sexta-feira, 25 de junho de 2021

ANÁLISE DE MEME - NAZARÉ CONFUSA

 ANÁLISE DE MEME - NAZARÉ CONFUSA

Diferente da maioria dos memes que duram algumas semanas ou meses, o meme da Nazaré confusa já está com 5 anos e segue sendo utilizado mundo afora:




Entretanto, é provável que a maior parte das pessoas que já repostaram o meme não conheçam sua génese. A origem desse meme é da personagem fictícia Nazaré Tedesco, interpretada por Renata Sorrah, em 2004, na telenovela “Senhora do destino”. Nazaré Tedesco foi uma sequestradora, assassina e golpista fria e calculista (apesar de aparentar desgaste mental durante a novela, o que provavelmente resultaria na “confusão” retratada no meme) que sequestrou um bebê, assassinou ao menos 3 pessoas (de diversas formas: empurrão na escada, tesourada e eletrocussão) além de tornar a vida da enteada um inferno, sequestrar a neta e cometer suicídio no fim da obra.

É provável que a lembrança de Nazaré Tedesco seja bastante marcada pela imagem de assassina fria e, principalmente, pelos seus métodos de assassinato (com predomínio para a escada da própria casa). É difícil saber se apresentar fotos da personagem com expressões matemáticas sobrepostas teria algum significado para pessoas que acompanharam a novela.

Outra questão pertinente é se as pessoas que compartilham o meme conhecem o passado “sombrio” (e pastelão) da vilã de Senhora do destino. Tendo a acreditar que não, pois o meme perderia parte de sua essência cômica relacionando a “confusão” que dá nome a essa outra face de Nazaré com a “confusão” mental/psicológica de sua face vilanesca.

Desde 2016 pelo menos o meme vem sendo usado nas seguintes circunstâncias:

-Perguntas que causam algum tipo de reflexão;



-Questões confusas;

 

-Como denúncia de diferentes tipos de preconceitos no qual o autor não se reconhece como preconceituoso.


Com tantas utilidades desvinculadas da personagem inicial, esse “desvio de função” se torna mais um exemplo de agência dos objetos, pois o meme captura uma noção de mundo da pessoa que o fabrica (o escritor de Senhora do destino ou a própria Sorrah, que deu vida à Nazaré) e, mesmo deslocado do ambiente para o qual foi desenvolvido, ele continua agindo em diferentes perspectivas. São "bons para pensar", em termos lévi-straussianos. As agencias não vão estar perpetuamente atreladas a ideia de quem construiu os objetos.  Elas vão capturando outras formas de agir (histórica e socialmente contidas), outras relações (daí os diferentes usos do meme), em contato com outros meios, se tornando independentes de quem os concebeu, ou seja, produzimos coisas que "fazem fazer", relembrando Latour. Além disso, esse objeto em específico, o meme da Nazaré confusa, alterou em grande parte a memória coletiva da personagem de lhe deu origem de assassina cruel para uma senhora confusa.


Atividade Final – MÉTODOS E TÉCNICAS DE PESQUISA EM ANTROPOLOGIA SOCIAL

 

Quando vi a proposta desde último trabalho da disciplina, logo pensei "vou procurar o que já foi escrito pelos colegas sobre meu tema (grilagem)". Abri o repositório e digitei "grilagem" no buscador. A surpresa foi grande, pois haviam pouquíssimos trabalhos sobre o tema (e ressalto que a busca foi bastante ampla, tentando encontrar o termo em todo o corpo dos textos). Felizmente um dos trabalhos era do Departamento de Antropologia (DAN). A monografia "Urbanidades e Ruralidades em Brasília. História da transformação de Vicente Pires – DF: chácaras, condomínios e cidade" de autoria de Bruno Cesar Medeiros Cassemiro sob orientação de Dra. Cristina Patriota de Moura, trata da transição de rural para urbano da região de Vicente Pires, tangenciando o tema da grilagem em alguns momentos. Mas tratemos aqui do tema do trabalho e deixemos os interesses pessoais para depois.

            O texto de Cassemiro (2012) é especialmente interesse quando pensamos nos métodos, posto que trabalha uma série de temas abordados durante a disciplina. Primeiro, a questão do distanciamento: o autor era morador da região onde realizou seu campo há mais de 20 anos, criando uma dualidade entre morador e pesquisador. Era preciso, mais que em outros casos, "estranhar" o cotidiano, tornando-o parte de uma experiência etnográfica singular: "Há aqui um (quase) antropólogo apresentando um pequeno estudo sobre o lugar em que mora. E no final desse percurso de pesquisa esse pesquisador acabou se (re)fazendo morador" (p.12). O que aparentemente facilitou esse processo foi a experiência na iniciação científica, que também comentamos em aula. Cassemiro foi orientando de Patriota também em iniciação à pesquisa, e, junto ao seu grupo de pesquisa, fez de Vicente Pires um "grande laboratório".

            Outra questão que me chamou atenção quanto aos métodos e técnicas da monografia foi o fator ético de reconhecimento do papel dos investigados (sem nenhuma conotação negativa) na elaboração do texto antropológico. O autor não propôs uma autoria compartilhada ou algum compartilhamento criativo como os que tem surgido recentemente. Cassemiro destacou o papel de contribuintes como "testemunhas oculares e partícipes" nos fenômenos etnografados, tendo importância crucial para os resultados apresentados, o que considero, depois das discussões nas aulas, a forma mais correta de reconhecimento dos nossos informantes.

