HISTÓRIA SOCIAL E POLÍTICA DO BRASIL - II PROVA
QUESTÃO 03
Em
2018 Ronaldo Caiado foi eleito como governador de Goiás. É médico, formado no exterior,
filiado ao partido Democratas, ruralista e um dos fundadores da UDR[1]. O próprio sobrenome já
revela muito da personalidade: os Caiado formaram a maior oligarquia de Goiás
durante a I República, ascendendo em 1906 e permanecendo no poder até o Golpe
de 1930, mas o declínio dessa primeira experiencia republicana começa anos
antes de 1930. Talvez os problemas econômicos desencadeados com a I Grande
Guerra tenham sido um golpe muito forte para uma economia extremamente
dependente de exportações como era o Brasil Republicano, que já se complicava
ao menos desde 1906 com a constatação da crise de superprodução do café e o
fracasso do Convenio de Taubaté[2]. Talvez o tão aclamado
“pacto federativo” não tenha obtido o sucesso esperado, sendo mais benéfico
para São Paulo e Minas Gerais que para qualquer outro estado. Ou até mesmo a
incapacidade da república de lidar com a parte pública do sistema. Fato é que um
golpe ou revolução era eminente por fatores externos e internos (FURTADO, 1998).
O
mundo pós I Grande Guerra era contraditório: se por um lado a Europa ainda se
ocupava com os problemas gerados pela guerra e pela epidemia de gripe
espanhola, por outro os Estados Unidos vivenciavam um crescimento cavalar
regado a bebida dos gangsters, até 1929. Foram anos de expansão dos direitos,
principalmente para as mulheres, mas também foram anos de xenofobia e
perseguição a imigrantes – a exemplo do crescimento do número de adeptos da Ku
Klux Klan[3]. O jazz começou a fazer
sucesso nos EUA, as produções cinemáticas aumentaram, e a juventude tornou-se
cada vez mais alienada. Já chegando no oriente, a Rússia estava em erupção: o
estado fraco e falido criado pós queda do tsarismo assistiu a ascensão golpista
de Lenin. A fundação da URSS[4] mudou o mundo e
consolidou-se como grande potência depois da Grande Depressão[5], pela qual passou intacta
com a sua economia planificada. A América Latina vivenciou um serie de
revoluções anti-imperialistas - influenciadas pela Crise de 29 e a depressão
economia que se seguiu - e a maioria dos governos alinharam-se ao espectro
socialista. Em suma: é um período de efervescência mundial de ideias.
O
Brasil desse período não é diferente: é um período de convulsão política, em
que pautas sociais e culturais ganhavam cada vez mais peso. Em meados da década
de 20 ocorreu a primeira grande greve, as cidades passavam por um crescimento
populacional vertiginoso, o Partido Comunista Brasileiro foi fundado, os primeiros
industriais começavam a ter voz dentro da política nacional – entrando em
choque com os interesses da oligarquia cafeeira. Em 1922 o tenentismo ganhou
força e a Semana de Arte Moderna buscou construir uma representação do país,
abandonando o academicismo e o tradicionalismo tão cultuados por uma elite
decadente. A república brasileira viu-se transbordando de povo.
Se
a política dos governadores[6] terceirizava os problemas
regionais e transmitia uma imagem de tranquilidade, internamente a política era
extremamente conturbada. Havia um foço cada vez mais profundo entre estados de
primeiro plano (São Paulo e Minas Gerais) e estados de segundo plano (o
restante do país), corroendo aos poucos a estabilidade garantida por Campos
Sales. A desproporcionalidade de poderes não era só de nível político federal,
atingia também boa parte da população que se via a margem do sistema jurídico,
com uma agenda social ignorada pela república. (RESENDE, 2010).
