segunda-feira, 9 de dezembro de 2019

Vargas e Golpe de 64

HISTÓRIA SOCIAL E POLÍTICA DO BRASIL - II PROVA
QUESTÃO 03
Em 2018 Ronaldo Caiado foi eleito como governador de Goiás. É médico, formado no exterior, filiado ao partido Democratas, ruralista e um dos fundadores da UDR[1]. O próprio sobrenome já revela muito da personalidade: os Caiado formaram a maior oligarquia de Goiás durante a I República, ascendendo em 1906 e permanecendo no poder até o Golpe de 1930, mas o declínio dessa primeira experiencia republicana começa anos antes de 1930. Talvez os problemas econômicos desencadeados com a I Grande Guerra tenham sido um golpe muito forte para uma economia extremamente dependente de exportações como era o Brasil Republicano, que já se complicava ao menos desde 1906 com a constatação da crise de superprodução do café e o fracasso do Convenio de Taubaté[2]. Talvez o tão aclamado “pacto federativo” não tenha obtido o sucesso esperado, sendo mais benéfico para São Paulo e Minas Gerais que para qualquer outro estado. Ou até mesmo a incapacidade da república de lidar com a parte pública do sistema. Fato é que um golpe ou revolução era eminente por fatores externos e internos (FURTADO, 1998).
O mundo pós I Grande Guerra era contraditório: se por um lado a Europa ainda se ocupava com os problemas gerados pela guerra e pela epidemia de gripe espanhola, por outro os Estados Unidos vivenciavam um crescimento cavalar regado a bebida dos gangsters, até 1929. Foram anos de expansão dos direitos, principalmente para as mulheres, mas também foram anos de xenofobia e perseguição a imigrantes – a exemplo do crescimento do número de adeptos da Ku Klux Klan[3]. O jazz começou a fazer sucesso nos EUA, as produções cinemáticas aumentaram, e a juventude tornou-se cada vez mais alienada. Já chegando no oriente, a Rússia estava em erupção: o estado fraco e falido criado pós queda do tsarismo assistiu a ascensão golpista de Lenin. A fundação da URSS[4] mudou o mundo e consolidou-se como grande potência depois da Grande Depressão[5], pela qual passou intacta com a sua economia planificada. A América Latina vivenciou um serie de revoluções anti-imperialistas - influenciadas pela Crise de 29 e a depressão economia que se seguiu - e a maioria dos governos alinharam-se ao espectro socialista. Em suma: é um período de efervescência mundial de ideias.
O Brasil desse período não é diferente: é um período de convulsão política, em que pautas sociais e culturais ganhavam cada vez mais peso. Em meados da década de 20 ocorreu a primeira grande greve, as cidades passavam por um crescimento populacional vertiginoso, o Partido Comunista Brasileiro foi fundado, os primeiros industriais começavam a ter voz dentro da política nacional – entrando em choque com os interesses da oligarquia cafeeira. Em 1922 o tenentismo ganhou força e a Semana de Arte Moderna buscou construir uma representação do país, abandonando o academicismo e o tradicionalismo tão cultuados por uma elite decadente. A república brasileira viu-se transbordando de povo.
Se a política dos governadores[6] terceirizava os problemas regionais e transmitia uma imagem de tranquilidade, internamente a política era extremamente conturbada. Havia um foço cada vez mais profundo entre estados de primeiro plano (São Paulo e Minas Gerais) e estados de segundo plano (o restante do país), corroendo aos poucos a estabilidade garantida por Campos Sales. A desproporcionalidade de poderes não era só de nível político federal, atingia também boa parte da população que se via a margem do sistema jurídico, com uma agenda social ignorada pela república. (RESENDE, 2010).
Em 1930 os candidatos das oligarquias cafeeiras foram eleitos, como já era de se esperar. As eleições foram contestas, algo frequente que raramente obtinha sucesso posto que as fraudes eram comuns. A agenda da Aliança Liberal não era menos elitista que a das oligarquias cafeeira, o problema foi que o vice de Getúlio Vargas, João Pessoa, acabou assassinado. Hoje se sabe que o motivo do assassinato foi passional, mas no período em questão João Pessoa se tornou um mártir e o estopim do Movimento de 1930. Em 3 de outubro de 1930 a revolução estoura em Minas Gerais e Rio Grande do Sul espalhando-se com velocidade pelo restante do país, com o apoio popular exemplificado por greves e ocupação de prédios públicos. Os militares do sul preparavam a invasão final a São Paulo, mas antes que houvesse derramamento de sangue o presidente foi deposto. Membros do exército e da marinha compuseram uma Junta Provisória de governo. Apesar das tentativas de se manter no poder, a Junta cedeu à pressão popular e revolucionária. Getúlio partiu de trem para São Paulo, findando sua viagem no Rio de Janeiro, sendo empossado em 3 de novembro daquele ano (FAUSTO, 2018).
Apesar das diversas interpretações do Golpe, Revolução ou Movimento de 1930, esse se caracteriza por rupturas e continuidades: se por um lado antigos oligarcas continuam no poder, o movimento não é capitaneado só por oligarcas, mas também por muitos outros eixos políticos a exemplo de tenentes, classe média e operários, unidos por uma agenda anti-oligarca. Feita a revolução, essa diversidade de cabeças criou um empecilho para os próximos passos da política federal. Para evitar mudanças radicais instaurou-se um “Estado de compromisso”:
“[...]o que se observa no pós-30 é um reajuste nas relações internas dos setores dominantes. O Estado de compromisso, nesse sentido, nada mais é do que um Estado que se abre a todas as pressões sem se subordinar necessariamente a nenhuma delas. Suas principais características são uma maior centralização, [...] ampliação do intervencionismo, [...] além do estabelecimento de certa racionalização na utilização de algumas fontes fundamentais de riqueza pelo capitalismo internacional” (FERREIRA & PINTO, 2010, p.410).

