sábado, 28 de dezembro de 2019

#004 Chico explica: história ambiental

Chico explica: história ambiental
A história ambiental é uma área de pesquisa recente com três eixos principais: (1) o estudo da formação das biotas, em um sentido geomorfológico, de longa duração; (2) as atividades humanas em contato com o meio natural; e (3) as representações da natureza.
Pela amplitude dos três eixos é possível observar que a história ambiental é interdisciplinar, consegue dialogar com as ciências exatas e biológicas tão bem quanto com as econômicas e antropológicas.
Ela surge nos anos 70, nos EUA, com o modelo desenvolvimentista mostrando seu esgotamento. É um movimento de resposta ao clamor social por outras cosmologias menos consumistas e destruidoras.
Hoje, com o modelo neoliberal, a história ambiental se mostra cada vez mais necessária não só por evidenciar várias formas de convívio com o natural, mas também por ser um período em que os efeitos da exploração desenfreada estão chegando em marcha acelerada não só aos principais poluidores, como a todo o mundo. Em 2019 foi agenda não só das relações internacionais, mais também do Vaticano.
Além dos desastres naturais, a história ambiental também pode ajudar a debater problemas sociais como a questão indígena e a reforma agrária.

sexta-feira, 20 de dezembro de 2019

#003 Chico explica: neoliberalismo

Chico explica: neoliberalismo
O neoliberalismo é um fenômeno político, econômico e ideológico com impactos fortes do meio social. É posto em prática com o Consenso de Washington, e reconhece o fracasso do modo capitalista de produção no modelo liberal pois passou a aceitar os problemas sociais (como o desemprego e até a miséria) como algo positivo para diminuir o poder de negociação dos trabalhadores.
Se caracteriza pelo fim de programas sociais, pela austeridade fiscal, pelo combate á inflação e o pagamento da dívida do estado. São exemplos históricos desse fenômeno o Chile de Pinochet, a Inglaterra de Margaret Thatcher, os EUA de Ronald Regan. Atualmente é hegemônico no mundo pois controla grandes órgãos internacionais, como o FMI.
No Brasil, Collor e FHC foram representantes emblemáticos do pensamento neoliberal. FHC com uma vertente mais consciente e com algum grau de importância dedicada ao eixo social. Os governos petistas, apesar da atenção dada aos mais pobres e a ampliação de programas sociais com resultados extremamente positivos, não desvinculou o Brasil do modelo neoliberal.
Hoje (2019) com Jair Bolsonaro na presidência, tendo como ministro da economia Paulo Guedes, o modelo neoliberal vem se aprofundando cada vez mais, piorando os índices sociais estruturalmente ruins do Brasil (como o desemprego e a desigualdade).
O neoliberalismo não tem o estado mínimo como pilar de sustentação, muito pelo contrário: ele precisa e se alimenta do estado. O estado, no modelo neoliberal, é mínimo para os trabalhadores, para as pessoas comuns; e é máximo para os muito ricos, para os bancos, para os rentistas. Desde a sua implementação nunca foi capaz de retomar o crescimento econômico a níveis elevados e aprofundou os problemas sociais.

domingo, 15 de dezembro de 2019

#002 Chico explica: fascismo

Chico explica: fascismo
Não existe apenas um fascismo, muito pelo contrário: são vários e muito diferentes uns dos outros, mas tentarei em sintetizar com poucas palavras o que são e como funcionam. Os fascismos são estratégias políticas de negação. São contraditórios, pois ao mesmo tempo que negam tudo que está posto são incapazes de produzir críticas contundentes.
A principal ferramenta que usam pra conquistar as pessoas é a frustração. A frustração pode vir de qualquer esfera de convívio social, pode ser até mesmo individual, mas os fascismos focalizam essas frustrações em um suposto grupo causador, por essa razão eles se associam tão facilmente ao nacionalismo exacerbado ou ao fundamentalismo religioso, ou ainda a uma mistura dos dois.
Ao fornecer esse "causador de frustrações" (que pode ser um partido político, um grupo étnico, religioso, uma minoria) os fascismos conseguem dividir a sociedade em 2 grupos: um grupo de "amigos"/aliados, que são a favor, mesmo que inconscientemente, da estratégia fascista, porque ela uniu esse grupo e deu um alvo pra que pudessem descontar sua frustração. E um segundo grupo, o alvo dos fascistas, o "inimigo", que passa pouco a pouco a viver num regime de exceção, a margem das garantias individuais, podendo ser morto pra manter a integridade/unidade do grupo fascista.
É impossível estar imune aos fascismos até porque eles mexem com sentimentos extremos causados pelas frustrações a qual todos estamos suscetíveis, mas atentar-se ao funcionamento e buscar conhecimento e diálogo fora do nosso círculo de convívio pode ajudar a manter distância das armadilhas de captura que os fascistas criam.