Em
1930 os candidatos das oligarquias cafeeiras foram eleitos, como já era de se
esperar. As eleições foram contestas, algo frequente que raramente obtinha
sucesso posto que as fraudes eram comuns. A agenda da Aliança Liberal não era
menos elitista que a das oligarquias cafeeira, o problema foi que o vice de
Getúlio Vargas, João Pessoa, acabou assassinado. Hoje se sabe que o motivo do
assassinato foi passional, mas no período em questão João Pessoa se tornou um
mártir e o estopim do Movimento de 1930. Em 3 de outubro de 1930 a revolução
estoura em Minas Gerais e Rio Grande do Sul espalhando-se com velocidade pelo
restante do país, com o apoio popular exemplificado por greves e ocupação de
prédios públicos. Os militares do sul preparavam a invasão final a São Paulo,
mas antes que houvesse derramamento de sangue o presidente foi deposto. Membros
do exército e da marinha compuseram uma Junta Provisória de governo. Apesar das
tentativas de se manter no poder, a Junta cedeu à pressão popular e
revolucionária. Getúlio partiu de trem para São Paulo, findando sua viagem no
Rio de Janeiro, sendo empossado em 3 de novembro daquele ano (FAUSTO, 2018).
Apesar
das diversas interpretações do Golpe, Revolução ou Movimento de 1930, esse se
caracteriza por rupturas e continuidades: se por um lado antigos oligarcas
continuam no poder, o movimento não é capitaneado só por oligarcas, mas também
por muitos outros eixos políticos a exemplo de tenentes, classe média e
operários, unidos por uma agenda anti-oligarca. Feita a revolução, essa
diversidade de cabeças criou um empecilho para os próximos passos da política
federal. Para evitar mudanças radicais instaurou-se um “Estado de
compromisso”:
“[...]o
que se observa no pós-30 é um reajuste nas relações internas dos setores
dominantes. O Estado de compromisso, nesse sentido, nada mais é do que um
Estado que se abre a todas as pressões sem se subordinar necessariamente a
nenhuma delas. Suas principais características são uma maior centralização,
[...] ampliação do intervencionismo, [...] além do estabelecimento de certa
racionalização na utilização de algumas fontes fundamentais de riqueza pelo
capitalismo internacional” (FERREIRA & PINTO, 2010, p.410).
As
conquistas dos primeiros anos do período Vargas foram variadas, circundando
principalmente a esfera social com a Constituição de 1934. No mesmo ano, Vargas
é eleito indiretamente presidente da República. Pululavam partidos políticos
representantes dos mais diversos eixos de pensamento, com presença inclusive de
fascistas na Ação Integralista Brasileira. Getúlio estava cada vez mais
confortável com o apoio das Forças Armadas e da sociedade, com o pacto
construído entorno da burguesia e dos trabalhadores, o que permitia medidas
cada vez mais autoritárias (FAUSTO, 2018).
O
último golpe ao suposto regime democrático que se inaugurava foi desferido em
1937 com o Plano Cohen, uma suposta insurreição comunista que possibilitou, em
10 de novembro do mesmo ano, a implantação da ditadura nomeada “Estado Novo”.
Vargas acumulou mais poderes que os antigos imperadores, todavia a ditadura não
representou um rompimento total, pelo contrário: aumentou o ritmo em que as
mudanças modernizantes promovidas por Getúlio que desde 1930 vinham sendo
implantadas, em especial a industrialização tendo o Estado como protagonista,
transformando o papel das elites – antes agroexportadoras, agora empresárias.
Uma
das características mais marcantes do período Vargas foi a refundação da
relação capital-trabalho sob proteção do Estado para obter pacificação social,
que Ângela de Castro Gomes chama de “trabalhismo”. A máquina de propaganda
estatal assumiu o papel de propagação das ideias do governo central,
apresentando a legislação trabalhista ao povo, partindo do pressuposto de uma
ignorância popular e de que a legislação trabalhista não foi fruto de lutas
sociais, mas era um presente do executivo aos trabalhadores. Criou-se até mesmo
um calendário comemorativo festejando o Dia do Trabalho e o aniversário de
Vargas. Dessa forma, Getúlio construiu uma imagem de líder carismático, criando
uma mitologia entorno do Estado Novo, do presidente e do trabalho, em última
instancia: a ilusão de um estado capaz de antecipar convulsões sociais e
impedi-las com concessões (GOMES, 2005).
