segunda-feira, 15 de julho de 2019

PROVA II - INTRODUÇÃO À CIÊNCIA POLÍTICA

PROVA II - INTRODUÇÃO À CIÊNCIA POLÍTICA

O embate por poder não é novidade. No campo lexical a discussão é dominada por dois grupos: elitistas e pluralistas. O primeiro é formado predominantemente por sociólogos e acredita que o poder está nas mãos de uma elite dirigente. Elaboram sua tese apoiados a pontos frágeis como: a pré-existência de “estruturas verticais de poder” em qualquer sociedade e a paridade entre “poder reputado” e “poder efetivo” [BARACH & BARATZ, p. 150].
O segundo grupo, constituído majoritariamente por cientistas políticos, questiona a existência dessa elite dirigente. Para os pluralistas o poder está difuso no meio social, horizontalizando a perspectiva de estruturas de poder (se é que elas existem). A teoria também apresenta falhas, por exemplo, ao propor que o poder só pode ser observado em tomada de decisão sobre temas concretos [BARACH & BARATZ, p. 150]. 
Visto que as duas correntes de pensamento têm pontos de incoerência, Peter Barach e Morton Baratz elaboram uma nova concepção de poder. Para esses autores existem duas faces do poder. A primeira é abordada na concepção pluralista, que entende poder como participação na tomada de decisão sobre temas concretos. Todavia essa visão não contempla a segunda face do poder, que está localizada na não tomada de decisão, ou seja, no poder de agenda, na capacidade que indivíduos tem de fazer chegar ao debate público somente temas “seguros”, manipulando valores políticos e socais para a manutenção de interesses e perspectivas próprias [BARACH & BARATZ, p. 148-152].
Conhecendo o significado de poder cabe se perguntar quem exerce o poder? E são inúmeras as respostas para essa questão, mas o foco deste trabalho está na democracia, mais especificamente em duas de suas correntes: a liberal-pluralista e a participativa.
A corrente liberal-pluralista que, evocando um espectro dahlziano, preza pelas liberdades individuais, por eleições competitivas e livres e pela formação de grupos de pressão. O pluralismo de Robert Dahl, que dá nome a essa corrente, equivale ao elitismo apresentado no primeiro parágrafo deste texto. Joseph Schumpeter, nascido na região que constitui a Áustria, teve sua proeminência acadêmica durante o século XX, é representante emblemático dessa linha de pensamento.
O autor novecentista propôs a “teoria clássica da democracia” que unia Rousseau aos utilitaristas. Pregava ideias de racionalidade e de especialização para defender a competição entre elites e, diferentemente dos clássicos, propunha que os cidadãos eram desinformados e apáticos, facilmente manipuláveis pela propaganda.
 Nesse aspecto o austríaco ressignifica democracia como “uma maneira de legitimar o governo de uma minoria através do processo eleitoral”, ou seja, um governo representativo, caracterizado pela “agregação de preferências manipuladas”. Aos cidadãos comuns, desinformados e apáticos, quanto a política, cabe apenas o gesto de votar [MIGUEL, 2005, p. 09-11].
Com isso Schumpeter esvazia o sentido de democracia: afasta o poder do povo ao afirmar que a tomada de decisão só pode ser exercida por uma minoria especializada e aos cidadãos comuns não cabe nem julgar a qualidade do governo, pois nem para tal função teriam aporte. Nesse sistema a segunda face do poder fica muito evidente: assuntos “perigosos” aos interesses dessa minoria representante nunca vão chegar ao debate público.
É sobre essa discussão que muitos governos vão se apoiar e buscar legitimidade, a exemplo dos Estados Unidos da América. Schumpeter abre margem para domínios autoritários sob um espectro democrático de instituições livres e direitos prescritos à custa da participação política ampla.
As críticas a esse modelo schumpeteriano são robustas: (1) o autor se afirma descritivo, todavia o sistema descrito por ele nunca existiu o que o faz prescritivo, além de tornar sua teoria irreal e impositiva; (2) a “teoria clássica da democracia” nunca se quer existiu, é no mínimo incoerente uma junção de Jean-Jacques Rousseau aos utilitaristas; (3) o autor faz confusão entre economia e política e (4) a discussão elaborada caracteriza muito mais uma república que uma democracia.
Uma alternativa ao modelo liberal-pluralista é a corrente participativa. Evoca John Stuart Mill e Rousseau como os autores que inauguraram suas ideias. São eles que dão a base para uma aplicação com contingentes populacionais maiores.
Os teóricos dessa linha acreditam na valorização e demonstração democrática através da educação política que se inicia com a participação política no cotidiano. Não há necessidade de se especializar em política para aprender sobre o mecanismo político, é preciso engajamento e exercitar o poder a partir dos níveis micro (nos bairros, nas escolas, nas fábricas, etc) até os níveis macro (na gestão do estado). Talvez aqui o “poder de agenda” se torne quase irrelevante, pois a gestão é de todos, o privado se torna público [MIGUEL, 2005, p. 24-29].
Também não há um desejo por alcançar a democracia direta, a questão aqui é a autogestão nas instituições já vigentes, que tem como um dos seus defensores Robert Dahl (anos depois de seu vínculo com o liberalismo), denotando igualdade política e soberania popular.