As conquistas dos primeiros anos do período Vargas foram variadas, circundando principalmente a esfera social com a Constituição de 1934. No mesmo ano, Vargas é eleito indiretamente presidente da República. Pululavam partidos políticos representantes dos mais diversos eixos de pensamento, com presença inclusive de fascistas na Ação Integralista Brasileira. Getúlio estava cada vez mais confortável com o apoio das Forças Armadas e da sociedade, com o pacto construído entorno da burguesia e dos trabalhadores, o que permitia medidas cada vez mais autoritárias (FAUSTO, 2018).
O último golpe ao suposto regime democrático que se inaugurava foi desferido em 1937 com o Plano Cohen, uma suposta insurreição comunista que possibilitou, em 10 de novembro do mesmo ano, a implantação da ditadura nomeada “Estado Novo”. Vargas acumulou mais poderes que os antigos imperadores, todavia a ditadura não representou um rompimento total, pelo contrário: aumentou o ritmo em que as mudanças modernizantes promovidas por Getúlio que desde 1930 vinham sendo implantadas, em especial a industrialização tendo o Estado como protagonista, transformando o papel das elites – antes agroexportadoras, agora empresárias.
Uma das características mais marcantes do período Vargas foi a refundação da relação capital-trabalho sob proteção do Estado para obter pacificação social, que Ângela de Castro Gomes chama de “trabalhismo”. A máquina de propaganda estatal assumiu o papel de propagação das ideias do governo central, apresentando a legislação trabalhista ao povo, partindo do pressuposto de uma ignorância popular e de que a legislação trabalhista não foi fruto de lutas sociais, mas era um presente do executivo aos trabalhadores. Criou-se até mesmo um calendário comemorativo festejando o Dia do Trabalho e o aniversário de Vargas. Dessa forma, Getúlio construiu uma imagem de líder carismático, criando uma mitologia entorno do Estado Novo, do presidente e do trabalho, em última instancia: a ilusão de um estado capaz de antecipar convulsões sociais e impedi-las com concessões (GOMES, 2005).
O Brasil inseriu-se no capitalismo global com o desenvolvimentismo nacional, seguindo uma tendência mundial corporativista, em que os sindicatos se tornaram cada vez mais fortes. No contexto nacional o sindicalismo autônomo foi marginalizado: os sindicatos deveriam estar ligados ao Ministério do Trabalho, que cuidava também da pasta de cidadania. Era o trabalho que fazia do indivíduo brasileiro. Daqui surgiu a afirmação de que o bom brasileiro é bom trabalhador, incluindo não só a ponta da produção, mas até mesmo os donos dos meios de produção. Por muito tempo a cultura predominante era a do “não trabalho” como sucesso na vida profissional, com Vargas isso se esvai: o trabalho passou a engrandecer o homem, a caracterizar o povo brasileiro, junto a mestiçagem de Gilberto Freyre.
O desenvolvimentismo enquanto pauta econômica se baseou na substituição de importações com o fortalecimento das indústrias de base. O parque industrial brasileiro aumentou com a construção de polos estatais e centros de pesquisa, destacando-se a Companhia Siderúrgica Nacional (1940), a Companhia Vale do Rio Doce (1942), a Fábrica Nacional de Motores (1943) e a Hidrelétrica do Vale do São Francisco (1945). Ampliaram-se a possibilidade de emprego, a renda média da população e as garantias legislativas relativas ao trabalho. Quanto a essa última questão, a CLT[7] decretada em 1 de março de 1943 é emblemática cumprindo não só o papel legislativo, mas também de repressão:
(Vargas) criou as leis de proteção ao trabalhador – jornada de oito horas, regulação do trabalho da mulher e do menor; lei de férias, instituição da carteira de trabalho e do direito a pensões e à aposentadoria. Na outra, reprimiu qualquer esforço de organização dos trabalhadores fora do controle do Estado – sufocou, com particular violência, a atuação dos comunistas. Para completar, liquidou com o sindicalismo autônomo, enquadrou os sindicatos como órgãos de colaboração com o Estado e excluiu o acesso dos trabalhadores rurais aos benefícios da legislação protetora do trabalho” (SCHAWRCZ & STARLING, 2015, p.322-362).