O
Brasil inseriu-se no capitalismo global com o desenvolvimentismo nacional,
seguindo uma tendência mundial corporativista, em que os sindicatos se tornaram
cada vez mais fortes. No contexto nacional o sindicalismo autônomo foi
marginalizado: os sindicatos deveriam estar ligados ao Ministério do Trabalho,
que cuidava também da pasta de cidadania. Era o trabalho que fazia do indivíduo
brasileiro. Daqui surgiu a afirmação de que o bom brasileiro é bom trabalhador,
incluindo não só a ponta da produção, mas até mesmo os donos dos meios de
produção. Por muito tempo a cultura predominante era a do “não trabalho” como
sucesso na vida profissional, com Vargas isso se esvai: o trabalho passou a
engrandecer o homem, a caracterizar o povo brasileiro, junto a mestiçagem de
Gilberto Freyre.
O
desenvolvimentismo enquanto pauta econômica se baseou na substituição de
importações com o fortalecimento das indústrias de base. O parque industrial
brasileiro aumentou com a construção de polos estatais e centros de pesquisa,
destacando-se a Companhia Siderúrgica Nacional (1940), a Companhia Vale do Rio
Doce (1942), a Fábrica Nacional de Motores (1943) e a Hidrelétrica do Vale do
São Francisco (1945). Ampliaram-se a possibilidade de emprego, a renda média da
população e as garantias legislativas relativas ao trabalho. Quanto a essa última
questão, a CLT[7]
decretada em 1 de março de 1943 é emblemática cumprindo não só o papel
legislativo, mas também de repressão:
“(Vargas) criou as leis de
proteção ao trabalhador – jornada de oito horas, regulação do trabalho da
mulher e do menor; lei de férias, instituição da carteira de trabalho e do
direito a pensões e à aposentadoria. Na outra, reprimiu qualquer esforço de
organização dos trabalhadores fora do controle do Estado – sufocou, com
particular violência, a atuação dos comunistas. Para completar, liquidou com o
sindicalismo autônomo, enquadrou os sindicatos como órgãos de colaboração com o
Estado e excluiu o acesso dos trabalhadores rurais aos benefícios da legislação
protetora do trabalho” (SCHAWRCZ & STARLING, 2015, p.322-362).
A
II Grande Guerra impactou na política brasileira: as Leis Trabalhistas foram
inspiradas na Carta del Lavoro, de Benito Mussolini; a Alemanha Nazista
fez doações as universidades brasileiras, como o laboratório de Engenharia
Civil da Universidade Federal de Goiás e entrou nas negociações pela construção
da Companhia Siderúrgica Nacional. Vargas foi um ditador que prezava pelo
corporativismo e perseguiu opositores e indesejados – vide criação dos
sanatórios regionais - como Mussolini e Hitler, mas apoiou os Aliados. O
fascismo varguista acabou sendo maquiado pelo trabalhismo e pela mestiçagem e a
derrota da Alemanha Nazista se confundiu com a derrota dos fascismos, tapando
essa ideologia no restante do mundo (CARNEIRO, 2010).
Apesar
de tudo, o legado varguista não pode ser desprezado pela política brasileira
por ser muito vasto e positivo, incluindo pontos que não foram abordados no
texto. Ignorar o trabalhismo, a CLT, a fundamentação da justiça eleitoral, o
investimento na educação pública, a campanha pelo petróleo e o desenvolvimento
industrial, é retroceder.
REFERENCIAS
CARNEIRO,
Maria Luiza Tucci. “Fascistas à brasileira – encontros e confrontos”. In:
CARNEIRO, Maria Luiza Tucci (et.al.). Tempos de fascismos: Ideologia,
Intolerância, Imaginário. São Paulo: Edusp, 2010.