Comentário sobre a participação de Marina Silva no Veredas do Futuro

 

Esse texto curto tem por objetivo tecer um comentário a fala de Marina Silva (historiadora, professora, psicopedagoga, ambientalista e política brasileira filiada à Rede Sustentabilidade) no Programa "Veredas do Futuro" do Centro de Desenvolvimento Sustentável da Universidade de Brasília (CDS/UNB). Em um primeiro momento será apresentado um resumo da fala da ex-senadora e posteriormente será ressaltado alguns pontos que chamaram a atenção do autor desse comentário.

O Veredas do Futuro é um evento em que há um momento de fala do convidado seguido de indagações dos demais presentes. A fala inicial de Marina Silva se dividiu em um diagnóstico da crise ambiental brasileira e possíveis saídas. Marina começou levantando alguns fatores ligados a crise ambiental brasileira que julgou importantes. O primeiro deles, o processo de erosão política ou desencantamento com a política dominou fora resumido a uma crise ética na política brasileira que surge dos desvios éticos e da falta de ideologia dos partidos brasileiros que tem tomado decisões com foco apenas na manutenção do poder, deixando de ser prospectivos e abandonando o lado vivo/dinâmico da política. O resultado desse processo é uma política cada vez mais impotente e incapaz de resolver os problemas ambientais que surgem. A ex-candidada a presidência afirma que esse processo teria começado em 2012. O segundo fator ligado a crise ambiental brasileira levando por Marina foi a fragilidade das instituições, que decorre, em parte, do primeiro fator. Quanto a isso, a ambientalista teceu comentários mais ásperos ao governo atual, afirmando que já nos tornamos um pária internacional, que a nova agenda do congresso tende a só piorar nossa imagem no exterior abordando temas como mineração em terras indígenas, que o vice-presidente Hamilton Mourão (assim como o exército brasileiro) é incapaz de gerir ações ambientais na Amazônia e o orçamento está extremamente mal dividido (o exército recebe em 1 mês o que o IBAMA tem para gastar no ano). O resultado disso é um desmonte dos órgãos de regulação, como IBAMA e ICMBIO pautado num novo desenvolvimentismo de direita sem base sustentável. Novamente a ex-senadora se volta para governos passados buscando apontar as raízes do problema, localizando temporalmente no ano de 2014 o início do desmonte dos órgãos de proteção ambiental. Como terceiro fator que pude mapear na fala de Marina (e aqui faço uma inversão na ordem das ideias para facilitar a compreensão), consta o negacionismo na pandemia e nas políticas ambientais no geral. Ligado ao segundo fator, Marina disse que é o negacionismo do governo e de parte da elite que o apoia causa principal do atraso brasileiro, pois seria justamente esse negacionismo que impediria o "renascimento sustentável" brasileiro. E a partir daqui já passam a ser apontados as saídas para a crise ambiental brasileira. A historiadora afirmou por diversas vezes que era possível tornar o Brasil uma potência agrícola e ambiental ao mesmo tempo e que cabia a nós, acadêmicos, encontrar as perguntas corretas pois as respostas já estavam dadas em projetos sustentáveis sendo desenvolvidos em todo o país, mas com pouco ou nenhum respaldo estatal. Pra além disso, a palestrante apontou que carecemos de uma melhora na qualidade da nossa democracia, nos atentando para a necessidade de alternância do poder. A sociedade teria um papel central nessa superação da crise, combatendo a política do ódio e resignando-se com os desmandos que surgem. Na segunda parte do Veredas, as perguntas circundaram a fala anterior, trazendo poucos elementos novos. Entretanto, cabe ressaltar questões como: educação ambiental, a busca por um novo ideário "sustentabilista", a formação de uma cultura centrada da sustentabilidade e a afirmação de que não chegamos em um ponto irremediável.

Terminado o resumo da apresentação de Marina Silva, inicio a segunda parte desse texto com um tom mais subjetivo e crítico. Primeiramente é necessário ressaltar a necessidade de mais propostas como essa do Veredas do Futuro, propostas de um bom debate, respeitoso e consciente. Quanto a fala da ex-senadora, há alguns pontos curiosos. Alguns pontos me incomodam na ideologia política da qual Marina compartilha, com origens internacionais nos Partidos Verdes mundo afora, em que os políticos afirmam tomar uma posição acima da divisão clássica de direita ou esquerda, colocando "o verde"/ o meio ambiente em primeiro lugar. O incomodo surge na medida em que esse "estar acima", essa suposta neutralidade toma ares de uma ideologia de direita "tímida", receosa de se afirmar de direita para não perder apoiadores da esquerda clássica. Obviamente que a divisão de direita e esquerda vária de acordo com contextos temporais e espaciais, como já afirmou Norberto Bobbio. Entretanto, observando o recorte brasileiro, essa "neutralidade" normalmente tende a direita, o que por si só não é nenhum problema. O problema é justamente tentar disfarçar ou esconder isso. Outra questão incômoda é que Marina Silva parece guardar mágoa dos antigos governos petistas, da qual ela fez parte. Eu entendo que uma derrota na eleição presidencial não seja fácil de engolir, mas há que haver convergência para o simples fato de que os governos petistas nunca entraram em investidas autoritárias ou negacionismos como o eleito em 2018.

