte do livro se volta para os resultados obtidos pelo projeto de Leolinda Daltro. É uma parte composta por cartas e relatórios de todo dia, desde filhos a entidades internacionais (é à essa parte que volto a critica inicial).
No capitulo intitulado “Explicação necessária”, algo similar a uma introdução, já se encontram descritos tanto índios como sertanejos. Os índios e o estilo de vida são descritos na perspectiva iluminista do bom selvagem, vivendo na “simplicidade e no encanto”, alvo da hostilidade dos “altruísticos” sertanejos, que se tornaram “fanáticos e ignorantes” graças ao trabalho dos “hipócritas” servos de Deus (DALTRO, 1920).
Essas imagens se repetem inúmeras vezes ao longo do livro: os que concordam com Leolinda Daltro e seu projeto de catequização leiga, “[...] obra santa [...]”, partilham da mesma visão, acrescentando graus diferentes de carência de tutela aos nativos “[...] pobres e [...] infelizes aborígenes perdidos na espessura do sertão”. Já os que discordam do projeto, hora afirmam que os índios são selvagens sem aptidão a civilização, bárbaros que pouco diferem de animais e cuja a única solução seria a morte, por serem empecilho ao avanço da sociedade. Todavia, essa visão dissonante vai aparecer com um pouco mais de força na segunda parte do livro (DALTRO, 1920).
A afirmação da catequização proposta por Leolinda Daltro ser “obra santa” é intrigante, pois deveria ser o exato oposto, visto que a catequização religiosa era arduamente combatida pela professora. Já a afirmação de que os nativos estão “perdidos na espessura do sertão” é de uma ignorância absurda: é ignorar toda a história dos povos originais do sertão.
Na primeira parte o bom selvagem, disposto a compartilhar a civilização, domina a cena. O próprio Capitão Sepé é um exemplo descrito como “magnífico exemplo da catequese”, vindo de uma aldeia de “ex-selvagens que vivem exemplarmente entregues ao trabalho, numa ordem admirável [...] tem excelentes maneiras levando mesmo em vantagem [...] indivíduos civilizados de nascença [...]”. Só essa passagem já mereceria um estudo: ela resume o grande objetivo do governo a época, ou seja, transformar o índio em trabalhador. É justamente esse projeto que Leolinda Daltro e o Capitão Sepé visam dar continuidade com o apoio do presidente (DALTRO, 1920).
Já os sertanejos são ironicamente descritos como “bondosos”. Ironicamente pelo fato de como é descrito a hospedagem oferecida por esses aos viajantes: “A dureza das pedras, a humidade infecta [...] a vizinhança afrontosa [...] a sentinela armada [...], eis a comodidade oferecida [...]” (DALTRO, 1920). Todavia, de acordo com a autora, os sertanejos não são intrinsicamente maus, se tornaram assim pelo contato com os missionários. A acusação contra os missionários é no mínimo curiosa, pois eram esses que competiam pelo projeto de catequização e domínio dos nativos.
Apesar de muito encorajada a continuar a viagem pelos sertões com seu projeto de catequização, recebendo grandes quantias em doação, Leolinda Daltro também enfrentava oposição a sua missão. A oposição, geralmente, vinha acompanhada de afirmação sobre a selvageria dos nativos e o fracasso dos jesuítas ao tentar civiliza-los: “[...] o selvagem do Brasil é indomável e a prova é que os santos missionários jesuítas não conseguiram, no decurso de centenas de anos, com os recursos materiais necessários e o apoio dos governos, educar convenientemente, ao menos, um único selvagem [...]” (DALTRO, 1920).
A oposição também encontrava embasamento para sua crítica no fato da professora Leolinda Daltro ser uma mulher, fazendo afirmações do tido “É tão extraordinário, tão assombroso mesmo, o que D. Leolinda Daltro acaba de fazer, que não posso compreender nem aceitar se não por uma das muitas modalidades do histerismo ou da loucura!” (DALTRO, 1920).
Outros temiam pela vida da professora, trazendo como justificativa a perseguição que L. Daltro sofria dos missionários locais ou as dificuldades da vida no sertão. Enfim, a professora continuou a viagem, retornando ao Rio de Janeiro anos mais tarde e tendo o trabalho reconhecido nacional e internacionalmente.
Todavia, aqui já é possível identificar varias características do que nos ocupada nesse curto relatório: índios e sertanejos. Os índios podem expressos em dois grandes grupos, um definido por Daltro e seus seguidores, e outro definido pelos que não concordavam com a viagem a professora. No primeiro caso o índio é um ser disposto a receber a civilização de abraços abertos, com anseio para se tornar um trabalhador rural e para aprender os costumes da sociedade citadina. O maior exemplo desse bom selvagem seria o próprio Capitão Sepé, o projeto magnifico da catequização, disposto a dar continuidade ao projeto que transformava os nativos em camponeses.
Dentro dessa seção “bom selvagem” se encontraram outras chaves de analise: como a aldeia de Sepé, descrita como “ex-selvagem” e grupos do entorno dispostos a se tornar civilizados.
O outro espectro em que o nativo aparece é no da selvageria, como um ser indomável, violento, empecilho ao avanço civilizatório. Apesar menos frequente e de não ter conseguido uma proeminência nas políticas nacionais, cabe citar para demonstrar que essa chave de pensamento estava presente.
Já o sertanejo aqui é posto em uma grande seção: eles não são ruins ou malvados por natureza, mas o contato com os “hipócritas” a serviço de Deus (os missionários), os tornavam fanáticos e violentos. Indiretamente são descritos como resistentes e de muita coragem, posto que para a realização da viagem pelo sertão essas características seriam necessárias à professora, logo: se há pessoas vivendo ali é porque possuem essas características.

