segunda-feira, 28 de outubro de 2019

A escola de antropologia estadunidense


II RESUMO – TEORIA ANTROPOLÓGICA I

Apesar de ainda presente no discurso público, o evolucionismo enquanto eixo antropológico foi a muito refutado. Alguns dos estudiosos mais importantes para a queda do evolucionismo na academia foram Franz Boas e seus alunos, nomeados posteriormente como “culturalistas”. Mas quem eram os culturalistas e quais eram as ideias da escola boaziana?
Esse texto tem por objetivo apresentar Franz Boas e alguns de seus alunos de destaque, em um primeiro momento elencando as novas ideais que trouxeram para a antropologia; em um segundo momento demonstrando as fragilidades dessa nova escola de pensamento; e concluindo com o legado de Boas e dos boazianos para as ciências sociais.
Hoje conhecido como o “pai da antropologia americana”, Franz Boas nasceu na metade do século XIX na Alemanha e foi aluno de Lewis Henry Morgan, um dos principais evolucionistas. Talvez seu local de nascimento, que passou por uma virada humanista, em que o compreender passou a ter mais valor que o explicar, tenha influenciado no projeto acadêmico em que Boas se debruçou. Com o estudo e um posicionamento político forte contra o pensamento eugênico-determinista, Franz Boas formulou diversas críticas a escola de Morgan, atacando o pilar de qualquer ciência: seu método.
Para o alemão, o método comparativo dos evolucionistas era extremamente generalizante, pois assumia que o mesmo fenômeno etnológico se desenvolvia em todos os lugares da mesma maneira, retirando fatos de seu contexto para legitimar o conhecimento antropológico produzido. Em resposta a esse método, Franz Boas propõe algo novo: o método histórico. Esse coloca o valor da antropologia no estudo dos processos, na totalidade, e não no resultado isolado, retirado do contexto e do processo histórico. Dessa forma, a ideia de uma história única e um tempo único são negadas, passam a ser ditados pela cultura de cada povo, que é analisado a fundo, mas num espaço geográfico definido. Daqui partiram algumas críticas a escola boaziana.
Ainda na crítica elaborada por Franz Boas ao evolucionismo consta o papel do antropólogo, que deve estar limitado a pesquisas sobre as leis gerais de formação do pensamento e a supremacia da cultura no comportamento humano, contraponto os determinismos do pensamento eugênico.  Outro ponto relevante é que, apesar de não ter escrito sobre, Boas promoveu a pesquisa de campo intensiva em áreas culturais delimitadas, formando uma legião de orientandos, que pesquisaram diversas partes do mundo.
Alfred Louis Kroeber é um dos primeiros alunos de Franz Boas. Seu debate se centra na oposição dos determinantes biológicos, elaborando uma ideia de cultura atrelada ao superorgânico[1]. Kroeber busca diferenciar o humano do animal a partir da presença de civilização ou instinto, afirmando que os homens não agem como os animais, pois, apesar do reconhecimento dado aos processos orgânicos[2], esses estão separados dos processos culturais[3].
Ruth Benedict é outra orientanda de Boas que merece destaque. Com a agenda anti-eugência[4], Benedict reforça muito das ideias de seu orientador quanto a observação da totalidade, o relativismo cultural, a moldagem do indivíduo pela cultura e a particularidade do tempo de cultura para cultura. A autora vai desenvolver um conceito caro a antropologia até os dias de hoje: ethos. Esse conceito está ligado a totalidade dos grupos culturais isolados, os padrões coerentes que se formam e a hegemonia dentro de determinada cultura.
Também orientanda de Franz Boas, Margaret Mead, atendendo aos anseios de uma parte da sociedade, escreveu sobre o temperamento dos indivíduos e o condicionamento social dependente do sexo. Seu trabalho foi um soco no estomago para muitas pessoas, pois desmistificou o pensamento de condicionantes a partir do órgão genital, o vinculando ao reconhecimento dado ao indivíduo por cada sociedade. Um dos conceitos de Mead que reverbera até hoje é o de indivíduo inadaptado: destinado a sofrer pela não identificação com o pensamento hegemônico, esses indivíduos fogem do padrão que é esperado deles pela sociedade.
Apesar de dar o pontapé inicial contra os evolucionistas, os boazianos e o próprio Franz Boas apresentam problemas aos olhos da antropologia contemporânea. Existirem questões pontuais sobre cada autor –como o fato de Benedict ter realizado pesquisas no Japão por encomenda do governo estadunidense ou a tutela de Kroeber sobre Ishi[5]– o foco de quem escreve é apresentar os pontos de crítica da escola como um todo, sendo os principais: (1) a dualidade primitivo e moderno em que estavam imersos e acabava por retirar, nos estudos, a agência dos ditos “primitivos”; (2) a limitação imposta pelo ethos, que acabou por criar uma ideia de purismo e finitude –inexistente– e, mais tarde, a noção de aculturação[6]; e (3) a incapacidade de lidar com a quebra da hegemonia.
Alguns desses pontos de fragilidade são apontados pelos próprios boazinos. Quando Ruth Landes escolhe observar uma “cidade das mulheres” não como inadaptado, mas como agência feminina, ela rompe com a lógica da finitude dos povos, pois, em um ethos branco-patriarcal no Brasil de Vargas, a cidade das mulheres é um ponto de resistência e renascimento de uma cultura que teria sido esmagada pela “civilização”.
Nessa linha de observar o renascimento e a resistência dos povos a violência do processo colonial, Zora Hurston enxerga no povo negro uma capacidade de adaptação incrível e independente do estado. Esse seu espectro político liberal acabou por fazer com que essa autora fosse apagada da antropologia durante sua vida, sendo resgatada anos mais tarde por vertentes feministas do movimento negro estadunidense.
Por fim, talvez o aluno de F. Boas mais radical na crítica aos boazianos, Edward Sapir aponta todos os pontos de fragilidade já citados nesse texto e propõe que a cultura é uma criação do antropólogo, afirmação que vai se tornar mais popular no pós-modernismo da década de 60-70. Para o linguista, o indivíduo não é passivo e a cultura não é impessoal. É a rede de relações e a interação de sistemas de ideias que molda a cultura, afirmando assim a importância da base humana na antropologia. Não existem “ethos” nem “inadaptado”, o que Sapir observa são as diferentes formas de interpretações, as variadas reações a cultura.
Unindo esses três autores, dissonantes, é passível de afirmação que, mesmo se mantendo presos a dualidade primitivo-moderno, com o trabalho de campo levado a exaustão era possível observar a potência e a agência dos chamados “primitivos”. Talvez os três tenham sido os que mais respeitaram a proposta de F. Boas para a antropologia: uma observação densa do processo histórico que formou os povos. Mas quando se realiza essa observação densa, é impossível ignorar a força resiliente dos povos.
Mesmo com essas brechas para críticas aos culturalistas, a escola de Franz Boas deixou como legado os primeiros passos quanto a superação dos preconceitos e antagonismos étnicos, tão presentes nos discursos tanto leigos quanto políticos de hoje. Talvez falte a quem nos governa e aos que o elegeram algumas páginas de Antropologia Cultural (2004), ou falte aos antropólogos um ímpeto um pouco mais ativista, agindo na base, como o de Boas e de seus alunos.