#001 Chico explica: o que é?

"Chico explica:" é um projeto de férias que tem por objetivo explicar de forma curta e simples alguns termos que são debatidos nas classes das universidades. A ideia é partilhar conhecimento, servindo de interprete de alguns dos diálogos acadêmicos que por qualquer razão não chegam no público geral alheio a universidade. Não é meu objetivo escrever no mais culto português seguindo à risca as normas da ABNT e citando inúmeras fontes. Meu objetivo é apresentar em poucas palavras uma, entre muitas outras, definição possível para um termo. Sigo posições do espectro político, econômico e ideológico da esquerda ou progressista. O método é simples: a partir das anotações e debates realizados em sala de aula ao longo de 2019 um texto será escrito e publicado no blog. Não seguirá um cronograma fixo, mas tentarei publicar ao menos um texto por semana.

segunda-feira, 9 de dezembro de 2019

O ÍNDIO E O SERTANEJO NA INTERPRETAÇÃO DE JOVENS DO ENSINO MÉDIO DO INTERIOR DE GOIÁS

O ÍNDIO E O SERTANEJO NA INTERPRETAÇÃO DE JOVENS DO ENSINO MÉDIO DO INTERIOR DE GOIÁS
FRANCISCO OCTÁVIO B. DE SOUSA*

RESUMO
O nacionalismo brasileiro buscou por muito tempo tipos ideais no passado brasileiro, mitificando, por exemplo, o “bom selvagem” e apagando outras expressões das diferentes matrizes culturais brasileiras. Esse apagamento se deu de inúmeras formas, entre elas: a criação de figuras como os sertanejos. A academia buscou, nos últimos anos, atender a agenda das identidades, designando o real papel (de protagonismo) de negros e índios na história brasileira. Mas será que essa busca tem obtido frutos? Esse trabalho, por intermédio de analise bibliográfica e entrevistas com alunos de ensino médio, buscou verificar o alcance dessa nova imagem do índio e do sertanejo.

PALAVRAS-CHAVE: matrizes culturais brasileiras; apagamento; sertanejo; índio.

INTRODUÇÃO
“[...] Os Indios, que tem commum com os Africanos o serem selvagens e indomitos, regem-se todos pelos mesmos instinctos, paramente animaes, e por nenhuns outros. Vão lá pregar-lhes as excellencias do trabalho, vão lá dizer-lhes que Deus poz o trabalho como sentinella á virtude, que isso é o mesmo que bradar no deserto ou falar ás paredes, ou menos ainda, porque, segundo dizem, as paredes tem ouvidos......[...]” (VARNHAGEN & LISBOA, 1867, p. 12).