FONTES
DALTRO, Leolinda. Da catequese dos índios no Brasil. Notícias e documentos para a História (1896-1911). Rio de Janeiro: Typografia da Escola Orsina da Fonseca, 1920.

RELATÓRIO: POLÍTICA INDIGENISTA BRASILEIRA, ENIO CORDEIRO


RELATÓRIO: POLÍTICA INDIGENISTA BRASILEIRA, ENIO CORDEIRO
(INTRODUÇÃO E CAP. III: O INDÍGENA E A REPÚBLICA)

FRANCISCO OCTÁVIO BITTENCOURT DE SOUSA

O livro do prof. Enio Cordeiro é muito voltado para política internacional e as interpretações exteriores que se construíam sobre o Brasil e a sua legislação quanto ao indígena.
O texto é interessante por trazer a complexa representação do índio que estava sendo montada na República. O notório antropólogo Lévi-Strauss, antes da vinda ao Brasil, ouviu de um embaixador brasileiro em Paris que “os índios do Brasil haviam desaparecido a muitos anos”. Uma clara demonstração de desconhecimento da situação do país, mas que deixa claro qual a interpretação da alta cúpula política no período: o apagamento.
Poucos anos antes da proclamação da República, o relatório de um presidente de província já deixara bem claro o que era ser índio e qual o tratamento dar e esses: “a única maneira realmente eficaz seria obrigar esses assassinos e filhos de bárbaros a deixarem a floresta, localizando-os em lugares dos quais não pudessem fugir [...]”. A afirmação é curiosa pela ambivalência: ao mesmo tempo que o índio aparece como assassino e bárbaro, é também um resistente e forte, pois ainda mantem o domínio sobre as florestas.
Cartas de 1905 sobre a Estrada de Ferro Noroeste do Brasil demonstram que o índio ainda é visto como resistente, pois está em constante conflito com os sertanejos, morrendo e matando. Esse paradigma do índio assassino e bárbaro resiste, a nível nacional, pelo menos até a chegada de Rondom e os projetos inaugurados por esse. Pós missões Rondom, o índio não é mais, de maneira geral, o selvagem agressivo: agora ele está “disposto a confraternizar com a civilização”.
Todavia, permaneceram ideias de que o índio era empecilho a “marcha inexorável do progresso” e “incapazes de abraçar a civilização”. Outro grupo defendia a continuidade da catequização e o assistencialismo, grupo subdividido na linha religiosa e na linha leiga.
A legislação nacional acabou por traçar uma linha média, reconhecendo em parte a autonomia política dos indígenas e retirando a obrigatoriedade da catequização, essa só ocorreria caso fosse de desejo dos próprios índios. Outro ponto é que os povos indígenas estariam agora sob proteção federal.
Em 1910, com a fundação do Serviço de Proteção aos Índios e Localização de Trabalhadores Nacionais (SPILTN), a legislação muda outra vez, retirando agora a orientação para uma catequização religiosa. A orientação era voltada apenas para a proteção leiga do estado, que deveria “estimular a lavoura, introduzir a pecuária e propiciar instrução técnica e primária”. A imagem que se almejava para o índio era o apagamento de seu estilo de vida e a transformação desse em um pequeno camponês. Essa ideia, apesar das varias mudanças na legislação, é mantida e atualizada: o índio deveria ser transformado de forma rápida em um trabalhador nacional. O Código Civil reforça esse pressuposto indiretamente ao afirmar uma “incapacidade relativa” dos nativos, que deveriam ser inseridos em um regime tutelar com legislação especial que seria retirada assim que o índio se adaptasse a civilização.

FONTE
CORDEIRO, Enio (1999). Política Indigenista Brasileira e Promoção Internacional dos Direitos das Populações Indígenas. Coleção Curso de Altos Estudos do Instituto Rio Branco. Brasília: Instituto Rio Branco/Fundação Alexandre Gusmão/Centro de Estudos Estratégicos.


