segunda-feira, 28 de outubro de 2019

Tráfico Atlântico de escravizados, nova história indígena, dinâmica de mestiçagem


I PROVA DE HSPB
Observação: Se recomenda a leitura das questões II e V em conjunto, pois são complementares. Todos os textos foram escritos a partir das anotações do autor realizadas em sala de aula entre agosto e outubro de 2019.
QUESTÃO II
A escravidão não foi novidade nem nas Américas, muito menos na Europa ou na África. Os portugueses já aplicavam o trabalho escravo em localidades como a Ilha da Madeira para a produção do açúcar. A África já conhecia a escravidão tanto ritualista como por guerra ou dívida. Então qual a novidade?
O Tráfico Atlântico de escravizados. O oceano, antes obstáculo, passou a ser um corredor direto. Não se conta uma história do Brasil separada de uma história da África pela robustez conquistada pelo Tráfico Atlântico bilateral entre esses dois locais. Mais de 12 milhões de pessoas deixaram o continente africano compulsoriamente entre os séculos XVII e XIX. O Brasil foi o maior importador de escravos do mundo, a economia brasileira seria inviável sem os acorrentados, e daqui surge um dos principais gatilhos do tráfico atlântico: a economia (FLORENTINO, 2015).
Uma demanda externa movia o comércio de pessoas. Demanda com proporções tão elevadas que modificou os cativeiros africanos, criando estados voltados para a captura e venda de escravizados, em aliança com os portugueses, alianças para guerra e comércio, numa lógica de reprodução social de cativos com protagonismo português e de elites guerreiras africanas. Essa lógica de reprodução social de cativos promoveu um despovoamento africano que tem consequência até a atualidade (MATTOS, 2010).
A escravidão não foi motivo de estranhamento para as pessoas da época, pelo contrário, era uma pratica aceita e popular. Para os portugueses, além de ser uma boa alternativa para o trabalho braçal, estava ligada também a purificação religiosa, transcendendo a barreira da cor. É esse o outro gatilho principal do tráfico: a catequização católica. Essa se dava por meio do trabalho ou da guerra justa (MATTOS, 2010). 


REFERÊNCIAS
FLORENTINO, Manolo. Aspectos do tráfico negreiro na África Ocidental (c.1500-c.1800). IN.: FRAGOSO, João & GOUVÊA, Maria de Fátima (orgs.). O Brasil colonial. Vol. 1. 2ª ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2015, p. 229-268.

MATTOS, Hebe Maria. A escravidão moderna nos quadros do Império português: o Antigo Regime em perspectiva atlântica. IN.: FRAGOSO, João; BICALHO, Maria Fernanda Baptista & GOUVÊA, Maria de Fátima (orgs.). O antigo regime nos trópicos: a dinâmica imperial portuguesa (séculos XVI-XVIII). 2ª ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2010, p. 142-162.

