segunda-feira, 9 de dezembro de 2019

A ESCOLA BRITÂNICA

TEORIA ANTROPOLÓGICA - IV RESUMO - A ESCOLA BRITÂNICA
Enquanto antropólogos em formação, nossa dívida com a Escola Britânica é enorme. É impossível falar da institucionalização da Antropologia sem falar do conceito de cultura proposto por Edward Tylor no final do século XIX ou do método comparativo proposto por Frazer, sem citar ainda a definição de trabalho de campo delineada por Malinowisk. Aderindo aos preceitos sobre religião formulados por Durkheim, os britânicos no século XX elaboraram uma série de estudos relacionados aos sistemas de parentesco e legal, características fortes da Escola até hoje. Traduzidas no Brasil já em 1970, as obras de Malinowski, Radcliffe-Brown e Evans-Pritchard tiveram peso na formação dos primeiros mestres em Antropologia pela pós-graduação do Museu Nacional, de 1968, formando nomes como Roque Laraia e Júlio César Melatti.
Apesar de não ser o primeiro antropólogo a fazer trabalho de campo, Bronislaw Malinowisk foi o primeiro a se debruçar sobre o tema, rompendo com a tradição “de gabinete” dos evolucionistas. Em “Os argonautas do pacífico ocidental” (obra de detalhamento denso, que busca descrever o sistema de comércio “Kula” e sua relação com outras instituições de moradores da ilha da Melanésia) o polonês naturalizado britânico se ocupou em descrever as premissas do trabalho de campo, que dependia de boas condições de trabalho, leia-se afastamento da “civilização”, vasto conhecimento das teorias científicas e aplicação sistemática e paciente de regras com bom senso.
Em campo, o antropólogo deveria se submeter intensamente a vida dos pesquisados, compondo o que chamamos “observação participante”. Tudo que fosse observado no longo tempo em que o pesquisador estivesse em campo deveria ser anotado afim de garantir uma descrição densa daquela sociedade, possibilitando a escrita de uma etnografia. Posteriormente, em um nível mais analítico, caberia ao pesquisador escrever uma teoria geral de funcionamento, uma etnologia vinculada a sobrevivência dos indivíduos.
“A ‘observação participante’ de Malinowski estabeleceu uma nova base para as pesquisas etnográficas, onde a vida no dia-a-dia devia ser registrada coletando detalhes de produções, padrões, trocas e conflitos, demonstrando o universo altamente complexo e multifacetado – contra os autores evolucionistas que o precederam nas ciências sociais britânicas – e rompendo como nova proposta para a antropologia e seu método” (MAIA, 2014, p.45).

Outro britânico que se ocupou em formular regras sobre o funcionamento das sociedades, todavia implementando o conceito de estrutura, foi Alfred Reginald Radcliffe-Brown. Muito influenciado por Durkheim, Radcliffe-Brown se debruçou sobre as condições necessárias de existência do organismo social. Em discordância com Malinowisk, Radcliffe-Brown propôs a existência de valores e interesses compartilhados que promovem a vida social, implicando na existência de uma estrutura (relações sociais em um todo integrado).
Identificada a estrutura e o funcionamento dessa estrutura (processo que Radcliffe-Brown chamou de etnologia), quando comparada a outras estruturas, o antropólogo poderia formular leis gerais (método comparativo), em uma harmonia praticamente teleológica. Radcliffe-Brown vai ainda mais longe, ao afirmar que o objeto da Antropologia não é a cultura, mas sim as sociedades humanas (a estrutura): o contato entre indivíduos, originando instituições, em um vinculo muito mais concreto que o “vago conceito de cultura”. A “concretude” se fazia por meio dos mapas genealógicos, dos sensos, entre outras ferramentas de pesquisa. Cultura, nesse sentido, tornou-se algo volátil, diferentemente da estrutura, que só seria passível de mudança no longo prazo, por ser ela a identificar os indivíduos. Essa crítica atingiu não só os culturalistas como também os evolucionistas.
Outro que rompe com os evolucionistas é Edward Evan Evans-Pritchard, preocupado em formular uma teoria com base nos termos nativos, muito influenciando pelos autores anteriores e pela Escola Francesa, é o primeiro a abandonar o termo “mentalidades primitivas” e, aproximando os tais “primitivos” da “civilização”, usou “racionalidades”. Enquanto a maioria dos antropólogos da época afirmava a ausência de uma lógica causal no “mundo primitivo”, Evans-Pritchard enxergou na bruxaria dos Azande um sistema de crenças com coerência interna capaz de explicar a vida e fornecer soluções aos infortúnios do cotidiano, ou seja, uma filosofia. Em contraste com os autores já citados, a trajetória academia de Evans-Pritchard é marcada pelas:
“[...]diferenças de objetivos e modelos usados em ‘Bruxaria, Oráculos e Magia entre os Azande’ e ‘Os Nuer’ - certamente as obras mais conhecidas dentre aquelas que compõem a produção bibliográfica deste autor - representam propósitos e modelos analíticos distintos, apresentando, cada uma ao seu modo, problemas que se tornaram clássicos para a antropologia. Num primeiro momento, sob considerável influência de Malinowski, Evans-Pritchard está preocupado em demonstrar como os Azande possuem um sistema de crenças dotado de uma coerência interna, capaz de explicar a vida humana e fornecer solução para os infortúnios do cotidiano. Mais tarde, sua etnografia sobre os Nuer já explicita as interlocuções que estabeleceu com a obra de Radcliffe-Brown, caracterizando-se como a descrição de uma estrutura social que contém em sua própria constituição a tensão entre grupos cuja “oposição segmentar” acaba garantindo a manutenção do sistema como um todo” (MAIA, 2014, p.48).