A ESCOLA DE ANTROPOLOGIA FRANCESA


III RESUMO - TEORIA ANTROPOLÓGICA

O século XIX foi marcado por certa estabilidade em um mundo guiado pela Europa, não é ao acaso que o período que corresponde ao final desse século e começo do seguinte ficou conhecido como belle époque[1]. Havia um certo equilíbrio de poder entre as grandes potências do globo, o mundo vivia uma fase de intensas inovações tecnológicas (cinema, automóvel, telefone, entre outros) e a discussão política entrou em hibernação. Todavia, desenvolveram-se também, em grande escala, a indústria bélica, o que contribuiu para acentuar o fosso entre nações desenvolvidas e nações subdesenvolvidas[2] que fortalecia os nacionalismos internos de cada Estado. O resultado disso? A eclosão da Primeira Grande Guerra em 1914.
É nesse período em que viveu o sociólogo Émile Durkheim. Talvez o período de tranquilidade que tenha vivido na infância e a conturbada geopolítica internacional que acirrava cada vez mais a rivalidade entre nações e fortalecia conflitos internos (aumentando taxas de suicídio e espraiando a pobreza) tenha influenciado diretamente na escrita desse francês que buscava fontes de consenso e solidariedade entre os membros da sociedade.
Como a sociedade em que vivia estava passando por um momento de extrema instabilidade, Durkheim recorre ao estudo de “sociedades primitivas”, teoricamente mais simples e mais previsíveis, onde a consciência individual é subjugada pela consciência coletiva e os “germes” das categorias de entendimento estão mais evidentes, lendo etnografias de outros pesquisadores. Nesse estudo, o francês encontra sistemas de representações que tratam do mundo e do próprio indivíduo formas de organização social que auxiliam na criação de laços para a coesão social (DURKHEIM, 2015).
Esses “sistemas de representações que tratam do mundo e do próprio indivíduo” E. Durkheim chamou de “religiões”. As religiões, eminentemente sociais, além de teoria do conhecimento, eram formas de contemplação da própria sociedade, formas de falar delas mesmas. Eram importantes tanto na criação de laços para a coesão social (“solidariedade”), atuando sobre a moralidade pública, quanto para a divisão do trabalho social (guiada por laços de parentesco). Era um “fato social”, ou seja, estavam acima do indivíduo, oprimindo-o, mas possibilitando-o viver em sociedade e, a partir da vida social, dar os primeiros passos rumo a vida lógica/produção de cultura (DURKHEIM, 2015).
Com essa teoria, apresentada por meio de modesto resumo acima, Durkheim tornou-se um cânone da sociologia e contribuiu para inúmeras áreas do conhecimento, entre elas, a antropologia. O objeto empírico formulado, ou seja, a discussão do “mundo primitivo” e da diversidade foi o grande legado do francês para os antropólogos. Um antropólogo que bebeu bastante da fonte de Durkheim é Marcel Mauss, sobrinho do grande sociólogo.
M. Mauss desenvolveu, junto de Henri Hubert, um estudo sobre “magia” como um fenômeno social. Na mesma linha teórica do tio, Mauss afirma que na magia é possível verificar princípios iniciais/germes de ciência, técnica e religião, sendo a magia uma mistura concreta dos três voltada para a vida social, para a resolução de conflitos cotidianos. Ele acredita que pode “encontrar, na origem a magia, a forma primeira de representações coletivas que se tornavam, depois, os fundamentos do entendimento individual". Está ligada a “mana”: uma força mística e fluida, que abarca misteriosamente todas as coisas e seres do universo (magia, atos, representações, o mágico). Tem diferentes expressões de sociedade para sociedade e é um construto social de poder/legitimidade, pois vem necessariamente da força coletiva. Nesse sentido, é capaz de mobilizar indivíduos para algo que não necessariamente é positivo para todo o coletivo (MAUSS, 2003a).
A construção social de um mágico é um exemplo dessa mobilização: o mágico é um sujeito que demonstra o mana, todavia esse processo precisa ser reconhecido por um coletivo. Nenhum sujeito afirma-se mágico, ele é reconhecido mágico pela sociedade. O reconhecimento não necessariamente vira com prestígio, tudo que envolve poder acaba por atrair medo, logo o mágico pode ser expurgado pelo fato de ser reconhecido como mágico. Ou, por outro lado, pode ser exaltado como um grande líder (MAUSS, 2003a).
O mana, e por consequência a magia, são dificilmente compreendidos caso fiquemos presos a visão científica ocidental, pois ele mistura total técnica a misticismo para oferecer explicações de mundo alternativas com eficácia “sui-generis”. É desse pressuposto que parte uma parte importante da contribuição de M. Mauss para a antropologia: a busca por uma teoria etnográfica dos coletivos estudados e não a “tradução” para a ciência ocidental. Mesmo preso a dualidade moderno e primitivo, como o tio, ao reconhecer que a ciência moderna/ocidental não tem suporte para tudo (como se pensava e afirmava), Mauss dá um primeiro passo rumo a um reconhecimento de saberes não hegemônicos, de saberes que transcendem o universo acadêmico encastelado (MAUSS, 2003a).
Ao dizer que o mana é uma “mistura total”, abre-se espaço para uma outra discussão postulada por Marcel Mauss sobre “fato social total”, ou seja, algo com implicações em todas as esferas de poder e convivência de uma sociedade. A “dádiva” é um fato social total, um sistema de “prestação de trocas”, compreendido por “dar-receber-retribuir” em um ciclo infinito, para além de questões somente humanas. É a formulação (ou quebra) de um contrato (“os contratos fazem-se sob a forma de presentes”), que quando demonstrada “prestação positiva” tem por resultado a construção de alianças, respeito mútuo e generosidade. Todavia, quando o ciclo é quebrado e a reciprocidade passa a ser “agonística”, os resultados são de cunho negativo, sendo entendido como traição e podendo levar a guerra (MAUSS, 2003b).  
O “fato social total” é importante não só para a antropologia, mas para grande parte das áreas de conhecimento por se tratar de uma categoria analítica totalizante, a visa abranger não apenas uma característica do coletivo estudado, mas essa característica como parte do todo, com resultados em diversas esferas.

