PROVA II - INTRODUÇÃO À CIÊNCIA POLÍTICA
O
embate por poder não é novidade. No campo lexical a discussão é dominada por
dois grupos: elitistas e pluralistas. O primeiro é formado predominantemente
por sociólogos e acredita que o poder está nas mãos de uma elite dirigente.
Elaboram sua tese apoiados a pontos frágeis como: a pré-existência de “estruturas
verticais de poder” em qualquer sociedade e a paridade entre “poder reputado” e
“poder efetivo” [BARACH & BARATZ, p. 150].
O
segundo grupo, constituído majoritariamente por cientistas políticos, questiona
a existência dessa elite dirigente. Para os pluralistas o poder está difuso no
meio social, horizontalizando a perspectiva de estruturas de poder (se é que
elas existem). A teoria também apresenta falhas, por exemplo, ao propor que o
poder só pode ser observado em tomada de decisão sobre temas concretos [BARACH
& BARATZ, p. 150].
Visto
que as duas correntes de pensamento têm pontos de incoerência, Peter Barach e
Morton Baratz elaboram uma nova concepção de poder. Para esses autores existem
duas faces do poder. A primeira é abordada na concepção pluralista, que entende
poder como participação na tomada de
decisão sobre temas concretos. Todavia essa visão não contempla a segunda
face do poder, que está localizada na não
tomada de decisão, ou seja, no poder de
agenda, na capacidade que indivíduos tem de fazer chegar ao debate público
somente temas “seguros”, manipulando valores políticos e socais para a
manutenção de interesses e perspectivas próprias [BARACH & BARATZ, p.
148-152].
Conhecendo
o significado de poder cabe se perguntar quem exerce o poder? E são inúmeras as
respostas para essa questão, mas o foco deste trabalho está na democracia, mais
especificamente em duas de suas correntes: a liberal-pluralista e a
participativa.
A
corrente liberal-pluralista que, evocando um espectro dahlziano, preza pelas
liberdades individuais, por eleições competitivas e livres e pela formação de
grupos de pressão. O pluralismo de Robert Dahl, que dá nome a essa corrente,
equivale ao elitismo apresentado no primeiro parágrafo deste texto. Joseph
Schumpeter, nascido na região que constitui a Áustria, teve sua proeminência
acadêmica durante o século XX, é representante emblemático dessa linha de
pensamento.
O
autor novecentista propôs a “teoria clássica da democracia” que unia Rousseau
aos utilitaristas. Pregava ideias de racionalidade e de especialização para
defender a competição entre elites e, diferentemente dos clássicos, propunha
que os cidadãos eram desinformados e apáticos, facilmente manipuláveis pela
propaganda.
Nesse aspecto o austríaco ressignifica
democracia como “uma maneira de legitimar o governo de uma minoria através do
processo eleitoral”, ou seja, um governo representativo, caracterizado pela
“agregação de preferências manipuladas”. Aos cidadãos comuns, desinformados e
apáticos, quanto a política, cabe apenas o gesto de votar [MIGUEL, 2005, p. 09-11].
Com
isso Schumpeter esvazia o sentido de democracia: afasta o poder do povo ao
afirmar que a tomada de decisão só pode ser exercida por uma minoria especializada e aos cidadãos
comuns não cabe nem julgar a qualidade do governo, pois nem para tal função
teriam aporte. Nesse sistema a segunda face do poder fica muito evidente:
assuntos “perigosos” aos interesses dessa minoria representante nunca vão chegar
ao debate público.
É
sobre essa discussão que muitos governos vão se apoiar e buscar legitimidade, a
exemplo dos Estados Unidos da América. Schumpeter abre margem para domínios
autoritários sob um espectro democrático de instituições livres e direitos
prescritos à custa da participação política ampla.
As
críticas a esse modelo schumpeteriano são robustas: (1) o autor se afirma
descritivo, todavia o sistema descrito por ele nunca existiu o que o faz
prescritivo, além de tornar sua teoria irreal e impositiva; (2) a “teoria
clássica da democracia” nunca se quer existiu, é no mínimo incoerente uma
junção de Jean-Jacques Rousseau aos utilitaristas; (3) o autor faz confusão
entre economia e política e (4) a discussão elaborada caracteriza muito mais
uma república que uma democracia.
Uma
alternativa ao modelo liberal-pluralista é a corrente participativa. Evoca John
Stuart Mill e Rousseau como os autores que inauguraram suas ideias. São eles
que dão a base para uma aplicação com contingentes populacionais maiores.
Os
teóricos dessa linha acreditam na valorização e demonstração democrática
através da educação política que se inicia com a participação política no
cotidiano. Não há necessidade de se especializar em política para aprender
sobre o mecanismo político, é preciso engajamento e exercitar o poder a partir
dos níveis micro (nos bairros, nas escolas, nas fábricas, etc) até os níveis
macro (na gestão do estado). Talvez aqui o “poder de agenda” se torne quase
irrelevante, pois a gestão é de todos, o privado se torna público [MIGUEL,
2005, p. 24-29].
Também
não há um desejo por alcançar a democracia direta, a questão aqui é a autogestão nas instituições já vigentes,
que tem como um dos seus defensores Robert Dahl (anos depois de seu vínculo com
o liberalismo), denotando igualdade política e soberania popular.