Outra questão que carece de maior atenção é a proposta de Brasil como uma potência agrícola e ambiental simultaneamente. Entendemos que Marina está propondo uma outra via de desenvolvimento econômico com foco em práticas agrícolas sustentáveis, mas esse mesmo discurso serve para reforçar o argumento de que a terrível divisão fundiária brasileira se justifica na medida em que é necessário manter os latifúndios como motor no agronegócio. Como crítica final me preocupa a repetição de que "não chegamos em um ponto irremediável/ sem volta" que Marina fez. Me parece que ela estendeu bastante os limites de "irremediável". Duvido que a historiadora tenha esquecido dos incêndios que escureceram São Paulo ou que em algumas regiões do cerrado já não é mais possível colher a safrinha por ausência de chuvas. Enfim, não sejamos inocentes a ponto de ignorar que Marina é uma política de renome brasileira e como política ela precisa manter acesa a chama na esperança nos seus eleitores.

Levantados esses pontos, não há como discordar do resto do discurso da ex-candidata. Como comentário final, gostaria de ressaltar que Marina está seguindo uma linha de raciocínio que vem ganhando bastante espaço no exterior e tem ganhado cada vez mais adeptos no Brasil que é a da substituição da Técnica pelas técnicas (Danowski e Viveiros de Castro, 2014), ou da tecnologia pelo tecnodiversidade (Hui, 2020), tendendo a pensar que há outras escolhas possíveis dentro do espectro de técnicas modernos.

 

Referências

Danowski, D. e Viveiros de Castro, E. 2014. O Fim Do Mundo Como Acontecimento Fractal. In Há Mundo Por Vir? Ensaio Sobre os Medos e os Fins. Florianópolis: Instituto Socioambiental: 126–142.

Hui, Yuk. 2020. “Cosmotécnica como cosmopolítica”. In: Tecnodiversidade. São Paulo: Ubu: 21-46.

Resenha do 2⁰ Transformações Técnicas em Perspectivas Locais (Primeiro dia)

 

Na conferência "Anthropology of life and anthropology of techniques: a productive dialogue" dos professores Perig Pitrou & Ludovic Coupaye fomos apresentados a um panorama geral das formas de implicação entre técnica e vida. Abrindo as apresentações, Pireg Pitrou iniciou trazendo uma definição da antropologia da vida como uma investigação comparativa sobre as concepções de vida em seus contextos social e técnicos. A vida não é um tema novo e as abordagens de pesquisa sobre o assunto se multiplicaram nas últimas décadas, trazendo o perigo da fragmentação. Tentando antecipar-se aos problemas, o professor defendeu um esforço para organizar o campo, articulando dados empíricos e construindo um arcabouço conceitual para possibilitar uma abordagem comparativa que consiga integrar o campo da etnologia de sociedades não ocidentais. Esse esforço se daria na vinculação de três pontos: (1) o campo da antropologia da técnica, possibilitando insights sobre o método comparativo na medida em que se define como  o estudo da coordenação da agência entre agentes humanos e não humanos, seres vivos e artefatos; (2) o entendimento sobre as diferentes entre as vertentes da antropologia da técnica, uma relacionado a domesticação e a interação entre viventes e outra relacionada ao estudo das ligações entre viventes e artefatos, possibilitando então uma distinção entre a vitalidade e o processo da vida (produções tecnológicas/rituais tecnológicos; geração de vida/interação) em um contexto sociotécnico; e (3) o estudo da relação entre seres vivos e cultura material como possibilidade de comparar a vida com processos técnicos visando revelar como se vive. Dessa forma nos indagamos quais as relações entre artefatos ou processos técnicos e seres vivos, ou processos vitais? E a resposta surge da antropologia da técnica, que apresenta a possibilidade de mudar o foco da abordagem da antropologia da vida e a evitar o biocentrismo da biologia para levar em conta o contexto social e técnico, prestando atenção na distinção entre seres vivos e a vida, possibilitando ligar relação técnicas e sociais e analisar as relações entre seres vivos e artefatos.

Nessa mesma linha introdutória, Ludovic Coupaye iniciou sua apresentação com o seguinte esquema "[HUMANS] <-> TECHNICS <-> [MILIEU]". A ideia do esquema é que técnicas são pontos de encontro ou convergência entre humanos (entre colchetes pelo fato de não serem apenas os humanos a possuíem técnicas) e o meio deles.  Vale destacar que "meio", para o professor, pressupõe algo em que nós estamos imersos e com alguma relação ecológica. A partir dessas explicações iniciais sobre o esquema apresentado, o professor destacou três questões importantes sobre técnicas: (1) são modalidades relacionais entre ambos os lados, modalidades que podem ser um encontro (entre humanos e um meio onde surgem técnicas), uma mediação (os humanos usam técnicas para lidar com o meio), e uma união (mostra que as técnicas não podem ser definidas por si só e sim por um modelo relacional entre humanos e o meio); (2) técnicas são processos, se desenvolvem no tempo e no espaço, se relacionando com outros processos vitais ou técnicos naquele meio; e (3) técnicas são relações entre humanos e o meio que envolvem dois componentes importantes: técnicas do corpo e objetos técnicos (podem ser intangíveis); portanto não é interessante separar vida e técnica, com risco de cairmos na divisão de sociedade e natureza. Aprofundando esses pontos, o professor Ludovic retomou a definição maussiana de ato técnico, um ato eficaz (eficácia vernacular, ação com intenção de produzir algo) e tradicional (aprendido e ensinado, com normas específicas, reconhecidas e relacionadas), destacando que as técnicas escolhidas são apropriadas para a intenção e para o ator, com dimensões éticas e morais, fugindo assim de determinismos. Na sequência, assistimos ao desenvolvimento da pesquisa na Papua Nova Guiné a partir do exemplo dos grandes tuberculos (artefatos de valor visual, alimentício, monetário e ainda seres vivos - ou seja, relacionados a seres vivos e não vivos, atos e agentes diferentes, atuando na socialidade), a partir do qual verificamos que agentes, materiais, ações, socialidade, substâncias estão todas ligas a atividades técnicas, com níveis diferentes de pertinência e moralidade. Encaminhando para a conclusão, fora feito um apelo por outro tipo de etnografia, que dialogue com categorias vernaculares. A conferência foi finalizada com um resumo das dimensões nas quais a antropologia da técnica se concentra: atividades técnicas, objetos técnicos e sistemas técnicos. Cabe a nós, pesquisadores, pensar nas configurações agentivas que permeiam e constituem as técnicas. Essa última colocação nos fornece o gancho perfeito para a Sessões de Trabalho "A vida vegetal e seus modos de ação" aconteceu na tarde do primeiro dia de evento.