FONTES
HASTINGS, Max. Catástrofe: 1914 - a Europa vai à guerra. Trad. Berilo Vargas. Rio de Janeiro: Intrínseca, 2014.

DURKHEIM, Émile. Da Divisão do Trabalho Social. São Paulo: Martins Fontes, 2015[1893].

MAUSS, Marcel. Esboço de uma teoria geral da magia. In; Sociologia e Antropologia, São Paulo, Cosac & Naif, 2003a.

MAUSS, Marcel. Ensaio sobre a dádiva: forma e razão da troca nas sociedades arcaicas. In; Sociologia e Antropologia, São Paulo, Cosac & Naif, 2003b.








[1] Compreende o período entre 1871 e 1914, descrito por Max Hastings (2014) como período marcado por "[…] avanços tecnológicos, sociais e políticos alastravam-se pela Europa e pelos Estados Unidos numa escala nunca vista em qualquer outro período, um piscar de olhos da experiência humana. Einstein anunciou a sua teoria especial da relatividade, Marie Curie isolou o rádio, e Leo Baekeland inventou a baquelita, o primeiro polímero sintético. Telefones, gramofones, veículos motorizados, sessões de cinema e casas com eletricidade tornaram-se lugar-comum entre pessoas abastadas nas sociedades mais ricas. Jornais de circulação em massa adquiriram influência social e poder político sem precedentes" (HASTINGS, 2014).
[2] Hoje já não se utiliza mais a divisão “desenvolvido e subdesenvolvido”. Cabe utiliza-la apenas para um período histórico demarcado no qual está incluso o eixo desse texto.

Relatório: Neoliberalismo, neodesenvolvimentismo, socialismo


KATZ, Claudio. Neoliberalismo, neodesenvolvimentismo, socialismo. 1° ed. São Paulo: Expressão Popular, 2016.