CPDOC.
Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil. Escola
de Ciências Sociais da Fundação Getúlio Vargas.
FAUSTO,
Boris. História Concisa do Brasil. Ed. USP, 2018.
FERREIRA,
Marieta de Moraes & PINTO, Surama Conde Sá. A crise dos anos 1920 e a
Revolução de 1930. IN.: FERREIRA, Jorge & DELGADO, Lucília de Almeida Neves
(orgs.). O Brasil Republicano: do tempo do liberalismo excludente – Da
proclamação da República à Revolução de 1930. 4ª ed. Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, 2010, p. 387-415.
FURTADO,
Celso. Formação Econômica do Brasil. Ed. Nacional, 1998.
GOMES,
Angela de Castro. A invenção do trabalhismo; Trabalhismo e corporativismo. IN.:
________. A invenção do trabalhismo. 3ª ed. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2005,
p. 211-264.
RESENDE,
Maria Efigênia Lage de. O processo político na Primeira República e o
liberalismo oligárquico. IN.: FERREIRA, Jorge & DELGADO, Lucília de Almeida
Neves (orgs.). O Brasil Republicano: do tempo do liberalismo excludente – Da
proclamação da República à Revolução de 1930. 4ª ed. Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, 2010, p. 89-120.
SCHAWRCZ,
Lilia M. e STARLING, Heloisa M. Brasil: Uma Biografia. São Paulo: Companhia das
Letras, 2015. p. 322. p. 362.
QUESTÃO 04
No
dia 19 de novembro de 2019, na reunião anual da UNESCO[8], em Paris, o secretário de
cultura nomeado por Jair Messias Bolsonaro, Roberto Alvim, ao lado de ministros
da cultura de todo o mundo fez a seguinte afirmação:
"A
arte brasileira transformou-se em um meio para escravizar a mentalidade do povo
em nome de um violento projeto de poder esquerdista.[...] Nas últimas duas
décadas, a arte e a cultura brasileira foram reduzidas a meros veículos de
propaganda ideológica, de palanque político, de propagação de uma agenda
progressista avessa às bases de nossa civilização e às aspirações da maioria do
nosso povo” (CHADE, 2019).
Tal
fala pode nos arremeter a ideia de hegemonia cultural de esquerda, já debatida
por Roberto Schwarz e Marcelo Ridente no contexto de Ditadura Militar. Quem
dera essa fosse a única fala que rememorasse aqueles 21 anos sangrentos: o
presidente, seus filhos e aliados políticos, insistem em positivar a Ditadura,
elogiam torturadores, pregam um comunismo crescente no país, e, mais
recentemente, projetam um “novo AI-5” caso a população vá as ruas.
Jair
Messias Bolsonaro fala em 2019 como se vivêssemos na década de 60, em que o
contexto mundial era de Guerra Fria. O mundo estava rachado: de um lado o
Primeiro Mundo, encabeçado pelos Estados Unidos, de outro o Segundo Mundo,
liderado pela União das Repúblicas Socialistas Soviéticas. A Revolução Cubana
ecoava em todo a América Latina, os capitais estadunidenses estavam voltados
principalmente para a Europa, afim de cercear o crescimento da influência
soviética, o que não impedia a intervenção sobre os latinos, com o que ficou
conhecido como Aliança para o Progresso[9]. Todavia a mesma década é
marcada mundialmente por um crescimento dos ideais libertários com a profusão
da cultura pop e da contracultura, marcados pela
“[...]
inserção numa conjuntura internacional de prosperidade econômica; crise no
sistema escolar; ascensão da ética da revolta e da revolução; busca do alargamento dos sistemas de
participação política, cada vez mais desacreditados; simpatia pelas propostas
revolucionárias alternativas ao marxismo soviético; recusa de guerras coloniais
ou imperialistas; negação da sociedade de consumo; aproximação entre arte e
política; uso de recursos de
desobediência civil; ânsia de libertação pessoal das estruturas do sistema (capitalista ou
comunista); mudanças comportamentais; vinculação estreita entre lutas sociais
amplas e interesses imediatos das
pessoas; aparecimento de aspectos precursores do pacifismo, da ecologia, da
antipsiquiatria, do feminismo, do movimentos de homossexuais, de minorias
étnicas e outros [...]” (RIDENTE, 2003, p.153).