QUESTÃO III
“[...] Os Indios, que tem commum com os Africanos o serem selvagens e indomitos, regem-se todos pelos mesmos instinctos, paramente animaes, e por nenhuns outros. Vão lá pregar-lhes as excellencias do trabalho, vão lá dizer-lhes que Deus poz o trabalho como sentinella á virtude, que isso é o mesmo que bradar no deserto ou falar ás paredes, ou menos ainda, porque, segundo dizem, as paredes tem ouvidos......[...]” (VARNHAGEN & LISBOA, 1867, p. 12).
O trecho acima reflete o pensamento de Francisco Adolfo de Varnhagen, autor da "Historia Geral do Brazil". Por muito tempo as histórias do Brasil tentaram apagar as imagens tanto dos indígenas quanto dos negros. Ainda hoje o índio é visto como extinto e o negro como simples vítima do passado escravista, retirando desses sujeitos a sua autonomia histórica.  Essa leitura, compartilhada por muitos, passou a ser objeto de crítica nos anos 80, a partir da agenda das identidades, provocando inquietude nas ciências humanas. A universidade tentou e tenta até hoje responder essa inquietude, dentro dos seus limites. O próprio poder legislativo tentou responder essas questões com leis que obrigam o ensino de África e questões indígenas no ensino básico.
Não foi o aparecimento de novas fontes que revolucionou a história indígena, mas sim novas perguntas. Por que chamamos de “índios”? O próprio termo “índio” foi uma tentativa de apagar a história de inúmeros povos que habitavam o território da colônia portuguesa, não diferenciando as mais diferentes nações nativas. Todavia, os “índios”, especialistas em sobrevivência, adotaram o termo “índio” como forma de unir diferentes etnias para resistir a realidade colonial.
Em 1500, ao chegarem na costa do que hoje conhecemos por Brasil, os portugueses se depararam com a mata de pé e julgaram previamente o povo costeiro como “selvagens não-civilizados”, porque civilização significava, entre outras coisas, domínio sobre a natureza, ou seja, não havia espaço para mato alto na civilização. Entretanto, os nativos não tinham essa consciência e não se entendiam como preservacionistas. Muitos dos nativos da costa não tinham um ideal que hoje consideraríamos sustentável. Não foi só espelho e cachaça os alvos de escambo entre europeus e indígenas, mas também armas de fogo e instrumentos metálicos, o que dinamizou a vida dos nativos não só na produção, mas na caça e na guerra entre diferentes povos.
Dado um panorama geral, hoje na antropologia e na história há uma proposta de garantir visibilidade a populações que foram apagadas da história nacional. É nessa linha que J. Pacheco Oliveira afirma que a colonização foi feita com o índio, em uma relação de aprendizado mútuo, tanto que o primeiro contato europeu-ameríndio foi amistoso. E foi importante ter sido amistoso, afinal o sentido colonial não era só comercial, mas também religioso. A Igreja Católica e os correspondentes portugueses viam na colônia a possibilidade de um imenso contingente católico (OLIVEIRA, 2016).
É do mesmo autor, a divisão da colonização em três situações históricas: (1°) Regime de Feitorias, marcado pelo equilíbrio de forças e por uma parceria nativo-europeia; (2°) Guerra de Conquista, marcada pelo desiquilíbrio de forças, pelos conflitos entre portugueses, indígenas e franceses e pela divisão da colônia nas Capitanias Hereditárias; (3°) Economia Açucareira, nesse período o indígena teve de optar pela espada ou pela cruz, passando a ser caçado (e a caçar) pelos colonos e pela relação com a religiosidade (OLIVEIRA, 2015).
Veja bem, o indígena nunca esteve sem opção: no primeiro período o escambo era útil para conseguir ferramentas e armas; no segunda os nativos podiam se aliar uns aos outros, permanecerem neutros ou se aliarem aos europeus, a depender da conveniência; no terceiro momento, apesar da situação se tornar opressora, o nativo subverte a própria colonização ora lutando contra colonos e assassinando missionários, ora se aliando aos missionários para evitar uma aniquilação.
É de suma importância observar essas relações complexas dos povos nativos para romper com a ideia que ainda existe de que o índio carece de uma tutela ou de que são “paramente[1] animaes”. São inúmeros povos, com incontáveis anseios e com meios próprios para conquista-los, negar essa afirmação é ignorar todo um processo histórico e retornar à mentalidade que vigorou entre os séculos XVI e XIX, é reafirmar o discurso medonho do autor da "Historia Geral do Brazil".

REFERENCIAS
OLIVEIRA, João Pacheco de. Os indígenas na fundação da colônia: uma abordagem crítica. IN.: FRAGOSO, João & GOUVÊA, Maria de Fátima (orgs.). O Brasil colonial. Vol. 1. 2ª ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2015, p. 167-228.

OLIVEIRA, João Pacheco de. O nascimento do Brasil: revisão de um paradigma historiográfico. IN.: ________. O nascimento do Brasil e outros ensaios: “pacificação”, regime tutelar e formação de alteridades. Rio de Janeiro: Contracapa, 2016, p. 44-74.

VARNHAGEN, Francisco Adolfo de; LISBOA, João Francisco. Os Indios bravos e o Sr. Lisboa, Timon 3º. pelo autor da "Historia Geral do Brazil" (F. A. de V.) Em parte gora de novo reimpresa. 1867. Disponível em: <http://objdigital.bn.br/objdigital2/acervo_digital/div_obrasraras/or1466183/or1466183.pdf>. Acesso em: 12 out. 2019.