Nessa segunda atividade conhecemos um pouco mais dos trabalhos desenvolvidos por Eduardo Di Deus, Joana Oliveira, Magda Ribeiro e Gilton Mendes, reagindo as provocações do debatedor Alexandro Oliveira, tendo por ponto comum as configurações agentivas que permeiam e constituem as técnicas com relação a vida vegetal. Iniciamos então ouvindo um pouco sobre os desafios metodológicos encontrados por Eduardo Di Deus no estudo das relações humano-plantas ao observar ritmos e fluxos nos seringais de São Paulo seguido de uma explanação de Joana Oliveira acerca da possibilidade de comunicação entre humanos e não humanos a partir da ideia de agencia das plantas, invertendo as relações entre humanos e o meio com base nas observações sobre os mecanismos que as plantas desenvolveram para fazer com que outros entes as espalhassem por novos locais. Magda Ribeiro apresentou outra proposta sobre a agência não-humana, observando a fragmentação dos fenômenos de coabitação e coevolução desde a união entre antropologia e paleontologia na medida em que a biologia sintética avança nos processos de criação de vida "descontextualizado", por limitar a variabilidade na vida, mas demonstrando ao mesmo tempo novos tipos de colaboração entre pessoas, bactérias e plantas. Sem abandonar a complexificação das relações entre humanos e não humanos, pano de fundo de toda essa discussão, Gilton Mendes chamou a atenção para a "Amazônia Profunda" e as diferentes técnicas de alimentação e armazenamento dos habitantes locais que estão perdendo espaço no consumo humano a partir do "discurso civilizatório". O exemplo mais notável parece ser o da goma/fécula, que pode ser extraída de uma série de tubérculos, mas sofreu um processo de simplificação/monopolização a partir da popularização da mandioca. Coube a Alexandro Oliveira a tarefa de questionar todos esses trabalhos e o professor constrói suas inquietações a partir da alegação de que é preciso pensar nos níveis e hierarquias, não apenas mapeando relações, mas apontando para questões vernaculares da vida e o fazer político da antropologia na medida em que é ferramenta para pensar as desigualdades nos fluxos tecnológicos.

É interessante reparar como as indagações trazidas por Alexandro Oliveira vão de encontro com o temor da fragmentação do campo trazido por Pireg Pitrou, tentando buscar em categorias mais amplas a fonte para as comparações que caracterizam o fazer antropológico. Esse primeiro dia foi marcado por uma introdução as temáticas da antropologia e da técnica, conceituando e delimitando seu objeto, mas ficou ainda uma inquietação quanto a hierarquização proposta por Alexandro Oliveira sobre a qual os demais apresentadores fizeram várias ponderações. Me parece que apontar para um grande agente não-humano, como o capital, para possibilitar essas comparações é um tanto quanto improdutivo, pois retoma de alguma forma a ideia de que a antropologia precisa encontrar universais comuns. Esses "grandes agentes" servem em alguma medida como muleta de pesquisa, pois são uma carta branca/coringa que se encaixa em diversas situações abandonando uma complexificação das dimensões nas quais a antropologia da técnica se concentra, tão bem apresentadas por Ludovic Coupaye. Não é uma crítica para qual eu tenha solução, me parece claro que o aprofundamento da fragmentação na disciplina não é nada produtivo, mas hierarquizar e buscar esses "grandes agentes" também não aparenta ser a melhor alternativa para comparação. Fica a questão para discussão.

Prova Escrita – 2° 2020 – DEPARTAMENTO DE ANTROPOLOGIA – ANTROPOLOGIA DA TÉCNICA

 

Professor: Carlos Emanuel Sautchuk

Estágio docente de mestrado: Yves Seraphim e Salomão Pereira

Discente: Francisco Octávio Bittencourt de Sousa (Matrícula: 190045809)

 

Prova Escrita

a)         Com base nas ideias de Hui e de Danovski & Viveiros de Castro, discorra sobre a tecnologia moderna. Explore a noção alargada de técnica utilizada por estes autores.  Para eles, a consideração da diversidade técnica poderia sustentar uma resistência epistemológico-política ao Antropoceno? Explique.

As reflexões de Hui e de Danovski & Viveiros de Castro se articulam entorno da crise de escala planetária em que estamos vivendo. Os impactos antrópicos no planeta se aproximam das mudanças que marcam mudanças de eras geológicas, e, por essa razão, chamamos esse período de Antropoceno. Há um amplo debate sobre quando o Antropoceno começou, há quem atribua o marco inicial ao início da agricultura, outros a Revolução Industrial ou ao uso intensivo do petróleo. Fato é que todos esses marcos estão ligados a modos de relação dos humanos com o ambiente.

