LINGUAGEM: O REFLEXO DA CULTURA
Tomemos linguagem
como “qualquer conjunto ou sistema de símbolos vocais ou escritos, usado de forma
mais ou menos uniforme, pelos membros de uma comunidade”. É a linguagem que
“torna possível o desenvolvimento e a transmissão de culturas, a continuidade
das sociedades, bem como o funcionamento eficiente e o controle dos grupos
sociais”. Linguagem verbal, não-verbal, mista, formal, informal, humana ou
artificial, são, entre muitos outros, tipos de linguagem. Mas é na linguagem
ficcional que temos interesse [KRECH, CRUTHCFIELD & BALLACHEY, 1975, p.
352-356].
É do conhecimento
de alguns que a cerca de 70 mil anos atrás nossa espécie começou a usar a
linguagem ficcional. Não se sabe o motivo, mas foi a possibilidade de criar
ficções, mitos compartilhados, que nos possibilitou pensar coletivamente, dando
o primeiro passo rumo à cultura e a sua complexificação. É possível observar
uma ligação genuína entre a linguagem e a cultura, e é com esse elo que nos
preocuparemos nesse texto.
O maior exemplo da
linguagem ficcional está nas religiões: a chance de fazer um macaco lhe
entregar uma banana dizendo que quando ele morrer terá varias macacas o
esperando é quase nula. Mas é possível observar essa linguagem em muitos outros
contextos como na base acumulativa da sociedade capitalista ou em eventos
cotidianos: num empréstimo bancário (e a crença que a dívida será quitada) ou
nas telenovelas e no cinema (na empatia com personagens que na realidade não
existem). E é uma obra cinematográfica o pano de fundo da discussão elaborada
nesse ensaio.
Partiremos da
análise do personagem Kaspar Hauser (K. H.), retratado no filme “O enigma de
Kaspar Hauser” de Werner Herzog, de 1974: um adolescente misterioso que, no
século XIX, foi encontrado em Nuremberg, Alemanha. Tendo sido criado em uma
torre até os dezesseis anos de idade e sem contato com outras pessoas não
desenvolveu habilidades como andar e falar. É só com a inserção em um pequeno
povoado que K. H. começa a demonstrar essas competências básicas.
Ao ser deixado na
vila, Kaspar repete apenas algumas poucas palavras antes de ser examinado por
soldados que atestam sua saúde. Logo depois, passa a viver com uma família onde
aprende novas palavras com as crianças da casa. Isso deixa claro que a
capacidade de fala existia, só não havia sido estimulada, o que atesta a teoria
de “equipamento original” formulada por Clifford James Geertz.
A ideia do
antropólogo estadunidense afirma que disposições, tendências e capacidades
estão diretamente atreladas a cultura, em um processo de interação dinâmica
entre aspectos biológicos, psicológicos, sociais e culturais. Nesse sentido, K.
H. tinha disposição biológica para a fala (as cordas vocais existiam, já que
fora capaz de repetir algumas palavras), todavia não tinha estímulos
psicológicos (só pôde desenvolver a linguagem quando colocado em contato com
pessoas), seu universo de sentido começou a ser moldado pela relação
estabelecida com outros indivíduos. O espaço cultural para o desenvolvimento da
fala é a sociedade.
Imaginemos a
linguagem como definido por Tolman, citado em “O indivíduo na sociedade”, um
“instrumento longo, uma extensão de braços e mãos”: assim como os músculos do
corpo humano, ela precisa de estímulos para se desenvolver e é passível de ser moldada.