Claudio Katz é economista argentino, professor da Universidade de Buenos Aires e um crítico ferrenho aos resultados da política neoliberal na Argentina e na América Latina, com uma orientação claramente à esquerda. O autor de diversas obras, entre elas “Neoliberalismo, neodesenvolvimentismo e socialismo” (2016), deixa evidente sua posição progressista, apesar de não poupar críticas as várias vertentes políticas que chegaram ao poder nas primeira e segunda décadas do século XXI.
Quanto a obra alvo desse resumo (“Neoliberalismo, neodesenvolvimentismo e socialismo”, 2016), os três capítulos elencados tem objetivos completamente diferentes. O primeiro, intitulado “Economia e classes”, se ocupa com a reinserção da América Latina na econômica global pós-crise de 2008. O segundo, intitulado “As economias centrais”, aborda o panorama do que chamamos de países desenvolvidos, demarcando os conflitos internos e externos pelos quais esses países trafegam.  E no terceiro, “Ascendente, intermediários e periferia”, o autor se debruça principalmente sobre a China e as heteronomias entre as divisões que são feitas do globo.
Para tal analise, C. Katz observou na longa duração as sincronias e diacronias que marcaram a história latina, pontuando inicialmente os fatores que se tornaram de certa forma hegemônicos na última década e promoveram “grandes transformações econômicas, socais e políticas [...] na região”, sendo eles: a “política exterior independente, a multiplicação de governos progressistas e o retrocesso da direita”.
Vale destacar que essa multiplicação de governos progressistas não significou o abandono dos moldes neoliberais, até porque muitos acabaram reforçando “um padrão de especialização exportadora”, visto que a região foi reinserida num contexto mundial como “provedora de produtos básicos”. Nesse sentido, é de grande relevância o papel que as commodities tiveram no crescimento latino americano, mesmo que a intensificação desse sistema tenha gerado encargos aos pequenos produtores. Dentro das commodities, são exemplos importantes a soja, frutas e vinhos e a mineração, sendo essa última, em maior escala que as outras duas, um catalisador dos efeitos da mudança climática. Pós-crise de 2008, a dependência dos países sobre as commodities intensificou-se, fortalecendo o modelo agroexportador e aumentando a “fragilidade estrutural” dos países pela “afluência de investimentos estrangeiros” e pela ausência de liderança desse setor (agroexportador) nas lutas nacionais, muito pelo contrário: o “agrobusiness” praticou e pratica uma exploração voraz do assalariado e renega terras aos pequenos e médios produtores, gerando grande êxodo do campo para as cidades.
Ainda nesse eixo dos prejuízos da estrutura agroexportadora, é valido lembrar algo que o autor destaca e que está extremamente evidente em 2019: a afirmação da informalidade como norma no mercado de trabalho pelas massas crescentes de “excluídos urbanos”. As consequências desse modelo são não só a informalidade, mas um aumento da criminalidade e a expansão da pobreza, acompanhada da perda de proteção social para os empregados. À essas questões os governos deram respostas com programas de assistência social que não tratavam a causa dos problemas, e, até mesmo essas medidas estão passando, atualmente, por desmonte.
Outra consequência é um certo abandono do mercado interno, posto que a exportação recebe um enfoque maior e “prefere a redução de custos à ampliação do consumo [interno]”. O resultado direto é uma reorganização dos grupos locais entorno do financiamento externo e da capitalização da bolsa, em uma relação que beneficia muito mais os países de origem do capital. Todavia, Katz afirma que, diferente do que pode parecer e do que alguns podem afirmar, a América Latina não é mero fantoche dos países desenvolvidos: há ímpeto para gerar desenvolvimento local, todavia os padrões de competição, investimento e exploração atuam como freio para esse movimento, promovendo uma incapacidade para alcançar tal objetivo.
Quanto a indústria, muito similar ao que se assiste hoje (2019) no Brasil, a América Latina enfrentou um processo de “reprimarização”, com uma forte deterioração dos investimentos em infraestrutura e predomínio industrial estrangeiro que tem como principal insumo a força de trabalho barata. As grandes multinacionais deixaram seus países de origem em busca de garantias trabalhistas e ambientais mais flexíveis, promovendo no local onde se instalam uma criminalização da sindicalização e destruição ambiental.
Ainda sobre as receitas dos países latino americanos, o autor destaca o papel das remessas e do turismo. Quanto a primeira, é deixado evidente há uma “situação dual de rendas produzidas em um país e consumidas em outro”. Já quanto ao turismo, o que se observa é o aumento do foço entre ricos e pobres evidenciado pela construção imaginária de uma “periferia do prazer”, reavivando o “racismo e o elitismo” em práticas de turistas vindos das “economias centrais”.
Todavia, o texto revela que, apesar de indicadores sociais muito mais elevados que os latino americanos e periféricos em geral, as economias centrais convivem com a crise como fato cotidiano onde “sinais promissores de reanimação se dissolvem com o reaparecimento de tempestades financeiras e paralisações produtivas”. Um dos fatores que contribuíram para essa situação foi o tratamento dado as crises pelo Estado, impedindo a quebra dos grandes bancos com rombos nos cofres públicos. As vítimas da crise convivem com a pobreza, o desemprego e a queda dos salários enquanto os responsáveis não sofrem punições parelhas aos problemas que causaram.
Os Estados Unidos, onde a crise explodiu, continua com “a primazia do dólar no comércio e nas finanças” mundiais de tal forma que “definem o ritmo e as características da reforma do sistema financeiro” global. Com esses fatos e a reabilitação do FMI como “auditor das economias nacionais”, os EUA tiveram e tem uma capacidade de socializar mundialmente suas crises. Mas essa capacidade apresenta também pontos negativos no território norte americano. Obviamente que o gigante capitalista não permitiria que seus ricos participassem do processo de partilha dos prejuízos, logo são os trabalhadores que sofrem com os impactos internos sob forma de ampliação das desigualdades sociais e desemprego.
A supremacia norte americana ainda conta com o fator bélico para reafirmação do seu protagonismo econômico, atuando como “policial do planeta” numa política de “guerra perpétua” que não se incomoda em ferir liberdades democráticas. No plano econômico, a atuação se dá por “sufocamento” do adversário, obrigando-o a negociar e perseguindo com sansões econômicas qualquer um que tente o desenvolvimento bélico de forma autônoma, rememorando em parte o Tratado de Versalhes (1919), com a completa humilhação da Alemanha, que aparece no livro como potencia que passou a encabeçar o “velho mundo”.
Num contexto em que a Europa se encontra presa “em um círculo vicioso de quebras bancárias e déficit fiscal”, a Alemanha despontou na União Europeia com o aumento da produtividade acima dos salários e a corrosão das garantias sociais. O panorama geral, inaugurado na ultima década do século XX, é de privatização e desregulamentação, mesmo que sem resultados efetivos sobre a estagnação e o desemprego, usando “a permanência no euro para justificar a destruição do Estado de bem-estar”. Nesse sentido, a União Europeia acaba servindo como ferramenta de socialização dos problemas, tornando a desigualdade econômica regional e a recriação da ordem centro-periferia uma realidade interminável.