Esses
ideais assustavam uma elite conservadora e, a partir de 1954 na Nicarágua e no
Paraguai, uma serie de governos à esquerda caíram para golpes militares
apoiados pelos EUA.
O
caso brasileiro não é diferente. Desde o governo JK o país vivenciava
tentativas de golpes. Jânio Quadros tentou um autogolpe, descrito por ele mesmo
no livro sobre sua vida, fracassado pela “incompetência dos militares”. Quem
assumiu com a renúncia de JQ, foi João Goulart, apoiado por militares, pelos
políticos de centro e pelas esquerdas em um regime parlamentarista. Jango
assumiu um Brasil industrializado, mas herdou a crise economia de JK que
desenvolveu a indústria de bens de consumo as custas de uma inflação elevada e
dívida externa alta, que inviabilizava investimentos públicos, promovendo
sucateamento da máquina estatal acompanhada de uma população urbana crescente,
atraída do campo para a cidade pelos empregos nas fábricas, fazendo o custo de
vida crescer. A oposição era feita pela União Democrática Nacional, contando
com lideranças na Guanabara, em Minas Gerais e São Paulo, um forte eixo
econômico e militar. Os poderes de JG no parlamentarismo eram restritos bem
como espaço para negociações, que diminuía cada vez mais posto que no sul no
país deu-se início a estatização de empresas norte-americanas, algo complicado
de se explicar em um contexto de Guerra Fria. Em 1963, com o acirramento da
política externa independente e a dificuldade de aprovação do Plano Trienal[10], os EUA igualaram
trabalhistas e comunistas, afirmando ao mundo que o Brasil não era confiável,
inviabilizando capitais externos.
Do
ponto de vista cultural urbano, elaborou-se uma crítica a matriz capitalista em
que “[...] buscava-se no passado uma cultura popular autêntica para
construir uma nova nação, ao mesmo tempo moderna e desalienada, no limite,
socialista”. A urbanização acompanhada de avanços tecnológicos e
crescimento no acesso à educação explicavam as “ondas românticas de rebeldia
e revolução”, buscando raízes brasileiras e a libertação do
subdesenvolvimento. A esse movimento deu-se o nome de “romantismo
revolucionário brasileiro” (RIDENTE, 2003, p.136).
No
campo, a “libertação” do trabalhador rural, ou seja, a ruptura do pacto
paternalista que retirou das pessoas a sua condição de sobrevivência, tornou a
situação insustentável, como bem ilustra a música de Augusto Boal e Geny
Marcondes (1961), "Zé da Silva é um homem livre":
“Passo
a vida trabalhando; Dando duro no batente; A comer de vez em quando; Isso é
vida minha gente; Se ser livre é passar fome; Não basta ser livre, não; Pro’
patrão pedi aumento; Só levei um pontapé; Sem comida e sem vintém; E agora,
sêo’ José?; Se ser livre á passar tome; Não basta ser livre, não; No xadrez
não me quiseram; Posse fome lá pra fora; se estou livre, estou faminto; Com a
barriga dando hora.; Sem comida a liberdade; É mentira. não é verdade; Zé da
Silva é um homem livre; O que, o que, o que; Zé da Silva é um homem livre;O que
ele vai fazer?;O que?; Livre é livre, é livre.;Livre, livre, livre; É
livre!; Aqui! Que eu sou livre.”.