QUESTÃO V
Em 2011 a Caixa Econômica Federal colocou no ar uma propaganda com o escritor brasileiro Machado de Assis, todavia o ator escolhido para representar o escritor era branco. Após reclamações, o comercial foi retirado de circulação com um pedido de desculpas (G1, 2011).
Em outubro de 2018 o atual vice-presidente da república general Hamilton Mourão (PRTB) deu a seguinte declaração no aeroporto de Brasília: "Meu neto é um cara bonito, viu ali. Branqueamento da raça". Dias depois, após de muita crítica, H. Mourão afirmou que foi “um idiota” (DOCA, 2018).
Abril de 2019, o presidente da república Jair Messias Bolsonaro (PSL) vetou uma propaganda do Banco do Brasil. O que a propaganda apresentava? Jovens, majoritariamente não-brancos, com roupas coloridas, cortes de cabelo variados, em situações diversas. A justificativa do presidente: “A linha mudou, a massa quer respeito à família, ninguém quer perseguir minoria nenhuma” (JORNAL NACIONAL, 2019).
O que esses três fatos revelam? A estrutura do racismo brasileiro, um racismo baseado na negação da cor, que tem origem nas relações entre cor e condição social da sociedade escravista brasileira nos séculos XVII e XIX.
Como se formou a sociedade escravista? Com a chegada dos portugueses no século XVI e o processo colonial que visava produzir abastecer os portos europeus, a mão de obra se torna um problema que foi facilmente resolvido. Sob justificativa religiosa[2] e necessidade econômica, a partir do século XVII, o comércio de escravizados é intensificado exponencialmente pelo comércio bilateral do Atlântico, como revela o professor Luiz Felipe de Alencastro, em entrevista dada a UnBTV. Mais de 12 milhões de pessoas foram trazidas sob coerção para as Américas (FLORENTINO, 2015).
A escravidão não era em si uma novidade: as sociedades que viviam as margens do Atlântico a conheciam diversas modalidades de cativeiro (ritualizado, por dívida, para trabalho, por guerra, entre outros). Todavia a escravidão nas proporções que tomou a partir do tráfico atlântico e de forma arraigada como foi na colônia portuguesa constituiu algo novo. Ter escravos era condição para a reprodução social (LARA, 2007).
Silvia Lara, ao analisar a dinâmica de mestiçagem, afirmou que a divisão social existente na América Portuguesa está muito além das dicotomias brancos e negros ou senhores e escravos. Primeiramente porque as cidades da colônia eram cidades negras, na proporção de 14 negros para cada 1 branco, o que gerava um medo constante, mas, além do medo, gerava pressão na administração europeia de tal forma que foi necessário adaptar a nobilitação para o Novo Mundo: ser nobre era ser senhor de escravos e de terras, ou seja, ser nobre era ter patrimônio. A nobreza não estava necessariamente ligada a cor da pele, tanto que a condição social modificava a classificação étnica das pessoas: em uma vida de sucesso, nascia-se negro e morria-se pardo (LARA, 2007).
Da mesma forma que a nobreza não estava ligada a cor da pele, a liberdade também não. Existiam diferentes graus de liberdade ligados a mobilidade espacial, a posse de escravos e a postura do “não trabalho” associada a sedentarização voluntária. O acumulo desses fatores concedia uma “liberdade plena”. Em um primeiro grau, quando só se possui a liberdade ligada a mobilidade espacial, a linha entre cativeiro e libertação era muito tênue, a qualquer momento o indivíduo poderia ser capturado e acusado de ser um “escravo fugido”, da mesma forma que era possível um escravo fugido passar a vida como livre, caso conseguisse sedentarizar-se voluntariamente, comprar alguns escravos e viver do trabalho deles ou mesmo trabalhar ao lado deles. Ou seja, o afastamento do cativeiro era uma construção social (MATTOS, 1998).
Enquanto o tráfico de escravos descrito no início do texto não cessou, a realidade da América Portuguesa foi a descrita acima. Até mesmo com a Independência essa realidade foi mantida. E a Independência promoveu uma ressignificação da escravidão, em uma postura ativa que mudou a pauta das relações internacionais do Brasil. A escravidão passou se relacionar com a soberania do Império. Todavia, no restante do mundo pós-Revolução Industrial, pautas humanistas e econômicas tendiam para o fim da escravidão. Dentro do Brasil, uma massa de livres e libertos de cor passou a desafiar a administração escravista. As pressões externas e internas foram tamanhas que a realidade sólida e estável do Brasil se rompeu: o governo este se viu obrigado a promulgar leis para o fim do tráfico e, mais tarde, o fim da escravidão. Essas leis mudaram de forma drástica a realidade brasileira e, com isso, o significado de liberdade, todavia essa é outra discussão (MAMIGNONIAM, 2014).
Mesmo com muitas mudanças, algo se manteve até a atualidade. O que os fatos citados na abertura do texto demonstram de forma clara: o racismo brasileiro, racismo que não é melhor nem pior que os racismos do restante do mundo, mas que é baseado na negação e na invisibilidade. Quando a Caixa Econômica Federal apresenta um Machado de Assis branco ela reforça o racismo. Quando H. Mourão fala de embranquecimento na família ele reforça o racismo. Quando o presidente do país fala em minoria, ele deve ter esquecido (ou talvez nem mesmo lido) que as pesquisas recentes do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística revelam que a população não-branca do Brasil já supera os 50%,  e, dessa forma, ele reforça o racismo.