            Sendo assim, a crise do Antropoceno é decorrente da forma dos humanos se relacionarem com os não humanos. Essa relação é chamada de técnica. Não há uma única técnica, como a tecnologia moderna (ou seja, a forma de humanos se relacionarem com o meio na era moderna) insiste em fazer parecer. Foi justamente a crença nessa linha única de desenvolvimento que levou à crise.

            E, nos textos, é a diversificação das técnicas (compreendendo Tecnologia ou Técnica como noções políticas historicamente contidas) a saída possível, porém amarga em alguma medida, posto que representa alterações na tecnologia dominante. É o que chamam de tecnodiversidade que fará frente ao Antropoceno. Nem o simplismo tecnofóbico (que prega um retorno a vida nos moldes de séculos passados, como pode ser observado no filme "A Vila" de Shyamalan), nem a tara tecnofílica (acreditar que o avanço implacável da tecnologia moderna, nos atuais moldes, nos levará a um futuro transumanista) são alternativas para os autores em análise.

            Dessa forma, o desafio do antropólogo está em observar como as técnicas se apropriam da Técnica e propõem novos estilos de coexistir e contribuir com uma ampliação do debate a partir da dimensão empírica: quando a antropologia olha para as soluções e percebe a complexidade dos fenômenos tendo o problema ligado a uma escolha tecnológica possível, abre-se o espaço para um novo diálogo sobre formas de viver, de construir relações.

 

a)         Quais são e o que significam os cinco componentes da técnica para Lemonnier? O que ele quer dizer com “operações estratégicas”? Explique com exemplos de sua própria experiência.

No texto formativo/programático da área, escrito na virada dos anos 80, Lemonnier descreve cinco componentes principais da técnica, sendo eles: matéria, energia, objetos, gestos, conhecimento específico.  O autor não está olhando para a técnica "de fora" (seus efeitos, consequências), mas sim para o processo em si: 1. Matéria: o material, espaço, componente físico ou corpo afetado/transformado/moldado pela técnica; 2. Energia: o combustível que move os objetos que moldam a matéria; 3. Objetos: os meios de trabalho, as ferramentas usadas para afetar a matéria; 4. Gestos: parte da sequência de ações/movimentos que movem os objetos envolvidos na técnica; 5. Conhecimento específico: o "saber como", o conhecimento operacional sobre o método à se recorrer para obter um produto/um fim esperado.

            Lemonier nos diz que alterações/variações/mudanças/inovações nesses cinco componentes são pontos de partida para a pesquisa dentro da antropologia da técnica. Para ele, é particularmente instigante observar variações nas operações estratégicas, espécies de "pontos de não retorno", que não podem ser atrasadas, canceladas ou substituídas sem causar impactos significativos no resultado final do processo.

            Recentemente tenho refletido sobre o processo de grilagem de terras no cerrado e me atentado especialmente para as formas de desmatamento. É comum ouvir falar de "desmatamento" como uma categoria ampla que passa a ideia de ser homogenia por todo o território nacional, o que não é bem verdade. Existem inúmeras técnicas de desmatamento. O "correntão", bastante "popular" nas áreas de cerrado, altera um determinado espaço utilizando dois tratores e uma corrente com elos robustos presa a barra de tração do trator com um rendimento considerável, tanto que mesmo após sua proibição em 2016 continua sendo utilizado de maneira irregular.

            Uma abordagem desse método de desmatamento seria possível dentro da proposta de Lemonier. A área a ser desmatada seria a matéria; a energia seria provida pelos tratores, que são alimentados por algum tipo de combustível (como diesel ou gasolina) e operados por humanos; os objetos seriam os tratores, a corrente, os olhos giratórios (que devem ser colocados em alguns elos da corrente para evitar a torção e a consequente ruptura), os lastros (objetos pesados presos na corrente para reforçar a capacidade de arraste) etc; a forma de operar os tratores mantendo uma distância de 1/3 do comprimento da corrente e o número de passadas compõem os gestos; e as definições quanto ao tipo de corrente, peso da corrente, peso do lastro, comprimento da corrente, potência do trator, distância dos lastros etc compõem os conhecimentos específicos dessa forma de desmatamento. Como operações estratégicas há que destacar a forma correta de acoplamento entre a corrente e a barra de tração do trator (se feita da forma errada resulta pode resultar em acidentes e inviabilizar o serviço), a potência adequada ao tipo e tamanho da corrente e da vegetação (tratores com baixa potência podem ser incapazes de derrubar árvores com grandes diâmetros). 

 

 

CRESCER PARA BAIXO: REFLEXÕES SOBRE O REPLANTIO DA ROSA DO DESERTO

 

Nesse texto analisaremos os cuidados com rosas do deserto em ambiente doméstico partir de um período curto de observação (entre 12 e 19 de maio) através da descrição da cadeia operatória da rega e do replantio, atentando-se especialmente às ideias que estão presentes nos processos (COUPAYE, 2017). Destaco que, pelo curtíssimo período de observação, a análise é mais inclusiva que crítica, ganhando um tom ensaístico.

Na realidade foi uma surpresa a monotonia da observação dos cuidados com as plantas, posto que a realização desses é limitada por uma série de atores não humanos, estabelecendo o cultivo caseiro de rosa do deserto como ação direta negativa, ou seja: o sujeito tem um contato bastante direto com a planta, entretanto o itinerário é definido por uma série de externalidades, de outros agentes (HAUDRICOURT, 2013). É o que pretendo demonstrar ao longo do texto.