A
população camponesa organizou-se em grupos conhecidos por Ligas Camponesas e,
posteriormente, em sindicatos que passaram a engrossar o caldo heterogêneo das
esquerdas. As diversas pautas, urbanas e camponesas, de reinvindicação de
direitos e acesso à terra acabaram reunidas em um pacote que ficou conhecido
como Reformas de Base. O apoio a essas reformas era imenso e converteu-se em
apoio a Jango, que “se elegeu presidente” com 82% dos votos pelo plebiscito
sobre a forma de governo de 1963.
Pós
retorno do presidencialismo, JG tentou pactuar com o centro afim de aprovar as
tais Reformas de Base. Os quadros administrativos do governo foram os melhores
que o Brasil já conheceu: Darcy Ribeiro e Paulo Freire na Educação, Celso
Furtado no Planejamento, Ulysses Guimarães na Indústria e Comércio, Santiago
Dantas nas Relações Exteriores, entre outros. A questão foi que havia um
entrave legislativo a Reforma Agrária, principal pauta das Reformas de Base.
Apesar das tentativas de conciliação, a mudança na legislação tornou-se
inviável e as negociações quanto ao Plano Trienal corroíam o apoio de Jango
entre as esquerdas, sua base social.
Inviabilizada
as reformas pelos entraves legislativos, João Goulart, afim de conservar o
apoio que tinha entre as camadas populares, firma seu compromisso com as
esquerdas no Comício da Central do Brasil, em 13 de março de 1964. Com uma
plateia de aproximadamente 300 mil pessoas, Jango afirmou que as reformas
seriam feitas. Naquele momento JG pareceu intocável, a ponto de baixar no mesmo
dia o Decreto da Reforma Agrária[11] (Decreto nº 53.700) e o
Decreto do Aluguel[12] (Decreto nº 53.702) no
dia seguinte. As promessas assustaram a elite conservadora que ainda não
conspiravam. Leonel Brizola afirmou que o país só daria certo com o fechamento
do congresso. As propagandas anti-comunistas eram produzidas a todo vapor. As relações
com os EUA já estavam abaladas. O clima de radicalização alcançou o ponto
máximo. Um golpe, ou pela esquerda ou pela direita, era eminente.
Em
31 de março de 1964, partem de Minas Gerais tropas golpistas. Haviam militares
ainda alinhados a João Goulart. Era o presidente o único capaz de puxar uma
resistência, mas não o fez. A ideia de que Jango não tinha pulso firme ou tato
político para governar, hoje já não é aceita. Também não é hegemônico a
afirmação de que JG não teria como resistir, pois, além de contar ainda com o
apoio do exército do sul:
“Pesquisas
feitas pelo Ibope às vésperas do golpe de 31 de março de 1964 mostram que o
então presidente da República, João Goulart, deposto pelos militares, tinha
amplo apoio popular. Doadas à Universidade de Campinas (Unicamp) em 2003, as
sondagens não foram reveladas à época. Pelos números levantados, Jango, como
Goulart também era conhecido, ganharia as eleições do ano seguinte se elas
tivessem ocorrido. Entrevistas realizadas na cidade de São Paulo na semana
anterior ao golpe mostravam que quase 70% da população aprovavam as medidas do
governo” (Portal da Câmara).
Talvez
a esquadra estadunidense na Bahia da Guanabara tenha sido o elemento de
desestruturação fatal do governo. Caso os militares golpistas falhassem, os EUA
interveriam. Mais do que um golpe contra João Goulart, 1 de abril foi um golpe
consensual contra as esquerdas que se viam pela primeira vez apoiadas por um
presidente e com espaço garantido na discussão política legal. Não só a UDN com
tradição golpista participou, mas o próprio centro de JK, bem como parte da
população civil que havia expressado sua insatisfação na Marcha da Família com
Deus pela Liberdade[13] (FERREIRA, 2003).