A modelagem na linguagem enquanto instrumento de cultura pode ser abstraída da
discussão posta pelo francês Marcel Mauss. O pai da antropologia francesa, como
ficou conhecido, afirma que todos os nossos atos passam por uma montagem “fisio-psico-sociológica”,
ou seja, não são apenas fenômenos biológicos, mas também adquiridos no processo
de socialização. “Em toda sociedade, todos sabem e devem saber e aprender o que
devem fazer em todas as condições”. A sociedade alemã oitocentista era
extremamente fria, as pessoas tinham uma postura rígida e comportamentos muito
pautados na religião. É nesse contexto que a linguagem de H.K. se desenvolve,
nesse espaço cultural. “É graças à sociedade que há uma intervenção da
consciência [...] que há segurança e presteza nos movimentos, domínio do
consciente sobre a emoção e o inconsciente” [MAUSS, 2003, p. 420-421].
“Na interação
social, o homem é guiado pela sua interpretação do sentido das palavras e das
ações do outro”: até hoje nos cumprimentamos formalmente com um bom aperto de
mãos, observe esse ato: é uma forma de comunicação que transcende a linguagem
verbal, mas segue regras que já naturalizamos, como entregar a mão direita e
não a esquerda [KRECH, CRUTHCFIELD & BALLACHEY, 1975, p. 334].
Kaspar Hauser
rompe essa regra, ele deixa de lado um “princípio classificatório comum”,
provavelmente por não ter internalizado esse padrão: na festa, com a alta
classe alemã, K.H. dá a mão esquerda aos convidados, o que dá origem a olhares
curiosos e comentários como “ele é realmente um homem da natureza”. Outro ponto
que vale a pena ser observado é que Kaspar, em boa parte do filme, fala
pressionando o dedo indicador no polegar, o que desagrada o nobre com que
reside: veja, como dito anteriormente, os alemães do século XIX eram
extremamente frios e rígidos, então esses pequenos atos são motivo de incômodo.
Mas por que nos
incomodamos com isso? “A linguagem torna possível o desenvolvimento e a
transmissão de culturas, a continuidade das sociedades, bem como o
funcionamento eficiente e o controle dos grupos sociais” através do
estabelecimento de filtros [KRECH, CRUTHCFIELD & BALLACHEY, 1975, p. 352].
Se três pessoas
diferentes passearem pela mesma floresta, as experiências que terão serão muito
diferentes pelos filtros sensoriais que as técnicas e as tradições sociais nos
impõem de maneira quase imperceptível. Aceitar que o que vemos, ouvimos ou
sentimos não compreende toda a realidade é um tanto complicado, por essa razão
é colocado um exemplo comparativo: Kaspar Hauser, já bem apresentado, e
Colombo, da forma como é retrato por Tzvetan Todorov na obra “A descoberta da
américa”, de 2003.
Kaspar Hauser é um
ser humano que chegou a fase adulta sem filtros definidos, com uma perspectiva
muito fechada, é a origem do cumprimento com a mão esquerda, o pressionar do
indicador no polegar, a dificuldade em diferenciar o estado consciente do
inconsciente (realidade e sonho) e a dificuldade de expressar seus sentimentos
através da linguagem verbal: ele ainda não conhecia as palavras pra expressar
suas emoções (como na cena da galinha ou na dificuldade que tem para contar uma
história).
Seu processo de
significação do mundo veio tarde: ele não delimitava filtros naturais, humanos,
espaciais ou religiosos. Ao sugerir que maçãs podem se cansar, ao serem
arremessadas, e por isso se esconder no mato, demostra ausência dos filtros
naturais e humanos de sua sociedade. Negar
a possibilidade de a torre ser maior que o quarto, pois, no quarto, quando olha
para as diferentes direções K.H. só vê o quarto, mas fora da torre, ao olhar as
diferentes direções, a torre só é vista em uma, possibilita a visualização da
falta de filtros espaciais. A falta de filtros religiosos é vista quando o
jovem indigente foge da igreja por achar o canto e a música extremamente
incômodas.
A ausência desses
filtros incide na linguagem verbal e física de K.H., basta observar a
dificuldade que ele tem em interagir com os outros ou as perguntas que elabora
ao nobre que o adota, e essa ausência incomoda as demais pessoas. A cultura em
que está inserido não é refletida na sua linguagem ainda precária.