A II Grande Guerra impactou na política brasileira: as Leis Trabalhistas foram inspiradas na Carta del Lavoro, de Benito Mussolini; a Alemanha Nazista fez doações as universidades brasileiras, como o laboratório de Engenharia Civil da Universidade Federal de Goiás e entrou nas negociações pela construção da Companhia Siderúrgica Nacional. Vargas foi um ditador que prezava pelo corporativismo e perseguiu opositores e indesejados – vide criação dos sanatórios regionais - como Mussolini e Hitler, mas apoiou os Aliados. O fascismo varguista acabou sendo maquiado pelo trabalhismo e pela mestiçagem e a derrota da Alemanha Nazista se confundiu com a derrota dos fascismos, tapando essa ideologia no restante do mundo (CARNEIRO, 2010).
Apesar de tudo, o legado varguista não pode ser desprezado pela política brasileira por ser muito vasto e positivo, incluindo pontos que não foram abordados no texto. Ignorar o trabalhismo, a CLT, a fundamentação da justiça eleitoral, o investimento na educação pública, a campanha pelo petróleo e o desenvolvimento industrial, é retroceder.

REFERENCIAS
Brasil Escola. Portal UOL. Disponível em: <https://brasilescola.uol.com.br/>.

CARNEIRO, Maria Luiza Tucci. “Fascistas à brasileira – encontros e confrontos”. In: CARNEIRO, Maria Luiza Tucci (et.al.). Tempos de fascismos: Ideologia, Intolerância, Imaginário. São Paulo: Edusp, 2010.

CPDOC. Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil. Escola de Ciências Sociais da Fundação Getúlio Vargas.

FAUSTO, Boris. História Concisa do Brasil. Ed. USP, 2018.

FERREIRA, Marieta de Moraes & PINTO, Surama Conde Sá. A crise dos anos 1920 e a Revolução de 1930. IN.: FERREIRA, Jorge & DELGADO, Lucília de Almeida Neves (orgs.). O Brasil Republicano: do tempo do liberalismo excludente – Da proclamação da República à Revolução de 1930. 4ª ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2010, p. 387-415.

FURTADO, Celso. Formação Econômica do Brasil. Ed. Nacional, 1998.

GOMES, Angela de Castro. A invenção do trabalhismo; Trabalhismo e corporativismo. IN.: ________. A invenção do trabalhismo. 3ª ed. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2005, p. 211-264.

RESENDE, Maria Efigênia Lage de. O processo político na Primeira República e o liberalismo oligárquico. IN.: FERREIRA, Jorge & DELGADO, Lucília de Almeida Neves (orgs.). O Brasil Republicano: do tempo do liberalismo excludente – Da proclamação da República à Revolução de 1930. 4ª ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2010, p. 89-120.

SCHAWRCZ, Lilia M. e STARLING, Heloisa M. Brasil: Uma Biografia. São Paulo: Companhia das Letras, 2015. p. 322. p. 362.