O
contraditório é que em meio a um regime autoritário a cultura de esquerda
ganhou espaço:
"[...]
apesar da ditadura da direita há(havia)
relativa hegemonia cultural de esquerda no país. Pode(podia) ser vista
nas livrarias de São Paulo e Rio, cheias de marxismo, nas estréias teatrais,
incrivelmente festivas e febris, às vezes ameaçadas de invasão policial, na
movimentação estudantil ou nas proclamações do clero avançado. Em suma, nos
santuários da cultura burguesa a esquerda dá(dava) o tom. Esta anomalia
– que agora periclita, quando a ditadura decretou penas pesadíssimas para a
propaganda do socialismo – é o traço mais visível do panorama cultural
brasileiro entre 1964 e 1969" (SCHWARZ,1978, p.62).
Interpreto
“esta anomalia” como uma das várias formas de resistência popular fortalecida pelo
endurecimento do regime e um desenvolvimentismo cada vez mais excludente,
atingindo todas as camadas populares. Talvez esse ganho de espaço da cultura da
esquerda também tenha se dado, em parte, por uma ignorância (ausência de
inteligência) dos responsáveis pela censura, como fica claro pela música “A
Mosca” de Raul Seixas que não foi censurada e faz clara alusão a esses
produtores de cultura que perturbam a ordem ditatorial. Dentre os vários polos culturais
de resistência, o tropicalismo destacou-se:
"[...]
entre 1967 e 1969, surgiu uma nova resposta em relação às demandas artísticas e
culturais que ficou conhecida como “movimento” Tropicalista; trazia consigo
todo um conjunto de referenciais antagônicos, paradoxais da política e da
estética, tematizava elementos de ruptura, a incorporação e a inovação
relacionadas às propostas culturais consagradas, até então, pelo paradigma do
nacionalismo de esquerda" (MALINI, 2018, p.169).
Esses
movimentos artísticos devem nos servir enquanto acadêmicos como inspiração,
posto que a Ditadura Militar é a inspiração de quem preside o país. Enquanto
estudantes de ciências humanas é nosso papel ser a mosca que pousa na sopa, que
perturba o sono, e, como o restante da América Latina cabe a nós gritar pelas
ruas que é proibido proibir.
REFERENCIAS
CHADE, Jamil. Secretário diz na
Unesco que arte brasileira servia a "projeto absolutista". Portal UOL,
2019. Disponível em: <https://noticias.uol.com.br/colunas/jamil-chade/2019/11/20/secretario-diz-na-unesco-que-arte-brasileira-servia-a-projeto-absolutista.htm>.
CPDOC.
Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil. Escola
de Ciências Sociais da Fundação Getúlio Vargas.
FERREIRA, Jorge. O governo Goulart
e o golpe civil-militar de 1964. IN.: FERREIRA, Jorge & DELGADO, Lucília de
Almeida Neves (orgs.). O Brasil Republicano. O tempo da experiência democrática
– da democratização de 1945 ao golpe civil-militar de 1964. Livro 3. Rio de
Janeiro: Civilização Brasileira, 2003, 343-404.
Legislação
Informatizada - Decreto nº 53.700, de 13 de Março de 1964 - Publicação Original
Legislação Informatizada - Decreto
nº 53.702, de 14 de Março de 1964 - Publicação Original
MILANI, Vinicius. Tropicalismo,
nacionalismo e contracultura: as afinidades entre a canção e o teatro
tropicalistas (1966-1969). IN: Rev. Sociologias Plurais, v. 4, número especial
3, p.168-186, nov. 2018.
Portal da Câmara dos Deputados.
Jango tinha 70% de aprovação às vésperas do golpe de 64, aponta pesquisa. 2014.
Disponível em:
<https://www.camara.leg.br/noticias/429807-jango-tinha-70-de-aprovacao-as-vesperas-do-golpe-de-64-aponta-pesquisa/>.
RIDENTI, Marcelo. Cultura e
política: os anos 1960-1970 e sua herança. IN.: FERREIRA, Jorge & DELGADO,
Lucília de Almeida Neves (Orgs.). O Brasil Republicano. Vol. 4. O tempo da
Ditadura. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003, p. 135-166.