Os problemas internos são numerosos: já não se pode mais falar de um pacto federativo de peso, mesmo que seja de reinvindicação popular, posto que qualquer ideologia federativa para a “Europa do capital” se tornou incompatível com a realidade neoliberal. Os efeitos mais imediatos foram: (1) o domínio de “uma casta supranacional”; (2) a perda geral de soberania econômica e popular; e (3) a aceleração das privatizações, base do modelo e Hayek. Evidentemente a população não aceitou e nem aceita “férias da democracia” em completo silêncio, o que fica comprovado pelo “prestígio das correntes eurocéticas” que persiste até hoje (2019).
Katz traz ainda exemplos da África e da Ásia, todavia esses continentes assistem em grau diferentes a deterioração que a inserção da lógica neoliberal causa, com os prejuízos já citados anteriormente em maior ou menor escala. Garantindo alguma celeridade à esse resumo, o último capítulo sugerido para a leitura se ocupa com analisar as contradições que os nomes podem gerar, aglutinando em um mesmo grupo países com características muito diferentes, como é o caso chinês, posto no grupo dos emergentes.
Descrita como a nova “oficina do mundo”, a China encontrou nas crises do século XXI a oportunidade de rivalizar os EUA como principal potencia econômica. O crescimento cavalar (com média anual de 10%) teve inicio com reformas mercantis e planificação econômica em meados da década de 80. A virada para o capitalismo ocorreu pós-1990 com privatizações e a formação de uma classe capitalista capaz de realizar investimentos em empresas nascentes. Os números demonstravam uma triplicação da renda per capita, todavia a pratica revelou um aumento dos níveis de desigualdade social e retrocessos das conquistas populares, interrompendo o ciclo de progresso conquistado pela revolução. Todavia a formula de crescimento chinesa encontrou/a obstáculos internos e externos, mas talvez o principal deles esteja na “altíssima taxa de investimento”. Para o restante do mundo, é importante lembrar que o modelo exportador chinês não é agregador nem inclusivo.
Internamente, apesar de duas linhas diferentes (uma mais focada no comercio exterior e outra no desenvolvimento interior), todos os dirigentes concordam com uma “estratégia geopolítica defensiva” que não visa competir na vertente bélica com os EUA. “A China inunda o planeta de capitais e mercadorias, mas não de Forças Armadas e conspiradores”: essa frase define com qualidade o paradigma chinês. Ao contrário do que possa parecer, um confronto China-EUA não seria interessante para nenhuma das potencias, posto que há uma “codependência” entre as duas. Ao longo desse ano (2019) o mundo assistiu um início de confronto comercial que aparentemente ainda terá muitos desdobramentos. Mas, independente do conflito com os EUA, a China “incide diretamente sobre a marcha do ciclo global”, o que a diferencia dos demais países emergentes.
Com exceção da China, obviamente, o que une os emergentes são as taxas de crescimento variáveis e incertas, muito dependentes do “vaivém das commodities” e algum protagonismo regional efetivo ou projetado, todavia essa classificação “emergentes” já tem caído em desuso, por ser um conceito um tanto quanto vago, posto que os ditos “emergentes” apresentam mais diferenças que semelhanças. Todavia, considerando esses países intermediários, a realidade é que vivem tropeçando em segmentações que impedem o crescimento geral por meio de “redes protecionistas” ou “coalizões belicistas”; pelo contrário: buscam um nicho separado dentro da ordem neoliberal, por vezes aliando-se de forma pouco compensatória com potências maiores. O BRICS é um exemplo dessa segmentação: apesar de buscarem “confluências frente a contingencias de curto prazo” não avançam “em compromissos significativos”.
Ainda sobre esse grupo (BRICS): que união curiosa! Em um mesmo grupo estão: a (1) Rússia com o “totalitarismo democrático” de Putin que se mantem como potência não por índices sociais e econômicos, mas por sua indústria bélica; a (2) Índia, um gigante com mais de 1 bilhão de pessoas que tem uma série de problemas internos sem resolução e vivencia índices sociais aterrorizantes (77% da população na pobreza; 40% das crianças subnutridas; entre outros); a (3) África do Sul e o seu “capitalismo negro” neoliberal que prega o “renascimento africano”, presente no grupo não por índices, mas por alguma iniciativa de protagonismo regional; o (4) Brasil com um tímida guinada a esquerda, conservando os moldes neoliberais em associação ao progressismo dos governos do Partido dos Trabalhadores; e a (5) China, já muito descrita anteriormente.
Por fim, as margens do sistema mundial encontram-se os países periféricos, marcados pelo flagelo da fome que é reforçado pela divisão internacional do trabalho voltada para transferências de recurso da periferia para o centro. O mundo árabe é um representante emblemático dessa periferia: com países ainda sob o sistema de monarquia absolutista, vivencia um “neoliberalismo furioso”, marcado por privatizações e flexibilidade das leis trabalhistas (permitindo inclusive trabalho escravo), além da perigosa combinação subdesenvolvimento-rentismo, que promove pobreza e desigualdade, servindo como chamariz para mais multinacionais que enxergam na miséria a possibilidade de obtenção de força de trabalho barata. A flexibilidade abre caminho para a superexploração com “repressão e assassinato de sindicalistas”.
Como sugestão, para a conclusão desse curto resumo, recomenda-se o filme “Coringa” lançado em 2019. Dentro das paredes da universidade somos todos privilegiados, e os livros, por mais bem escritos que sejam por vezes transformam pessoas em dados, em números perdidos entre uma página e outra. A analise factual que C. Katz abre caminho para a visualização do problema que é de carne e osso, que está deitado na calçada e que muitas vezes ignoramos ao correr para apresentar um seminário. No filme “Coringa”, apesar de retratar a história de um anti-herói, a questão é que a ausência do Estado e a indiferença social chegaram a um pouco insustentável em que a única saída se tornou a loucura. Nesse sentido “Coringa” não é uma pessoa, mas sim uma ideia: o ponto de ruptura de um sistema excludente, como é o neoliberalismo que Katz analisou com maestria. Nas últimas manifestações pelo mundo diversas pessoas utilizaram a máscara do palhaço que protagoniza o filme e talvez isso seja um alerta de que um limite está sendo ultrapassado. O estado, a economia, os economistas, não deveriam trabalhar para o Mercado, praticamente endeusado nas correntes neoliberais, mas sim para as pessoas e para a garantia da dignidade humana. Concluo propondo a seguinte reflexão: salve todas as pessoas e queime todas as instituições, todo o dinheiro, todos os livros de economia. Deixe ruir até que não sobre nada além de cinzas. As pessoas vão criar instituições, vão inventar moedas e escrever livros. Salve todas as instituições, todo o dinheiro e todos os livros de economia. Queime todas as pessoas: crianças, adultos e idosos. Deixe ruir até que não sobre nada além de cinzas. O que vai acontecer?