QUESTÃO 04
No dia 19 de novembro de 2019, na reunião anual da UNESCO[8], em Paris, o secretário de cultura nomeado por Jair Messias Bolsonaro, Roberto Alvim, ao lado de ministros da cultura de todo o mundo fez a seguinte afirmação:
"A arte brasileira transformou-se em um meio para escravizar a mentalidade do povo em nome de um violento projeto de poder esquerdista.[...] Nas últimas duas décadas, a arte e a cultura brasileira foram reduzidas a meros veículos de propaganda ideológica, de palanque político, de propagação de uma agenda progressista avessa às bases de nossa civilização e às aspirações da maioria do nosso povo” (CHADE, 2019).

Tal fala pode nos arremeter a ideia de hegemonia cultural de esquerda, já debatida por Roberto Schwarz e Marcelo Ridente no contexto de Ditadura Militar. Quem dera essa fosse a única fala que rememorasse aqueles 21 anos sangrentos: o presidente, seus filhos e aliados políticos, insistem em positivar a Ditadura, elogiam torturadores, pregam um comunismo crescente no país, e, mais recentemente, projetam um “novo AI-5” caso a população vá as ruas.
Jair Messias Bolsonaro fala em 2019 como se vivêssemos na década de 60, em que o contexto mundial era de Guerra Fria. O mundo estava rachado: de um lado o Primeiro Mundo, encabeçado pelos Estados Unidos, de outro o Segundo Mundo, liderado pela União das Repúblicas Socialistas Soviéticas. A Revolução Cubana ecoava em todo a América Latina, os capitais estadunidenses estavam voltados principalmente para a Europa, afim de cercear o crescimento da influência soviética, o que não impedia a intervenção sobre os latinos, com o que ficou conhecido como Aliança para o Progresso[9]. Todavia a mesma década é marcada mundialmente por um crescimento dos ideais libertários com a profusão da cultura pop e da contracultura, marcados pela
“[...] inserção numa conjuntura internacional de prosperidade econômica; crise no sistema escolar; ascensão da ética da revolta e da revolução;  busca do alargamento dos sistemas de participação política, cada vez mais desacreditados; simpatia pelas propostas revolucionárias alternativas ao marxismo soviético; recusa de guerras coloniais ou imperialistas; negação da sociedade de consumo; aproximação entre arte e política; uso de recursos  de desobediência civil; ânsia de libertação pessoal  das estruturas do sistema (capitalista ou comunista); mudanças comportamentais; vinculação estreita entre lutas sociais amplas e interesses imediatos  das pessoas; aparecimento de aspectos precursores do pacifismo, da ecologia, da antipsiquiatria, do feminismo, do movimentos de homossexuais, de minorias étnicas e outros [...]” (RIDENTE, 2003, p.153).

