segunda-feira, 15 de julho de 2019

LINGUAGEM: O REFLEXO DA CULTURA

LINGUAGEM: O REFLEXO DA CULTURA

Tomemos linguagem como “qualquer conjunto ou sistema de símbolos vocais ou escritos, usado de forma mais ou menos uniforme, pelos membros de uma comunidade”. É a linguagem que “torna possível o desenvolvimento e a transmissão de culturas, a continuidade das sociedades, bem como o funcionamento eficiente e o controle dos grupos sociais”. Linguagem verbal, não-verbal, mista, formal, informal, humana ou artificial, são, entre muitos outros, tipos de linguagem. Mas é na linguagem ficcional que temos interesse [KRECH, CRUTHCFIELD & BALLACHEY, 1975, p. 352-356].
É do conhecimento de alguns que a cerca de 70 mil anos atrás nossa espécie começou a usar a linguagem ficcional. Não se sabe o motivo, mas foi a possibilidade de criar ficções, mitos compartilhados, que nos possibilitou pensar coletivamente, dando o primeiro passo rumo à cultura e a sua complexificação. É possível observar uma ligação genuína entre a linguagem e a cultura, e é com esse elo que nos preocuparemos nesse texto.
O maior exemplo da linguagem ficcional está nas religiões: a chance de fazer um macaco lhe entregar uma banana dizendo que quando ele morrer terá varias macacas o esperando é quase nula. Mas é possível observar essa linguagem em muitos outros contextos como na base acumulativa da sociedade capitalista ou em eventos cotidianos: num empréstimo bancário (e a crença que a dívida será quitada) ou nas telenovelas e no cinema (na empatia com personagens que na realidade não existem). E é uma obra cinematográfica o pano de fundo da discussão elaborada nesse ensaio.
Partiremos da análise do personagem Kaspar Hauser (K. H.), retratado no filme “O enigma de Kaspar Hauser” de Werner Herzog, de 1974: um adolescente misterioso que, no século XIX, foi encontrado em Nuremberg, Alemanha. Tendo sido criado em uma torre até os dezesseis anos de idade e sem contato com outras pessoas não desenvolveu habilidades como andar e falar. É só com a inserção em um pequeno povoado que K. H. começa a demonstrar essas competências básicas.
Ao ser deixado na vila, Kaspar repete apenas algumas poucas palavras antes de ser examinado por soldados que atestam sua saúde. Logo depois, passa a viver com uma família onde aprende novas palavras com as crianças da casa. Isso deixa claro que a capacidade de fala existia, só não havia sido estimulada, o que atesta a teoria de “equipamento original” formulada por Clifford James Geertz.
A ideia do antropólogo estadunidense afirma que disposições, tendências e capacidades estão diretamente atreladas a cultura, em um processo de interação dinâmica entre aspectos biológicos, psicológicos, sociais e culturais. Nesse sentido, K. H. tinha disposição biológica para a fala (as cordas vocais existiam, já que fora capaz de repetir algumas palavras), todavia não tinha estímulos psicológicos (só pôde desenvolver a linguagem quando colocado em contato com pessoas), seu universo de sentido começou a ser moldado pela relação estabelecida com outros indivíduos. O espaço cultural para o desenvolvimento da fala é a sociedade.
Imaginemos a linguagem como definido por Tolman, citado em “O indivíduo na sociedade”, um “instrumento longo, uma extensão de braços e mãos”: assim como os músculos do corpo humano, ela precisa de estímulos para se desenvolver e é passível de ser moldada. A modelagem na linguagem enquanto instrumento de cultura pode ser abstraída da discussão posta pelo francês Marcel Mauss. O pai da antropologia francesa, como ficou conhecido, afirma que todos os nossos atos passam por uma montagem “fisio-psico-sociológica”, ou seja, não são apenas fenômenos biológicos, mas também adquiridos no processo de socialização. “Em toda sociedade, todos sabem e devem saber e aprender o que devem fazer em todas as condições”. A sociedade alemã oitocentista era extremamente fria, as pessoas tinham uma postura rígida e comportamentos muito pautados na religião. É nesse contexto que a linguagem de H.K. se desenvolve, nesse espaço cultural. “É graças à sociedade que há uma intervenção da consciência [...] que há segurança e presteza nos movimentos, domínio do consciente sobre a emoção e o inconsciente” [MAUSS, 2003, p. 420-421].
“Na interação social, o homem é guiado pela sua interpretação do sentido das palavras e das ações do outro”: até hoje nos cumprimentamos formalmente com um bom aperto de mãos, observe esse ato: é uma forma de comunicação que transcende a linguagem verbal, mas segue regras que já naturalizamos, como entregar a mão direita e não a esquerda [KRECH, CRUTHCFIELD & BALLACHEY, 1975, p. 334].  
Kaspar Hauser rompe essa regra, ele deixa de lado um “princípio classificatório comum”, provavelmente por não ter internalizado esse padrão: na festa, com a alta classe alemã, K.H. dá a mão esquerda aos convidados, o que dá origem a olhares curiosos e comentários como “ele é realmente um homem da natureza”. Outro ponto que vale a pena ser observado é que Kaspar, em boa parte do filme, fala pressionando o dedo indicador no polegar, o que desagrada o nobre com que reside: veja, como dito anteriormente, os alemães do século XIX eram extremamente frios e rígidos, então esses pequenos atos são motivo de incômodo.
Mas por que nos incomodamos com isso? “A linguagem torna possível o desenvolvimento e a transmissão de culturas, a continuidade das sociedades, bem como o funcionamento eficiente e o controle dos grupos sociais” através do estabelecimento de filtros [KRECH, CRUTHCFIELD & BALLACHEY, 1975, p. 352].