 Antes de seguirmos, cabe a caracterização das protagonistas da observação: as rosas do deserto são plantas suculentas com, ao menos, cinco variedades no mercado. Crescem livremente no leste e nordeste da África e em toda a Península Arábica, atingindo até 2 metros de altura. São variedades de rosas do deserto: Adenium arabicum, Adenium coetaneum, Adenium honghel. Ao contrário de uma rosa verdadeira, o Adenium é tolerante à seca porque armazena água da estação chuvosa em suas raízes grossas e bulbosas e tronco. Integram a família Dogbane (Apocynaceae / Asclepiadaceae), que reúne: Palma de Madagascar, Allamanda, Oleandro, Plumeria, entre outras. A família é conhecida pela produção de seiva venenosa.

Observamos a relação da sra. Elenária junto as suas rosas do deserto por uma semana, dispostas sobre um antigo poço artesiano, de variadas cores, tamanhos e idades. Pelo fato de trabalhar com educação de crianças, as comparações entre desenvolvimento estudantil e da planta são inevitáveis.

Os cuidados com as rosas do deserto dependem de fatores externos (a fase lunar, a localização geográfica, incidência de luz solar, a umidade média do ar) e internos (o vaso, o substrato, a semente, a rega, o replantio período, a poda da raiz com fins estéticos) e visam, em último caso, fazer com que a planta cresça e floresça.

Durante o curto período de observação pude acompanhar a rega, a preparação do substrato, o replantio e a poda das raízes.  De início, pareceu-me que haveria pouquíssimo material para me debruçar, mas quando perguntei sobre os demais cuidados com a planta abriu-se um mundo de atores e regras que definem o itinerário de cuidados. Mesmo a rega e o replantio[1] são processos mais complexos que o curto período de execução demostra.

O texto está divido em três partes: tratamos primeiramente dos atores que definem o itinerário de cuidados com as rosas (a lua, o sol etc); em seguida, tratamos das atividades realizadas no período de observação (rega e replantio); e, por fim, nos ocupamos da discussão sobre ação direta positiva e indireta negativa e sua serventia para caracterizar os cuidados com as rosas do deserto.

Os dois primeiros dias de observação foram de extrema monotonia: as atividades de cuidado se resumiam a rega diária com mangueira (baixa vazão) entre as 18 e 19h (depois notei que esse procedimento estava repleto de outras questões, mas discutiremos isso mais a frente). Quando perguntei sobre os demais cuidados (poda, por exemplo) obtive a seguinte resposta:

Cuidar de planta é igual cuidar de criança, tem hora pra tudo. Agora nós estamos na lua minguante, é a fase de crescer pra baixo, é o momento que as raízes se desenvolvem. Na roça, era época de plantar mandioca. Com a rosa do deserto não é diferente... O que dá pra fazer de diferente agora é trocar de pote, já que as raízes vão ter força pra crescer.

 

Eu não sabia a respeito da influência da lua sobre as plantas[2], fazendo "crescer pra baixo". Estava diante um agente delimitador do itinerário de ação sobre a planta e fui buscar mais informações.

O ciclo lunar apresenta dois movimentos: o movimento crescente, que ocorre entre a lua nova e a lua cheia; e o movimento minguante, que é o período entre a última lua cheia até a próxima lua nova. Durante as fases crescentes, as plantas desenvolvem melhor as partes que ficam acima do solo (folhas, caules, flores). Nas fases decrescentes, são as partes que ficam dentro do solo (raízes) que são melhor desenvolvidas (daí a associação com a mandioca, provavelmente).


 
        Especificamente para a rosa do deserto, o período de replantio ocorre na lua minguante, pelo fato de deixar parte das raízes da planta exposta, para que ela continue “crescendo para baixo” forte e sadia. Como veremos mais adiante, o replantio está sujeito a riscos que podem resultar na não eficácia dos cuidados.

Já o sol, além do já conhecido papel na fotossíntese, apareceu entre as conversas de maneira indireta:

A gente rega sempre no final da tarde, começo de noite, porque aqui em Goiás, lá em Brasília também, o sol é esturricado, deixa o dia seco... Se você rega de manhã, às 10 horas o sol pode estar tão quente que cozinha a planta. Ainda mais a rosa do deserto que é só água e flor.

 

O sol aparece associado a localização geográfica e a umidade relativa do ar. Esses fatores determinam a recorrência da rega, diária mesmo no inverno, pois é característico do centro oeste um inverno frio e seco. Referir-se a rosa do deserto como "só água e flor" está ligado ao fato de se tratar de uma suculenta. Com isso, conhecemos os atores que ditam o itinerário das atividades observadas ao longo da semana, das quais nos ocuparemos agora.

A rega ocorre diariamente, no fim da tarde. Fora utilizado em todos os dias de observação uma mangueira de jardim simples, azul, sem bico especial, com fluxo de água baixo.

O gesto consistia em aproximar a mangueira do solo e circular a planta com o jato de água. Deve-se cuidar para não empossar água (principalmente próximo a planta) e não empapar o substrato (por isso é importante circular a planta, o que limita o tempo e, por consequência, a quantidade de água). Não é recomendado molhar o corpo de plantas com flores, pois a ação pode resultar em queda. A ponta da mangueira[3] deve estar próxima ao solo (aproximadamente 10 cm de distância no máximo), caso contrário incorre-se no erro da "água cair pesada" e abrir buracos no substrato, ou seja, a pressão da água caindo a distância, mesmo em fluxo baixo, pode separar o substrato da raiz.

 


Outra ação direta de cuidado com as rosas do deserto é o replantio período, que deve ocorrer sempre na lua minguante, pois necessitará "crescer para baixo". O replantio se divide em pelo menos quatro outras atividades menores: preparação do pote e substrato; arranque e transferência; poda das raízes; e finalização.