Apesar da enorme contribuição de cada autor citado para a Antropologia não se pode ignorar os problemas de cada um, identificados a luz da contemporaneidade. Malinowisk, no seu funcionalismo que atribui a formação das instituições ao anseio de sobrevivência física, hoje é simplista. A publicação pós-morte do seu diário de campo abriu espaço para discussões éticas sobre o antropólogo enquanto pessoa dotada de preconceitos e idiossincrasias. A idealização de um “campo intocado” e a autoridade etnográfica também se revelam, hoje, como problemas: a pesquisa antropológica não é feita apenas em redutos longínquos, desconhecidos pela “civilização”, e apesar do esforço do antropólogo por uma descrição densa, a visão dele nunca será suficiente para contemplar a “totalidade”, será apenas uma interpretação daquela realidade. A busca por leis gerais também não cabe a antropologia nem a ciência humana nenhuma, desde a virada humanista alemã. À Radcliffe-Brown vale a crítica sobre a busca por leis gerais e a autoridade etnográfica. Por fim, à Evans-Pritchard cabe a crítica ética ao envolvimento amoroso com pesquisados e ao pagamento a um zande para descobrir “segredos” dessa cultura. A obra de Evans-Pritchard, mesmo que sem a intenção do autor, serviu aos britânicos no processo imperialista, apontando nas hierarquias locais os elos sensíveis capazes de desestruturar toda a comunidade.
Claro que hoje, a luz de estudos mais atuais e discussões éticas cada vez mais avançadas, deve-se fazer a critica aos autores clássicos, todavia não se pode esquecer de enxerga-los no seu tempo e nem ignorar a humanidade que todos temos, complexa e diversa. A publicação do diário de Malinowisk foi uma covardia, mas possibilitou a discussão sobre o antropólogo enquanto indivíduo dotado de uma cosmologia. Cabe a nós identificarmos a nossa visão de mundo e apresenta-la ao leitor, com todos os problemas que possa ter. Concluo afirmando que não é por ter problemas que os cânones devem ser abandonados, afinal, se não fosse por essas pessoas não estaríamos cursando Antropologia em pleno 2019, ano em que preconceitos e discursos de ódio emergiram e se encontram no poder, rememorando uma visão obscura que vigorou no passado e que esses antropólogos citados no texto ajudaram a combater, com todos os seus pontos de fragilidade: lê-los hoje é indispensável.



REFERÊNCIAS
EVANS-PRITCHARD. E. E. Bruxaria, oráculos e magia entre os Azande. Editora Zarah, 2005.

EVANS-PRITCHARD. E. E. Os Nuer. Editora Perspectiva, 2° edição, 2009.

EVANS-PRITCHARD. E. E. Religião dos Nuer. Oxford: Oxford University Press (trad. Espanhol: La religión de losnuer. Barcelona: Anagrama, 1992.

MALINOWSKI. B, Argonautas do pacifico ocidental. Editora Abril, 2° edição, 2005.

RADCLIFFE-BROWN. A. R. Estrutura e função na sociedade primitiva. Editora Vozes, 1973.

MAIA, Cleiton Machado. “Lords anthropologists” – debate sobre a origem da teoria clássica britânica e suas influências teóricas metodológicas na obra de Evans – Pritchard. In: Revista Digital Simonsen. Rio de Janeiro, n.1, Dez. 2014. Disponível em: <www.simonsen.br/revistasim

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