Se três pessoas diferentes passearem pela mesma floresta, as experiências que terão serão muito diferentes pelos filtros sensoriais que as técnicas e as tradições sociais nos impõem de maneira quase imperceptível. Aceitar que o que vemos, ouvimos ou sentimos não compreende toda a realidade é um tanto complicado, por essa razão é colocado um exemplo comparativo: Kaspar Hauser, já bem apresentado, e Colombo, da forma como é retrato por Tzvetan Todorov na obra “A descoberta da américa”, de 2003.
Kaspar Hauser é um ser humano que chegou a fase adulta sem filtros definidos, com uma perspectiva muito fechada, é a origem do cumprimento com a mão esquerda, o pressionar do indicador no polegar, a dificuldade em diferenciar o estado consciente do inconsciente (realidade e sonho) e a dificuldade de expressar seus sentimentos através da linguagem verbal: ele ainda não conhecia as palavras pra expressar suas emoções (como na cena da galinha ou na dificuldade que tem para contar uma história).
Seu processo de significação do mundo veio tarde: ele não delimitava filtros naturais, humanos, espaciais ou religiosos. Ao sugerir que maçãs podem se cansar, ao serem arremessadas, e por isso se esconder no mato, demostra ausência dos filtros naturais e humanos de sua sociedade.  Negar a possibilidade de a torre ser maior que o quarto, pois, no quarto, quando olha para as diferentes direções K.H. só vê o quarto, mas fora da torre, ao olhar as diferentes direções, a torre só é vista em uma, possibilita a visualização da falta de filtros espaciais. A falta de filtros religiosos é vista quando o jovem indigente foge da igreja por achar o canto e a música extremamente incômodas.
A ausência desses filtros incide na linguagem verbal e física de K.H., basta observar a dificuldade que ele tem em interagir com os outros ou as perguntas que elabora ao nobre que o adota, e essa ausência incomoda as demais pessoas. A cultura em que está inserido não é refletida na sua linguagem ainda precária.
Já Colombo é o extremo oposto: seus filtros são extremamente definidos por sua visão de mundo, uma visão extremamente eurocêntrica, apoiada no divino e na busca por riquezas. Esses dois filtros principais refletem a cultura europeia do fim do século XIV que perdurou até o século XVIII. É tão curioso a ponto de se tornar engraçado: os filtros de Colombo o fazem interpretar o mundo de uma maneira única. Quando lhe é útil, qualquer coisa é sinal de ouro ou da proteção divina (pássaros pousando no navio, por exemplo): até na comunicação com os nativos ele captura palavras e as associa ao que lhe interessa (interpreta, por exemplo, que está na China, cercado de homens do Can), afirmando em outros momentos que nada entendia da língua, quando o que entende não lhe agrada, por exemplo, ao ignorar o nome das ilhas e rebatizá-las.
A linguagem que vai além da verbalização também é cerceada pelos filtros perceptíveis de Colombo: ao ver os índios nus, colombo associa a ausência de cultura e a abertura para o catolicismo, por afirmar uma “nudez espiritual”. Seu pensamento é de extremos, superior e inferior, bom e mau, covarde e corajoso, bonito e feio, humano e não humano, a depender dos seus interesses. Um exemplo claro é que, ao enxergar os nativos como humanos ele os vê como abertos a religião europeia, ao afirmar que não são humanos, vê neles um carácter bestial.
Ao opor esses dois personagens é possível demarcar a ideia com que gostaria de finalizar: a visão de mundo falseada pelos filtros que nos são impostos socialmente, numa construção coletiva, assim como a linguagem. A linguagem em si é um grande filtro, diferencia povos de países diferentes, diferencia classes sociais dentro de um mesmo país, além de transmitir a cultura.
“A linguagem reflete a personalidade do indivíduo e a cultura de sua sociedade, e por sua vez, ajuda a formar a personalidade e a cultura” [KRECH, CRUTHCFIELD & BALLACHEY, 1975, p. 352-356]. É através da linguagem nos seus vários espectros que transmitimos aos outros nossos preconceitos socialmente naturalizados, ou seja, nossos filtros de mundo. Como afirma Mauss “temos um conjunto de atitudes permitidas ou não, naturais ou não” definidas por filtros que todas as sociedades tem, fazendo o que é normal em certos locais ser assustador em outros. Em síntese: não conhecemos a realidade como um todo, conhecemos o que nossos filtros permitem, filtros que nem sabemos que temos. Ou, parafraseando Geertz, todo conhecimento é local, convencional e variável, logo julgar comportamentos e regras morais operantes nas sociedades demanda cuidado especial. Empenhar-se em delimitar culturas alheias a partir de experiencias e costumes totalmente pessoais configura racismo, etnocentrismo, intolerância ou xenofobia.

BIBLIOGRAFIA

O enigma de Kaspar Hauser. Direção de Werner Herzog. Alemanha Ocidental, 1974. (109 min.), P&B.
GEERTZ, Clifford. (1973) 1989. O impacto do conceito de cultura sobre o conceito de homem. In: A interpretação das culturas. Rio de Janeiro: LTC. pp. 25-30.
MAUSS, Marcel. (1935) 2003. As técnicas do corpo. In: Sociologia e Antropologia. São Paulo: Cosac Naify. pp. 399-422.
TODOROV, Tzvetan. 2003. A descoberta da América; Colombo hermeneuta. In: A conquista da América. A questão do outro. São Paulo: Martins Fontes. pp. 3-46.
KRECH, David; CRUTCHFIELD, Richard S.; BALLARCHEY, Egerton L. 1975. Linguagem e comunicação. In: O indivíduo na sociedade: um manual de psicologia social. São Paulo: Biblioteca Pioneira de Ciências Sociais. pp; 317- 356.


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