 O pote ideal para o cultivo doméstico de rosa do deserto é o tipo cuia ou bacia. Trata-se de um recipiente de boca larga e altura baixa. Vasos altos podem diminuir a percolação de água, resultando no adoecimento das raízes. A furação padrão de fábrica não costuma ser suficiente para garantir a rápida percolação, por tanto é recomendado fazer mais furos. Para isso pode-se recorrer a objetos pontiagudos (facas e tesouras) ou objetos metálicos aquecidos no fogo. Não há quantidade ideal de furos. Quando virado de ponta cabeça, é possível notar círculos no fundo do vaso. Fora perfurado todo o último círculo, com distanciamento máximo de meio centímetro entre furos.



O passo seguinte consiste na preparação do substrato. O mais importante é que seja "pedaçudo", ou seja, tenha granulometria elevada, a fim de facilitar a percolação e o crescimento das raízes

 Há substratos prontos, com diversos tipos de composição. No caso observado, fora utilizado uma mistura pronta de terra orgânica e casca de pinus acrescido carvão moído, casca de banana torrada e moída, pó de casca de ovo torrada e borra de café (repare na quantidade de outros processos relacionados a uma ação). A parte pronta (terra e pinus) garante a granulometria elevada. Acredita-se que o carvão tenha função de prevenir "doenças da terra", mantendo o substrato "limpo" por mais tempo. Os outros três elementos foram descritos como "receita caseira de adubo que todo mundo conhece". Partindo da minha formação anterior (técnico em edificações) e da experiência com ensaios de mecânica dos solos e química orgânica, afirmo com segurança que se trata de um composto com potássio (casca de banana), fósforo (casca de ovo) e nitrogênio (borra de café), os famosos NPK, nutrientes essenciais para o desenvolvimento de qualquer planta. A preparação desse adubo me lembrou de pronto o olhar maussiano sobre a técnica enquanto ato tradicional e eficaz: tradicional enquanto convenção geral, transmitida (“todo mundo conhece”) e eficaz na medida em que reúne elementos cotidianos que trazem uma carga de conhecimento específico com a finalidade comprovada de tornar o substrato mais fértil (MAUSS, 2003 [1937]).



Não há uma exata proporção na mistura: forrou-se o fundo do pote tipo cuia com a mistura pronta de terra e pinus (diretamente do saco); acrescentou-se 1 pote pequeno de carvão moído; e 1 mão cheia de cada um dos demais. Tudo isso ocupa pouco mais da metade do recipiente. A mistura é feita com as mãos, revirando o solo (trazendo o que está embaixo para cima). Está pronto quando não se vê com exatidão o branco da casca dos ovos. Conclui-se assim a etapa de preparação do pote e substrato.

O arranque é aparentemente a etapa mais simples e mais arriscada: bate-se levemente nas laterais do recipiente em que a planta se encontra; periodicamente puxa-se a planta pelo caule, verificando se está solta do vaso; constatando que sim, a planta é arrancada com o substrato anterior em forma de torrão misturado com as raízes (o recipiente primário fica limpo) e colocada no novo pote.

Quando perguntei se eu poderia tentar realizar o arranque e a transferência a resposta, apesar de negativa, foi interessante: pessoas inexperientes não devem fazer o arranque, pois a planta pode ficar “ressentida” e deixar de dar flores e sementes ou ter "levas chochas" (feias, estragadas, ruins).

Apenas olhando a atividade parece realmente simples, mas há que se recordar da fragilidade da planta, nos fazendo refletir sobre os parâmetros de força, pegada e agilidade ideais para o arranque. O gesto de segurar se assemelha a segurar um copo largo. Não sou capaz de precisar a força empregada, mas todo o movimento é rápido: somado com as batidas no pote, não supera dois minutos por planta.

 Transferida para o novo pote, é importante que a base da planta fique para fora do vaso no mínimo dois centímetros (dois dedos), idealmente três, com limite máximo de quatro centímetros. Enche-se as laterais com a mistura de terra e casca de pinus e é realizada a quebra cuidadosa das extremidades do substrato anterior, fazendo um ponto de encontro entre o antigo e o novo substrato em formato chanfrado (semelhante a um morro, pirâmide, muro de contenção). Terminada a quebra, passa-se a descobrir parte da planta que estava enterrada e inicia-se a poda das raízes.



É difícil precisar quais partes do rizoma devem ser retiradas, posto que a escolha é estética, pois parte da raiz ficará exposta. Mais fácil é detalhar as ferramentas e os métodos empregados. Na poda observada foram utilizados: um estilete, um pano com álcool para esterilização e canela em pó. Me foi dito da importância de utilizar luvas nas primeiras vezes, pois o leite da planta poderia causar irritação na pele, mas que, com o tempo e costume, as luvas deixam de ser necessárias.

Com o estilete esterilizado, corta-se com cuidado raízes finas e que fujam do padrão estético esperado sempre cuidando para não ferir a planta mais que o necessário. A cada raiz retirada, limpa-se o estilete com o pano com álcool e passa-se canela em pó no ferimento, o que inibe a vazão do leite.

 Terminada essa etapa que varia muito de planta para planta, tornando complicado estabelecer limites temporais, dá-se início a finalização que nada mais é que cobrir o substrato com brita ou pedra branca. A razão é estética, apesar de que a brita ou pedra serve também para distribuir a água da rega sobre o substrato, auxiliando para que não haja acúmulo ou "empapamento" e impede que outras plantas (consideradas indesejadas) cresçam (remetendo às questões acerca da técnica e vida, gestão da vida e da morte, abordadas no “2° Seminário Transformações técnicas em perspectivas locais. Técnica e Vida: imbricações e desafios etnográficos”). Um último detalhe é que não é recomendado que esse processo seja feito em plantas floridas, correndo o risco de queda das flores.