SCHWARZ,
Roberto. “Cultura e política, 1964-1969”. In: O pai de família e outros
estudos. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1978.
[1] União Democrática Ruralista (UDR):
Associação civil criada em maio de 1985 por grandes proprietários de terras,
com a finalidade de defender a propriedade privada e como expressão da
radicalização patronal rural contra a política agrária promovida pelo governo
federal no começo da administração do presidente José Sarney (CPDOC).
[2] O Convênio de Taubaté foi um
encontro realizado em 1906 pelos governadores dos estados de São Paulo, Minas
Gerais e Rio de Janeiro, na cidade paulista de Taubaté, com o objetivo de
encontrarem uma política estatal para garantir a rentabilidade da cafeicultura
brasileira (Brasil Escola).
[3] A Ku Klux Klan é uma organização
terrorista formada por supremacistas brancos que surgiu nos Estados Unidos
depois da Guerra Civil Americana com o intuito de perseguir e promover ataques
contra afro-americanos e defensores dos direitos desse grupo. Ficaram
conhecidos por suas vestimentas peculiares e por promoverem o espancamento de
pessoas. O grupo chegou a possuir quatro milhões de membros na década de 1920 e
existe até hoje, mas bastante enfraquecido (Brasil Escola).
[4] União das Repúblicas Socialistas
Soviéticas ou simplesmente União Soviética, foi um Estado socialista localizado
na Eurásia que existiu entre 1922 e 1991.
[5] A Crise de 1929, também conhecida
como Grande Depressão, foi uma forte recessão econômica que atingiu o
capitalismo internacional no final da década de 1920. Marcou a decadência do
liberalismo econômico, naquele momento, e teve como causas a superprodução e
especulação financeira (Brasil Escola).
[6] Nome com que ficou conhecido o
arranjo político promovido pelo presidente Campos Sales (1898-1902) e os
governadores e presidentes estaduais com o objetivo de superar as incertezas
políticas que marcaram os primeiros governos da República (CPDOC).
[7] Consolidação das Leis do Trabalho.
[8] Organização das Nações Unidas para
a Educação, a Ciência e a Cultura.
[9] Programa de assistência ao
desenvolvimento socioeconômico da América Latina formalizado quando os Estados
Unidos e 22 outras nações do hemisfério, entre elas o Brasil, assinaram a Carta
de Punta del Este em agosto de 1961. De acordo com o documento, os países
latino-americanos deveriam traçar planos de desenvolvimento e garantir a maior
parte dos custos dos programas, cabendo aos EUA o restante (CPDOC).
[10] Elaborado pela equipe chefiada
pelo ministro extraordinário do Planejamento, o economista Celso Furtado, o
Plano Trienal de Desenvolvimento Econômico e Social procurou estabelecer regras
e instrumentos rígidos para o controle do déficit público e refreamento do
crescimento inflacionário (CPDOC).
[11] Declara de interesse social para
fins de desapropriação as áreas rurais que ladeiam os eixos rodoviários
federais, os leitos das ferrovias nacionais, e as terras beneficiadas ou
recuperadas por investimentos exclusivos da União em obras de irrigação,
drenagem e açudagem, atualmente inexploradas ou exploradas contrariamente à
função social da propriedade, e dá outras providências (Decreto nº 53.700).
[12] Ficam tabelados os aluguéis de
imóveis e respectivo mobiliário em todo o território nacional, que se acham
atualmente desocupados ou que vierem a vagar (Decreto nº 53.702).
[13] Movimento surgido em março de 1964
e que consistiu numa série de manifestações, ou "marchas", organizadas
principalmente por setores do clero e por entidades femininas em resposta ao
comício realizado no Rio de Janeiro em 13 de março de 1964, durante o qual o
presidente João Goulart anunciou seu programa de reformas de base. Congregou
segmentos da classe média, temerosos do "perigo comunista" e
favoráveis à deposição do presidente da República (CPDOC).
Nenhum comentário:
Postar um comentário