REFERENCIAS
ALENCASTRO, Luiz Felipe. Diálogos: O Brasil construído por negros. 2019. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=5eeAIwhfNGU>. Acesso em: 12 out. 2019.

Caixa tira do ar propaganda que mostra Machado de Assis branco. 2011. Disponível em: <http://g1.globo.com/economia/negocios/noticia/2011/09/caixa-tira-do-ar-progaganda-que-mostra-machado-de-assis-branco.html>. Acesso em: 12 out. 2019.

DOCA, Geralda. 'Fui um idiota', diz Mourão após fala sobre 'branqueamento da raça'. 2018. Jornal O GLOBO. Disponível em: <https://oglobo.globo.com/brasil/fui-um-idiota-diz-mourao-apos-fala-sobre-branqueamento-da-raca-23136592>. Acesso em: 12 out. 2019.

FLORENTINO, Manolo. Aspectos do tráfico negreiro na África Ocidental (c.1500-c.1800). IN.: FRAGOSO, João & GOUVÊA, Maria de Fátima (orgs.). O Brasil colonial. Vol. 1. 2ª ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2015, p. 229-268.

IBGE. População. Disponível em: <https://www.ibge.gov.br/estatisticas/sociais/populacao.html>. Acesso em: 12 out. 2019.

JORNAL NACIONAL. Bolsonaro volta a defender veto à propaganda do Banco do Brasil. Portal de Notícias G1. Disponível em: <https://g1.globo.com/jornal-nacional/noticia/2019/04/27/bolsonaro-volta-a-defender-veto-a-propaganda-do-banco-do-brasil.ghtml>. Acesso em: 12 out. 2019.

LARA, Silvia Hunold. A multidão de pretos e mulatos. IN.: ________. Fragmentos setecentistas. Escravidão, cultura e poder na América portuguesa. São Paulo: Companhia das Letras, 2007, p. 126-172; p. 323-340 (notas).

MAMIGONIAN, Beatriz. A proibição do tráfico atlântico e a manutenção da escravidão. IN.: GRINBERG, Keila & SALLES, Ricardo (orgs.). O Brasil Imperial. Vol. I: 1808-1831. 3ª ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2014, p. 207-233.

MATTOS, Hebe. Uma experiência de liberdade (Primeira Parte). IN.: ________. Das cores do silêncio: os significados da liberdade no Sudeste escravista. Brasil Século XIX. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1998, p. 25-104.




[1] aquilo com que se orna ou enfeita; adorno.
[2] Catequização pelo trabalho.

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