Vê-se
grandes problemas na associação do termo democracia a sociedades capitalistas e
também socialistas. No primeiro caso a desigualdade acaba por dificultar a
participação efetiva dos trabalhadores na tomada de decisão. No segundo caso,
ao passo que se amplia a igualdade restringe-se o espaço para participação. Nesse
limbo entre capitalismo e socialismo real é que se constata a maior crítica ao
sistema participacionista: a desigualdade dificulta o exercício do poder e a igualdade
cerceia a liberdade para o mesmo fim [MIGUEL, 2005, p. 26-27].
A
perspectiva participativa valoriza a democracia em uma nova forma: dentro dos
moldes das instituições já existentes, mergulha profundamente no conteúdo que
cada cidadão carrega, tornando o privado também público. No Brasil, mesmo
depois de ter perdido espaço no debate acadêmico, pôde ser vista nos
“orçamentos participativos” que ajudaram a superar o clientelismo com uma
renovação das práticas políticas locais [MIGUEL, 2005, p. 28].
Observando
as duas correntes é possível formular uma comparação entre as formas de
exercício do poder. No caso liberal-pluralista, a tomada de decisão cabe a um
grupo de representantes muito seleto e especializado, legitimado pelo voto. A
segunda face do poder é muito importante, pois certos assuntos podem abalar a
estrutura de poder. Não há mecanismos de participação política para além do
voto, o que torna a representação pouco eficaz, pois essa não será cobrada.
Em
contrapartida, na linha participativa o voto é insuficiente, o poder está na
autogestão popular, no exercício da tomada de decisão em todas as questões
cotidianas. A base desse regime é uma participação política ampla e essa jamais
pode ser completamente substituída pela representação política.
O
que faz das perspectivas antagônicas são o grau de participação e de
representação política: enquanto em uma (liberal-pluralista) é impossível
extinguir a representação e a participação política é mínima, em outra
(participativa) a participação é a base de sustentação do modelo. Enquanto os liberal-pluralistas
se afastam cada vez mais da democracia (enquanto poder do povo) os teóricos
participativos buscam uma reaproximação com a mesma.
Sendo
assim podemos nos perguntar o porquê da corrente liberal-pluralista ser
considerada democrática enquanto se encaixaria perfeitamente na descrição de um
regime representativo. Não interessa ser democrática efetivamente (possibilitar
maior participação política), mas sim o rótulo democrático. É sobre essa
perspectiva que o cientista político Gabriel Vitullo se debruça: o medo da
minoria afortunada de uma divisão igualitária de propriedade fez com que ideias
republicanas fossem trabalhadas sob um título falsamente democrático [VITULLO,
2009, p.272-280].
A
questão era impor limites as camadas assalariadas cada vez mais organizadas:
com organização e maior volume as exigências dessa massa não poderiam ser
negadas. A resposta para esse “problema” veio na associação de representação
política a democracia, com um foco muito maior no primeiro, uma “fusão entre
regime democrático e regime representativo”, imersos num mar liberal,
materializando a democracia liberal-pluralista [VITULLO, 2009, p.272].
Unir
liberalismo e democracia é no mínimo contraditório, pois são perspectivas opostas.
Como se pode observar na discussão elaborada anteriormente sobre as correntes
democráticas, a democracia em si está muito mais ligada ao exercício da
autogestão, na participação. O regime liberal almeja a república, massas
participando da tomada de decisão resultariam em balbúrdia. Sendo assim,
democracia e representação jamais serão temos intercambiáveis, mas podem
coexistir. [VITULLO, 2009, p.278-280].
O
conflito descrito acima é semelhante a união entre democracia representativa e
democracia direta. A democracia direta está muito mais ligada a ideia de
participação, que é alvo de repudio de correntes representativas. Todavia a
dita “democracia liberal” já impregnou tanto o cenário social com a
representação autoritária schumpeteriana que se esquece da possibilidade de um
“tipo de representação, com outro tipo de instituições que reforcem a
democracia em lugar de levar à sua negação” [VITULLO, 2009, p.293].
Um
tipo de representação que já foi colocado em prática: a democracia da Comuna de
Paris com mandatos imperativos, cargos rotativos e direito a revogatória, a
democracia bolivariana da Constituição Venezuelana de 1999, onde o poder
político é exercido “de baixo para cima”, a democracia participativa como foi
descrita anteriormente, com seu caráter pedagógica deve atuar em uma
remodelagem social dentro das
instituições vigentes, com a valorização de todas as experiências, garantindo
“o desenvolvimento individual e coletivo ao povo” [VITULLO, 2009, p.293-295].
REFERENCIAS
BACHRACH, Peter; BARATZ, Morton S. “Duas faces do
poder”. Revista de Sociologia e Política, v. 19, n. 40, 2011, pp.
149-157.
MIGUEL,
Luis Felipe. “Teoria democrática atual: esboço de mapeamento”. BIB:
Revista Brasileira de Informação Bibliográfica em Ciências Sociais, nº 59,
2005. pp. 5-42.
VITULLO, Gabriel. “Representação política e democracia
representativa são expressões inseparáveis? Elementos para uma teoria
democrática pós-representativa e pós-liberal”. Revista Brasileira de Ciência
Política, n. 2, 2009.
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