Esses ideais assustavam uma elite conservadora e, a partir de 1954 na Nicarágua e no Paraguai, uma serie de governos à esquerda caíram para golpes militares apoiados pelos EUA.
O caso brasileiro não é diferente. Desde o governo JK o país vivenciava tentativas de golpes. Jânio Quadros tentou um autogolpe, descrito por ele mesmo no livro sobre sua vida, fracassado pela “incompetência dos militares”. Quem assumiu com a renúncia de JQ, foi João Goulart, apoiado por militares, pelos políticos de centro e pelas esquerdas em um regime parlamentarista. Jango assumiu um Brasil industrializado, mas herdou a crise economia de JK que desenvolveu a indústria de bens de consumo as custas de uma inflação elevada e dívida externa alta, que inviabilizava investimentos públicos, promovendo sucateamento da máquina estatal acompanhada de uma população urbana crescente, atraída do campo para a cidade pelos empregos nas fábricas, fazendo o custo de vida crescer. A oposição era feita pela União Democrática Nacional, contando com lideranças na Guanabara, em Minas Gerais e São Paulo, um forte eixo econômico e militar. Os poderes de JG no parlamentarismo eram restritos bem como espaço para negociações, que diminuía cada vez mais posto que no sul no país deu-se início a estatização de empresas norte-americanas, algo complicado de se explicar em um contexto de Guerra Fria. Em 1963, com o acirramento da política externa independente e a dificuldade de aprovação do Plano Trienal[10], os EUA igualaram trabalhistas e comunistas, afirmando ao mundo que o Brasil não era confiável, inviabilizando capitais externos.
Do ponto de vista cultural urbano, elaborou-se uma crítica a matriz capitalista em que “[...] buscava-se no passado uma cultura popular autêntica para construir uma nova nação, ao mesmo tempo moderna e desalienada, no limite, socialista”. A urbanização acompanhada de avanços tecnológicos e crescimento no acesso à educação explicavam as “ondas românticas de rebeldia e revolução”, buscando raízes brasileiras e a libertação do subdesenvolvimento. A esse movimento deu-se o nome de “romantismo revolucionário brasileiro” (RIDENTE, 2003, p.136).
No campo, a “libertação” do trabalhador rural, ou seja, a ruptura do pacto paternalista que retirou das pessoas a sua condição de sobrevivência, tornou a situação insustentável, como bem ilustra a música de Augusto Boal e Geny Marcondes (1961), "Zé da Silva é um homem livre":
“Passo a vida trabalhando; Dando duro no batente; A comer de vez em quando; Isso é vida minha gente‎; Se ser livre é passar fome; Não basta ser livre, não; Pro’ patrão pedi aumento; Só levei um pontapé; Sem comida e sem vintém; E agora, sêo’ José?‎; Se ser livre á passar tome; Não basta ser livre, não; No xadrez não me quiseram; Posse fome lá pra fora; se estou livre, estou faminto; Com a barriga dando hora.‎; Sem comida a liberdade; É mentira. não é verdade; Zé da Silva é um homem livre; O que, o que, o que‎; Zé da Silva é um homem livre‎;O que ele vai fazer?‎;O que?‎; Livre é livre, é livre.‎;Livre, livre, livre; É livre!‎; Aqui! Que eu sou livre.”.
A população camponesa organizou-se em grupos conhecidos por Ligas Camponesas e, posteriormente, em sindicatos que passaram a engrossar o caldo heterogêneo das esquerdas. As diversas pautas, urbanas e camponesas, de reinvindicação de direitos e acesso à terra acabaram reunidas em um pacote que ficou conhecido como Reformas de Base. O apoio a essas reformas era imenso e converteu-se em apoio a Jango, que “se elegeu presidente” com 82% dos votos pelo plebiscito sobre a forma de governo de 1963.
Pós retorno do presidencialismo, JG tentou pactuar com o centro afim de aprovar as tais Reformas de Base. Os quadros administrativos do governo foram os melhores que o Brasil já conheceu: Darcy Ribeiro e Paulo Freire na Educação, Celso Furtado no Planejamento, Ulysses Guimarães na Indústria e Comércio, Santiago Dantas nas Relações Exteriores, entre outros. A questão foi que havia um entrave legislativo a Reforma Agrária, principal pauta das Reformas de Base. Apesar das tentativas de conciliação, a mudança na legislação tornou-se inviável e as negociações quanto ao Plano Trienal corroíam o apoio de Jango entre as esquerdas, sua base social.
Inviabilizada as reformas pelos entraves legislativos, João Goulart, afim de conservar o apoio que tinha entre as camadas populares, firma seu compromisso com as esquerdas no Comício da Central do Brasil, em 13 de março de 1964. Com uma plateia de aproximadamente 300 mil pessoas, Jango afirmou que as reformas seriam feitas. Naquele momento JG pareceu intocável, a ponto de baixar no mesmo dia o Decreto da Reforma Agrária[11] (Decreto nº 53.700) e o Decreto do Aluguel[12] (Decreto nº 53.702) no dia seguinte. As promessas assustaram a elite conservadora que ainda não conspiravam. Leonel Brizola afirmou que o país só daria certo com o fechamento do congresso. As propagandas anti-comunistas eram produzidas a todo vapor. As relações com os EUA já estavam abaladas. O clima de radicalização alcançou o ponto máximo. Um golpe, ou pela esquerda ou pela direita, era eminente.
Em 31 de março de 1964, partem de Minas Gerais tropas golpistas. Haviam militares ainda alinhados a João Goulart. Era o presidente o único capaz de puxar uma resistência, mas não o fez. A ideia de que Jango não tinha pulso firme ou tato político para governar, hoje já não é aceita. Também não é hegemônico a afirmação de que JG não teria como resistir, pois, além de contar ainda com o apoio do exército do sul:
“Pesquisas feitas pelo Ibope às vésperas do golpe de 31 de março de 1964 mostram que o então presidente da República, João Goulart, deposto pelos militares, tinha amplo apoio popular. Doadas à Universidade de Campinas (Unicamp) em 2003, as sondagens não foram reveladas à época. Pelos números levantados, Jango, como Goulart também era conhecido, ganharia as eleições do ano seguinte se elas tivessem ocorrido. Entrevistas realizadas na cidade de São Paulo na semana anterior ao golpe mostravam que quase 70% da população aprovavam as medidas do governo” (Portal da Câmara).