REFERÊNCIAS
Anotações feitas em sala de aula no ano de 2019 durante as aulas de Introdução a Antropologia e Teoria Antropologia, ministradas respectivamente por Dra. Giovana Acácia Tempesta e Dra. Silvia Maria Ferreira Guimarães.

BOAS, Franz. 2004. Antropologia Cultural, Celso Castro (org.). Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor.

BOAS, Franz. 2010. A mente do ser humano primitivo. Petrópolis, Editora Vozes.

KROEBER, Alfred L. 1917. A natureza a Cultura. Lisboa, Edições 70, 1993.

BENEDICT, Ruth. 2013. Padrões de cultura.  Petrópolis, Editora Vozes.

MEAD, Margaret. 2015. Cultura e Personalidade, Celso Castro (org.). Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor.

MEAD, Margaret. 1969. Sexo e Temperamento. São Paulo: Perspectiva.

SAPIR, Edward. 2015. Cultura e Personalidade, Celso Castro (org.). Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor.

LANDES, Ruth. 2002. A cidade das mulheres. Rio de Janeiro: Editora da UFRJ.

HURSTON, Zora N. 2002. Seus olhos viam Deus. Rio de Janeiro: Record.



[1] em síntese significa acima do orgânico/biológico
[2] em especial, a seleção natural
[3] que são cumulativos, ligados a experiência adquirida
[4] comum a todos os membros da escola boaziana
[5] último sobrevivente dos Yashi
[6] perda substancial ou total da cultura dita primitiva quando em contato com outras culturas

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Carta sobre GTAQ

 Carta sobre GTAQ As comunidades quilombolas são constituídas por pessoas que compartilham uma identidade forjada ao longo de processos hist...