 É possível notar como as esferas da vida da dona das rosas, sra. Elenária, se misturam no cuidado com as plantas: seja no vocábulo das comparações (plantas são como crianças ou as vezes temos que podar os alunos etc), seja no emprego de instrumentos do colégio (estilete normalmente utilizado para cortar EVA) no processo de poda da planta. A própria capacidade de explicação detalhista das ações é marca dessa mistura de esferas.

 Cabe ressaltar também que apesar da eficácia estética do processo, há também uma eficácia terapêutica, posto que durante os períodos de cuidado com as plantas, o celular (principal ferramenta de trabalho) é deixado de lado e a concentração é destinada apenas as ações de cuidado. Cabe refletir junto a De Laet e Mol (2012) quanto a inconsciência das ações que geram ações: cuidando das plantas, a cuidadora acaba cuidando de si mesmo.

Essa concentração se deve em parte à um itinerário ditado por atores externos a ser seguido. O processo todo é delimitado pela crença na influência das fases lunares sobre a planta, o que resulta na transformação de algumas ações aparentemente corriqueiras em ações que só devem ser realizadas em determinado período, caso contrário, se arriscaria a eficácia do processo.

 O replantio deve ser realizado no início da fase lunar minguante, para que as raízes cresçam fortes (crescer para baixo), permitindo inclusive a poda por razões estéticas da raiz. Se realizado em outro período lunar, é possível que o crescimento para baixo não seja adequado, o que resultaria em um enfraquecimento da planta e, no limite, a morte.

Fico me perguntando – e ainda não encontrei uma resposta – se as ações de cuidado realizadas conforme as fases lunares poderiam ser enquadradas dentro do espectro de ações estratégicas de que fala Lemonnier (1992), exemplifico: a operação de replantio deve ser executada necessariamente durante a fase minguante da lua, e a fase não pode ser parada (não pode ser atrasada, cancela ou substituída). Entretanto, as fases da lua têm comportamento cíclico, então a fase minguante retornaria, abrindo espaço para atraso na cadeia operatória (exemplifico: não realizarei o replantio nessa lua minguante, mas sim na próxima). Me parece que há margem de manobra por se tratar de um ciclo, inviabilizando a caracterização fechada/fixa enquanto ação estratégica.

Pensando os modelos de ação de Haudricourt (2013) (ação direta e positiva e ação indireta e negativa), me parece que há no caso aqui analisado um desvio aos modelos, posto que os cuidados com a rosa do deserto são diretos (de contato pela mão, de poda direcionando o crescimento etc), mas não é positiva (o itinerário de cuidados deve respeitar parâmetros externos: a lua, o sol etc). O contato com a planta é intenso somente em alguns períodos para que se obtenha o resultado esperado (o crescimento e florescimento). Dessa forma, os cuidados me parecem próximos ao tipo negativo (exemplificado por Haudricourt no cultivo de inhame pelos Melanésios da Nova Caledônia).

Sendo assim, é possível concluir que a ação de cuidado com as rosas do deserto na casa desse pretendente a antropólogo em Trindade, no interior de Goiás, é do tipo direta (há contato manual e constante entre ser humano e planta) e negativa (o itinerário é preestabelecido por uma série de atores não humanos). Me dediquei a descrição intensa dos processos observados ao longo da semana, mas reconheço que o texto tangencia diversos pontos abordados pela antropologia da técnica que merecem aprofundamento.


REFERÊNCIAS

            COUPAYE, L. Cadeia operatória, transectos e teorias: algumas reflexões e sugestões sobre o percurso de um método clássico. In: SAUTCHUK, Carlos (Org.). Técnica e transformação: perspectivas antropológicas. Rio de Janeiro: ABA Publicações, 2017: 475–494.

DE LAET, M. Y A. MOL. 2012. “La bomba de Bush de Zimbabwe: mecánica de una tecnología fluida”, Revista de estudios sociales de la ciencia, 18, 35, pp. 105-158.

HAUDRICOURT, A-G. Domesticação de animais, cultivo de plantas e tratamento do outro. Serie Tradução, DAN/UnB.

LEMONNIER, P. Elementos para una antropología de la tecnologia. Capítulo 1: Tecnología y Antropología. [Tradução de Elements for an Anthropology of Technology. Anthropological Papers, Museum of Anthropology, University of Michigan, No. 88. Ann Arbor, Michigan, 1992. Chap. 1: 1-24.]

MAUSS, M. 2003 [1937]. As Técnicas Do Corpo. In Sociologia e Antropologia. São Paulo: Cosac & Naify, pp. 399–422.



[1] que combina preparação do substrato, replantio em si e poda das raízes

[2] Me recordava de recomendações sobre corte de cabelo ("meninos cortam sempre da lua descrente, para que o cabelo demore a crescer e meninas cortam na lua crescente, para crescer rápido"), nas quais nunca acreditei

[3] Caso tenha um "chuveirinho" (bico dispersor) pode-se aumentar o fluxo de água e a distância entre bico e solo, jogando água inclusive sobre o corpo da planta. É especialmente necessário no "tempo da poeira", pois limpa as folhas e deixa a planta alegre. Na ausência do bico dispersor, é possível regar somente com a mangueira cobrindo a ponta parcialmente com o dedo de modo a formar um leque de água. A eficácia na rega não é a mesma, mas limpa a poeira das plantas.

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