Talvez a esquadra estadunidense na Bahia da Guanabara tenha sido o elemento de desestruturação fatal do governo. Caso os militares golpistas falhassem, os EUA interveriam. Mais do que um golpe contra João Goulart, 1 de abril foi um golpe consensual contra as esquerdas que se viam pela primeira vez apoiadas por um presidente e com espaço garantido na discussão política legal. Não só a UDN com tradição golpista participou, mas o próprio centro de JK, bem como parte da população civil que havia expressado sua insatisfação na Marcha da Família com Deus pela Liberdade[13] (FERREIRA, 2003).
O contraditório é que em meio a um regime autoritário a cultura de esquerda ganhou espaço:
"[...] apesar da ditadura da direita há(havia) relativa hegemonia cultural de esquerda no país. Pode(podia) ser vista nas livrarias de São Paulo e Rio, cheias de marxismo, nas estréias teatrais, incrivelmente festivas e febris, às vezes ameaçadas de invasão policial, na movimentação estudantil ou nas proclamações do clero avançado. Em suma, nos santuários da cultura burguesa a esquerda dá(dava) o tom. Esta anomalia – que agora periclita, quando a ditadura decretou penas pesadíssimas para a propaganda do socialismo – é o traço mais visível do panorama cultural brasileiro entre 1964 e 1969" (SCHWARZ,1978, p.62).

Interpreto “esta anomalia” como uma das várias formas de resistência popular fortalecida pelo endurecimento do regime e um desenvolvimentismo cada vez mais excludente, atingindo todas as camadas populares. Talvez esse ganho de espaço da cultura da esquerda também tenha se dado, em parte, por uma ignorância (ausência de inteligência) dos responsáveis pela censura, como fica claro pela música “A Mosca” de Raul Seixas que não foi censurada e faz clara alusão a esses produtores de cultura que perturbam a ordem ditatorial. Dentre os vários polos culturais de resistência, o tropicalismo destacou-se:
"[...] entre 1967 e 1969, surgiu uma nova resposta em relação às demandas artísticas e culturais que ficou conhecida como “movimento” Tropicalista; trazia consigo todo um conjunto de referenciais antagônicos, paradoxais da política e da estética, tematizava elementos de ruptura, a incorporação e a inovação relacionadas às propostas culturais consagradas, até então, pelo paradigma do nacionalismo de esquerda" (MALINI, 2018, p.169).

Esses movimentos artísticos devem nos servir enquanto acadêmicos como inspiração, posto que a Ditadura Militar é a inspiração de quem preside o país. Enquanto estudantes de ciências humanas é nosso papel ser a mosca que pousa na sopa, que perturba o sono, e, como o restante da América Latina cabe a nós gritar pelas ruas que é proibido proibir.

REFERENCIAS
CHADE, Jamil. Secretário diz na Unesco que arte brasileira servia a "projeto absolutista". Portal UOL, 2019. Disponível em: <https://noticias.uol.com.br/colunas/jamil-chade/2019/11/20/secretario-diz-na-unesco-que-arte-brasileira-servia-a-projeto-absolutista.htm>.

CPDOC. Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil. Escola de Ciências Sociais da Fundação Getúlio Vargas.

FERREIRA, Jorge. O governo Goulart e o golpe civil-militar de 1964. IN.: FERREIRA, Jorge & DELGADO, Lucília de Almeida Neves (orgs.). O Brasil Republicano. O tempo da experiência democrática – da democratização de 1945 ao golpe civil-militar de 1964. Livro 3. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003, 343-404.

Legislação Informatizada - Decreto nº 53.700, de 13 de Março de 1964 - Publicação Original

Legislação Informatizada - Decreto nº 53.702, de 14 de Março de 1964 - Publicação Original

MILANI, Vinicius. Tropicalismo, nacionalismo e contracultura: as afinidades entre a canção e o teatro tropicalistas (1966-1969). IN: Rev. Sociologias Plurais, v. 4, número especial 3, p.168-186, nov. 2018.