Vê-se grandes problemas na associação do termo democracia a sociedades capitalistas e também socialistas. No primeiro caso a desigualdade acaba por dificultar a participação efetiva dos trabalhadores na tomada de decisão. No segundo caso, ao passo que se amplia a igualdade restringe-se o espaço para participação. Nesse limbo entre capitalismo e socialismo real é que se constata a maior crítica ao sistema participacionista: a desigualdade dificulta o exercício do poder e a igualdade cerceia a liberdade para o mesmo fim [MIGUEL, 2005, p. 26-27].
A perspectiva participativa valoriza a democracia em uma nova forma: dentro dos moldes das instituições já existentes, mergulha profundamente no conteúdo que cada cidadão carrega, tornando o privado também público. No Brasil, mesmo depois de ter perdido espaço no debate acadêmico, pôde ser vista nos “orçamentos participativos” que ajudaram a superar o clientelismo com uma renovação das práticas políticas locais [MIGUEL, 2005, p. 28].
Observando as duas correntes é possível formular uma comparação entre as formas de exercício do poder. No caso liberal-pluralista, a tomada de decisão cabe a um grupo de representantes muito seleto e especializado, legitimado pelo voto. A segunda face do poder é muito importante, pois certos assuntos podem abalar a estrutura de poder. Não há mecanismos de participação política para além do voto, o que torna a representação pouco eficaz, pois essa não será cobrada.
Em contrapartida, na linha participativa o voto é insuficiente, o poder está na autogestão popular, no exercício da tomada de decisão em todas as questões cotidianas. A base desse regime é uma participação política ampla e essa jamais pode ser completamente substituída pela representação política.
O que faz das perspectivas antagônicas são o grau de participação e de representação política: enquanto em uma (liberal-pluralista) é impossível extinguir a representação e a participação política é mínima, em outra (participativa) a participação é a base de sustentação do modelo. Enquanto os liberal-pluralistas se afastam cada vez mais da democracia (enquanto poder do povo) os teóricos participativos buscam uma reaproximação com a mesma.
Sendo assim podemos nos perguntar o porquê da corrente liberal-pluralista ser considerada democrática enquanto se encaixaria perfeitamente na descrição de um regime representativo. Não interessa ser democrática efetivamente (possibilitar maior participação política), mas sim o rótulo democrático. É sobre essa perspectiva que o cientista político Gabriel Vitullo se debruça: o medo da minoria afortunada de uma divisão igualitária de propriedade fez com que ideias republicanas fossem trabalhadas sob um título falsamente democrático [VITULLO, 2009, p.272-280].
A questão era impor limites as camadas assalariadas cada vez mais organizadas: com organização e maior volume as exigências dessa massa não poderiam ser negadas. A resposta para esse “problema” veio na associação de representação política a democracia, com um foco muito maior no primeiro, uma “fusão entre regime democrático e regime representativo”, imersos num mar liberal, materializando a democracia liberal-pluralista [VITULLO, 2009, p.272].
Unir liberalismo e democracia é no mínimo contraditório, pois são perspectivas opostas. Como se pode observar na discussão elaborada anteriormente sobre as correntes democráticas, a democracia em si está muito mais ligada ao exercício da autogestão, na participação. O regime liberal almeja a república, massas participando da tomada de decisão resultariam em balbúrdia. Sendo assim, democracia e representação jamais serão temos intercambiáveis, mas podem coexistir. [VITULLO, 2009, p.278-280].
O conflito descrito acima é semelhante a união entre democracia representativa e democracia direta. A democracia direta está muito mais ligada a ideia de participação, que é alvo de repudio de correntes representativas. Todavia a dita “democracia liberal” já impregnou tanto o cenário social com a representação autoritária schumpeteriana que se esquece da possibilidade de um “tipo de representação, com outro tipo de instituições que reforcem a democracia em lugar de levar à sua negação” [VITULLO, 2009, p.293].
Um tipo de representação que já foi colocado em prática: a democracia da Comuna de Paris com mandatos imperativos, cargos rotativos e direito a revogatória, a democracia bolivariana da Constituição Venezuelana de 1999, onde o poder político é exercido “de baixo para cima”, a democracia participativa como foi descrita anteriormente, com seu caráter pedagógica deve atuar em uma remodelagem social  dentro das instituições vigentes, com a valorização de todas as experiências, garantindo “o desenvolvimento individual e coletivo ao povo” [VITULLO, 2009, p.293-295].

REFERENCIAS
BACHRACH, Peter; BARATZ, Morton S. “Duas faces do poder”. Revista de Sociologia e Política, v. 19, n. 40, 2011, pp. 149-157.
MIGUEL, Luis Felipe. “Teoria democrática atual: esboço de mapeamento”. BIB: Revista Brasileira de Informação Bibliográfica em Ciências Sociais, nº 59, 2005. pp. 5-42.
VITULLO, Gabriel. “Representação política e democracia representativa são expressões inseparáveis? Elementos para uma teoria democrática pós-representativa e pós-liberal”. Revista Brasileira de Ciência Política, n. 2, 2009.


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