Relatório: A nova toupeira



SADER, Emir. A crise hegemônica na América Latina; O futuro da América Latina. In: SADER, Emir. A nova toupeira: os caminhos da esquerda latino-americana. São Paulo: Boitempo, 2009.

Em 2019: equatorianos foram as ruas pelo aumento dos preços do combustível; peruanos passam por uma crise política grave; bolivianos foram as urnas, elegeram um presidente que renunciou por pressão das forças armadas; chilenos vão as ruas por uma nova constituição; venezuelanos enfrentam o governo autoritário de Nicolas Maduro; negociações sobre o valor da energia de Itaipu levam paraguaios as ruas; com a miséria superando 40% da população argentina, governo é obrigado a promover lei de assistência alimentar.
Emir Sader escreveu em 2009, mas sua leitura nunca tão foi atual. Aparentemente a América Latina passa por ciclos de crises periodicamente, e olhar para a história conturbada desse território pode nos ajudar a compreender os porquês do título “A crise hegemônica na América Latina” parecer tão atual.
O texto tem inicio com uma reconstrução histórica do período pós-Grande Depressão, observando as respostas que os diversos países encontraram para a crise. É verificado pelo autor uma transformação sem paralelos da “fisionomia” latino-americana, marcada ou pela “elaboração de projetos nacionais” ou pelo “desenvolvimento das forças produtivas”, inaugurando um robusto “ciclo expansivo” tanto econômico quanto de direitos sociais e políticos, mesmo que marcado pela desigualdade social arraigada. Nesse sentido, surgiu uma diferenciação em três grupos de países: (1) os que adotaram “projetos de industrialização para substituir as importações, transformando desse modo a estrutura produtiva”; (2) “os que deram passos nessa direção”; e (3) “os que não conseguiram sair da estrutura primário-exportadora”.
O período descrito acima, tendo como pano de fundo a política desenvolvimentista ou nacional desenvolvimentista foi hegemônico por algumas décadas, todavia encontrou seu esgotamento na década de 70, em crises que levaram a ditaduras horrendas com transições complicadas: o Estado perdia a capacidade reguladora, as políticas sociais eram cada vez mais enfraquecidas, o patrimônio público era privatizado e as economias eram escancaradas para o mercado internacional. O fim do ciclo desenvolvimentista abriu espaço para a instalação de modelos neoliberais experimentais de joelhos para a “hegemonia imperial norte-americana”. Projetos alternativos pareciam inviáveis ou nem mesmo eram construídos. O capital, antes muito regulado pelo Estado, acabou “liberado de suas travas”, todavia essa liberdade o levou ao setor financeiro, pontapé inicial para uma nova hegemonia mundial baseado no capital financeiro “agora aliado aos grandes grupos exportadores, e com um novo protagonismo dos agronegócios”. Uma ferida aparentemente irremediável foi aberta.
O modelo neoliberal, ao conquistar espaço já na década de 80, parecia inabalável: contava com apoio irrestrito da “grande mídia privada”. O controle da inflação e a promessa de um novo ciclo de crescimento, aliado a aparente estabilidade financeira colocaram um modelo em um pedestal. Todavia a aparente vitória durou pouco: a partir da década de 90 as economias latino-americanas começaram a implodir sucessivamente passando por crises cambiais, sociais, entre outras. “A abertura das economias, aliadas à dependência estrutural do capital especulativo, produziu fragilidades” e sem bases sociais fortes pela ausência de distribuição de renda a primeira onda neoliberal ruiu, mesmo com a “grande mídia mercantil” fazendo uma defesa ferrenha do modelo fracassado. Todavia, o neoliberalismo deixou legados de vertente ideológica: produziu uma “fragmentação social e cultural [...] em toda a imensa massa da população” e alienou as pessoas quanto a sua capacidade de agência histórica e política. As consequências desses legados são vistas ainda hoje com a dificuldade da “capacidade de manifestação, de negociação, de apelo à justiça, de construção de força política, [...] de identificação com o mundo do trabalho e com a sua cultura”, abrindo espaço para a ausência de pensamento crítico, ou seja, entregando os indivíduos a ideologia artificial de culto a “globalização, a tecnologia, a competição e a riqueza”. Nessa parte do texto recordei de uma composição brasileira dos anos 80 que ilustra bem o resultado da alienação e da fragmentação sociocultural:
Ultraje a Rigor (1983): "A gente não sabemos; Escolher presidente; A gente não sabemos; Tomar conta da gente; A gente não sabemos; Nem escovar os dente; Tem gringo pensando; Que nóis’ é indigente; A gente faz carro; E não sabe guiar ;A gente faz trilho; E não tem trem prá’ botar; A gente faz filho; E não consegue criar; A gente pede grana; E não consegue pagar; Inúteu’!; A gente somos inúteu’!".