Já Colombo é o
extremo oposto: seus filtros são extremamente definidos por sua visão de mundo,
uma visão extremamente eurocêntrica, apoiada no divino e na busca por riquezas.
Esses dois filtros principais refletem a cultura europeia do fim do século XIV
que perdurou até o século XVIII. É tão curioso a ponto de se tornar engraçado:
os filtros de Colombo o fazem interpretar o mundo de uma maneira única. Quando
lhe é útil, qualquer coisa é sinal de ouro ou da proteção divina (pássaros
pousando no navio, por exemplo): até na comunicação com os nativos ele captura
palavras e as associa ao que lhe interessa (interpreta, por exemplo, que está
na China, cercado de homens do Can), afirmando em outros momentos que nada
entendia da língua, quando o que entende não lhe agrada, por exemplo, ao
ignorar o nome das ilhas e rebatizá-las.
A linguagem que
vai além da verbalização também é cerceada pelos filtros perceptíveis de
Colombo: ao ver os índios nus, colombo associa a ausência de cultura e a
abertura para o catolicismo, por afirmar uma “nudez espiritual”. Seu pensamento
é de extremos, superior e inferior, bom e mau, covarde e corajoso, bonito e
feio, humano e não humano, a depender dos seus interesses. Um exemplo claro é
que, ao enxergar os nativos como humanos ele os vê como abertos a religião
europeia, ao afirmar que não são humanos, vê neles um carácter bestial.
Ao opor esses dois
personagens é possível demarcar a ideia com que gostaria de finalizar: a visão
de mundo falseada pelos filtros que nos são impostos socialmente, numa
construção coletiva, assim como a linguagem. A linguagem em si é um grande
filtro, diferencia povos de países diferentes, diferencia classes sociais
dentro de um mesmo país, além de transmitir a cultura.
“A linguagem
reflete a personalidade do indivíduo e a cultura de sua sociedade, e por sua
vez, ajuda a formar a personalidade e a cultura” [KRECH, CRUTHCFIELD &
BALLACHEY, 1975, p. 352-356]. É através da linguagem nos seus vários espectros
que transmitimos aos outros nossos preconceitos socialmente naturalizados, ou
seja, nossos filtros de mundo. Como afirma Mauss “temos um conjunto de atitudes
permitidas ou não, naturais ou não” definidas por filtros que todas as
sociedades tem, fazendo o que é normal em certos locais ser assustador em
outros. Em síntese: não conhecemos a realidade como um todo, conhecemos o que
nossos filtros permitem, filtros que nem sabemos que temos. Ou, parafraseando
Geertz, todo conhecimento é local, convencional e variável, logo julgar
comportamentos e regras morais operantes nas sociedades demanda cuidado
especial. Empenhar-se em delimitar culturas alheias a partir de experiencias e
costumes totalmente pessoais configura racismo, etnocentrismo, intolerância ou
xenofobia.
BIBLIOGRAFIA
O enigma de Kaspar Hauser. Direção de
Werner Herzog. Alemanha Ocidental, 1974. (109 min.), P&B.
GEERTZ, Clifford.
(1973) 1989. O impacto do conceito de cultura sobre o conceito de homem. In: A interpretação das culturas. Rio de
Janeiro: LTC. pp. 25-30.
MAUSS, Marcel.
(1935) 2003. As técnicas do corpo. In: Sociologia
e Antropologia. São Paulo: Cosac Naify. pp. 399-422.
TODOROV, Tzvetan.
2003. A descoberta da América; Colombo hermeneuta. In: A conquista da América. A questão do outro. São Paulo: Martins
Fontes. pp. 3-46.
KRECH, David;
CRUTCHFIELD, Richard S.; BALLARCHEY, Egerton L. 1975. Linguagem e comunicação.
In: O indivíduo na sociedade: um manual
de psicologia social. São Paulo: Biblioteca Pioneira de Ciências Sociais.
pp; 317- 356.
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