Portal da Câmara dos Deputados. Jango tinha 70% de aprovação às vésperas do golpe de 64, aponta pesquisa. 2014. Disponível em: <https://www.camara.leg.br/noticias/429807-jango-tinha-70-de-aprovacao-as-vesperas-do-golpe-de-64-aponta-pesquisa/>.

RIDENTI, Marcelo. Cultura e política: os anos 1960-1970 e sua herança. IN.: FERREIRA, Jorge & DELGADO, Lucília de Almeida Neves (Orgs.). O Brasil Republicano. Vol. 4. O tempo da Ditadura. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003, p. 135-166.

SCHWARZ, Roberto. “Cultura e política, 1964-1969”. In: O pai de família e outros estudos. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1978.



[1] União Democrática Ruralista (UDR): Associação civil criada em maio de 1985 por grandes proprietários de terras, com a finalidade de defender a propriedade privada e como expressão da radicalização patronal rural contra a política agrária promovida pelo governo federal no começo da administração do presidente José Sarney (CPDOC).
[2] O Convênio de Taubaté foi um encontro realizado em 1906 pelos governadores dos estados de São Paulo, Minas Gerais e Rio de Janeiro, na cidade paulista de Taubaté, com o objetivo de encontrarem uma política estatal para garantir a rentabilidade da cafeicultura brasileira (Brasil Escola).
[3] A Ku Klux Klan é uma organização terrorista formada por supremacistas brancos que surgiu nos Estados Unidos depois da Guerra Civil Americana com o intuito de perseguir e promover ataques contra afro-americanos e defensores dos direitos desse grupo. Ficaram conhecidos por suas vestimentas peculiares e por promoverem o espancamento de pessoas. O grupo chegou a possuir quatro milhões de membros na década de 1920 e existe até hoje, mas bastante enfraquecido (Brasil Escola).
[4] União das Repúblicas Socialistas Soviéticas ou simplesmente União Soviética, foi um Estado socialista localizado na Eurásia que existiu entre 1922 e 1991.
[5] A Crise de 1929, também conhecida como Grande Depressão, foi uma forte recessão econômica que atingiu o capitalismo internacional no final da década de 1920. Marcou a decadência do liberalismo econômico, naquele momento, e teve como causas a superprodução e especulação financeira (Brasil Escola).
[6] Nome com que ficou conhecido o arranjo político promovido pelo presidente Campos Sales (1898-1902) e os governadores e presidentes estaduais com o objetivo de superar as incertezas políticas que marcaram os primeiros governos da República (CPDOC).
[7] Consolidação das Leis do Trabalho.
[8] Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura.
[9] Programa de assistência ao desenvolvimento socioeconômico da América Latina formalizado quando os Estados Unidos e 22 outras nações do hemisfério, entre elas o Brasil, assinaram a Carta de Punta del Este em agosto de 1961. De acordo com o documento, os países latino-americanos deveriam traçar planos de desenvolvimento e garantir a maior parte dos custos dos programas, cabendo aos EUA o restante (CPDOC).
[10] Elaborado pela equipe chefiada pelo ministro extraordinário do Planejamento, o economista Celso Furtado, o Plano Trienal de Desenvolvimento Econômico e Social procurou estabelecer regras e instrumentos rígidos para o controle do déficit público e refreamento do crescimento inflacionário (CPDOC).
[11] Declara de interesse social para fins de desapropriação as áreas rurais que ladeiam os eixos rodoviários federais, os leitos das ferrovias nacionais, e as terras beneficiadas ou recuperadas por investimentos exclusivos da União em obras de irrigação, drenagem e açudagem, atualmente inexploradas ou exploradas contrariamente à função social da propriedade, e dá outras providências (Decreto nº 53.700).
[12] Ficam tabelados os aluguéis de imóveis e respectivo mobiliário em todo o território nacional, que se acham atualmente desocupados ou que vierem a vagar (Decreto nº 53.702).
[13] Movimento surgido em março de 1964 e que consistiu numa série de manifestações, ou "marchas", organizadas principalmente por setores do clero e por entidades femininas em resposta ao comício realizado no Rio de Janeiro em 13 de março de 1964, durante o qual o presidente João Goulart anunciou seu programa de reformas de base. Congregou segmentos da classe média, temerosos do "perigo comunista" e favoráveis à deposição do presidente da República (CPDOC).

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