Essa sensação de inutilidade construída fez com que mesmo com a “capacidade tecnológica para construir ‘outro mundo’” a sensação de impotência se impusesse, compondo uma realidade inevitável.
Posto essa curta explanação, é conveniente trazer a divisão de períodos que o autor traz: “surgimento, consolidação e crise”. Se faz necessária a crítica: E. Sader coloca em uma mesma fase (surgimento) os governos Thatcher-Reagan e a ditadura de Pinochet. Pela diferença clara entre regimes democráticos e autoritários talvez caiba o acrescimento de mais uma fase anterior ao surgimento, uma fase embrionária que abarque o Chile pinochetista. Feita a crítica, a primeira fase, o surgimento, engloba neoliberalismos mais duros: Chile, Estados Unidos e Inglaterra. A segunda fase, a consolidação, é marcada pela hegemonia mundial com o neoliberalismo adentrando o eixo político conhecido por “terceira via”, as socialdemocracias, sob liderança de nomes como FHC, Fujimori, Andrés Pérez, entre outros. Apresentavam versão menos dura que o neoliberalismo ortodoxo, onde ainda havia espaço para medidas de bem-estar social. Todavia, essa fase se esgota já nos anos 1990, como descrito anteriormente.
Nesse cenário de deterioração do neoliberalismo do início do século XXI, governos de espectro político fervilharam por toda a América Latina. Sader os nomeia “pós-neoliberais”, “híbridos” que se sustentam na união de forças de diversas vertentes, ocupando as brechas do neoliberalismo com políticas sociais e integração regional. Um curto parêntese para o protagonismo chinês, que com o crescimento galopante se mostrava como uma opção anti-estadunidense para a diversificação das relações comerciais.
Lula, Evo Morales, Rafael Correa, entre outros são os nomes dessa nova fase pós-neoliberal. A América Latina viveu um período dourado, com lideranças alinhas à integração regional, sobrepondo a solidariedade ou livre-comércio. Começava-se a caminhar para uma ruptura com o neoliberalismo. Todavia, apesar da aparente estabilidade, essas lideranças enfrentavam forte oposição interna de uma direita neoliberal que começava a recuperar seu folego e “lançou mão das esferas em que sua hegemonia não havia sido atingida [...]: o poder econômico e o midiático”. Acusavam as lideranças pós-neoliberais de corrupção, ameaça de liberdade de imprensa, desabastecimento, entre outras insinuações a depender do local. O pensamento conservador renasce com “a inflação e a violência”. A analise do autor se encerra nesse ponto, as próximas observações que E. Sader elaboração são projeções: possíveis eleições da oposição ou continuação dos regimes; o interesse mundial na América Latina pela capacidade energética e pela força do agronegócio; o medo dos Estados Unidos pela capacidade impar latino-americana de uma integração alheia ao restante do mundo, entre outras possíveis realidades. Todavia, já vivenciamos os anos que o autor tenta predizer.
A partir de 2014 os governos do espectro pós-neoliberais começaram a perder força. Piñera foi eleito no Chile, apesar da reeleição a Dilma Roussef é derrubada por um golpe no Brasil, Macri é eleito na Argentina, entre outros. A direita neoliberal ressurgiu e hoje, 2019, tenta se impor a força. Como demostrado no paragrafo inicial do texto: a América Latina entra em convulsão outra vez e o futuro parece a cada dia mais sombrio. O que esperar quando um presidente pós-neoliberal é forçado a renunciar no seu país e presidentes neoliberais se mantem no poder mesmo com ampla rejeição popular? E até mesmo o socialismo do século XXI, uma alternativa trazida pelo autor, encabeçado por Hugo Chavez foi levado a lama por uma ditadura. O presente é violento e o futuro parece aterrorizante. O neoliberalismo perdeu a capacidade de chegar ao poder por vias democráticas e não se preocupa com o autoritarismo, a sua flexibilidade para a manutenção dos privilégios é incrível e não deve ser desprezada. Enquanto acadêmicos, talvez o nosso papel esteja em, como fez T. Piketty, mostrar opções alternativas para a vida em sociedade, afinal, como afirma o professor Ladislau Dowbor no artigo “A burrice no poder” (2018) “não estamos aqui sugerindo perfeita igualdade, mas sim uma situação menos obscena, em que cada pessoa possa valer pelo que vale como pessoa, e ter as suas oportunidades de crescer. [...] Temos os recursos, temos as tecnologias, sabemos como fazer, e custa muito pouco. É exagero falar de ignorância?”. Quem escreve esse relatório acredita que não é exagero. Não é mais uma questão econômica de espectros a esquerda ou a direta, mas é uma questão de dignidade humana. Encerro com mais uma composição musical nacional que ilustra a situação para qual tendemos:
Augusto Boal e Geny Marcondes (1961): “Passo a vida trabalhando; Dando duro no batente; A comer de vez em quando; Isso é vida minha gente‎;Se ser livre é passar fome; Não basta ser livre, não; Pro’ patrão pedi aumento; Só levei um pontapé; Sem comida e sem vintém;  E agora, sêo’ José?‎; Se ser livre á passar tome; Não basta ser livre, não; No xadrez não me quiseram; Posse fome lá pra fora; se estou livre, estou faminto; Com a barriga dando hora.‎; Sem comida a liberdade; É mentira. não é verdade; Zé da Silva é um homem livre; O que, o que, o que‎;Zé da Silva é um homem livre‎;O que ele vai fazer?‎;O que?‎;Livre é livre, é livre.‎;Livre, livre, livre; É livre!‎;Aqui! Que eu sou livre.”.





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