O trecho acima reflete o pensamento de Francisco Adolfo de Varnhagen, autor da "Historia Geral do Brazil". Por muito tempo as histórias do Brasil tentaram apagar as imagens tanto dos indígenas quanto dos negros. O índio era visto como extinto e o negro como simples vítima do passado escravista, retirando desses sujeitos a sua autonomia histórica.  Essa leitura, compartilhada por muitos, passou a ser objeto de crítica nos anos 80, a partir da agenda das identidades, provocando inquietude nas ciências humanas. O próprio poder legislativo tentou responder essas questões com leis que obrigam o ensino de África e questões indígenas no ensino básico. A universidade tentou e tenta até hoje responder essa inquietude, dentro dos seus limites (ABREU & MATTOS, 2008).
Não foi o aparecimento de novas fontes que revolucionou a história indígena, mas sim novas perguntas. Por que os chamamos de “índios”? O próprio termo “índio” foi uma tentativa de apagar a história de inúmeros povos que habitavam o território da colônia portuguesa, não diferenciando as mais diferentes nações nativas. Outras categorias, como a de “sertanejo”, surgiram nas regiões ao oeste da costa, englobando indivíduos oriundos da junção entre bandeirantes e povos originais e ocultando o lado indígena da questão.
Obras como “Os sertanejos que eu conheci”, apesar de afirmar que sertanejos tem como antepassado os indígenas e que as técnicas transmitidas por eles foram essenciais para a vida no sertão, ainda colocam os nativos em um grau menor de importância e até mesmo de desenvolvimento cognitivo, relacionado a valorização do trabalho braçal e ao culto católico (AUDRIM, 1963).
O reflexo desse apagamento gerado pela sobreposição do sertanejo sobre o indígena pode implicar em problemas para a conexão entre sociedade e academia, principalmente no momento em que a agenda das identidades tem um peso tão relevante. Posto isso, essa pesquisa buscou no ensino médio as imagens construídas sobre índios e sertanejos.
A escolha do ensino médio como objeto de pesquisa parte do artigo III da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Brasileira (LDB 9394/96), em que se afirma ser finalidade do ensino médio “o aprimoramento do educando como pessoa humana, incluindo a formação ética e o desenvolvimento da autonomia intelectual e do pensamento crítico”, algo que só pode ser obtido através do conhecimento acerca dos processos históricos de formação da sociedade contemporânea.

REVISÃO DE LITERATURA
A imagem do índio, ao longo da história brasileira, se mostrou intimamente ligada ao nacionalismo, quando este se volta para as populações originais afim de resgatar um passado idílico, em que haveria existido um “índio ideal”, representante puro da brasilidade. Em contrapartida, o “índio real” acabou representando um grave problema para essas interpretações nacionalistas, originando “o ‘problema do índio’ [...] sob a ideia moderna de uma nação étnica e culturalmente homogênea” (MATTOS, 2011).
Sendo assim, essa imagem do índio localizava-se sempre entre dois extremos, na maior parte das vezes, um ideal e um que precisava ser combatido: Tupi-Tapuia durante a colonização, manso-bravo durante os séculos XVIII e XIX e resistente-aculturado do século XX, com repercussão até a atualidade, principalmente no discurso leigo. Hoje, como já citado anteriormente, a discussão acadêmica circunda a agenda das identidades. Todavia, o discurso acadêmico encontra dificuldades em alcançar um público mais amplo, mantendo em muitos casos o debate leigo desatualizado (MATTOS, 2011).
Darcy Ribeiro é sintomático em demonstrar esse “debate desatualizado”, ao mesmo tempo que reconhece alguma autonomia nos povos originais acrescenta a eles algum grau de aculturação. De acordo com o autor, em “O Brasil como problema”:
“A maioria dos povos indígenas se acha integrada na sociedade nacional que os envolve e submetida ao seu sistema de dominação política, que não os incorpora à brasilidade, nem os assimila à cultura e à etnia brasileiras. [...] A grande novidade do estudo que fiz na década de 1950 para a Unesco foi mostrar que não há nenhuma assimilação indígena. Esperava-se de mim que mostrasse que as relações dos índios com os não índios no Brasil constituíam um padrão de democracia racial. Tal se supunha que ocorresse, também, com os negros. Nossa pesquisa mostrou que, em nenhum lugar, nenhuma comunidade indígena se converteu, jamais, numa comunidade brasileira. Cada grupo indígena permaneceu com sua identificação étnica, por mais aculturado que chegasse a ser” (RIBEIRO, 2015).

Esse trecho traz dois eixos de pensamento que coexistiram: a aculturação e a negação dela. De qualquer forma, até hoje essa “possibilidade de deixar de ser índio” ainda não foi de toda abandonada, e é reforçada por discursos, inclusive políticos, que negam a resistência dos povos originais.
A imagem do sertanejo, no caso goiano, também se encontra entre polos: um polo negativo de violência e fundamentalismo religioso, apresentado por Leolinda Daltro; e outro positivo de resistência e astúcia, apresentado por Frei Audrim. Talvez as obras mais marcantes na definição do sertanejo tenham sido “O sertanejo” de José de Alencar e “Os Sertões” de Euclides da Cunha (DALTRO, 1920; AUDRIM, 1963).
Na antropologia, Darcy Ribeiro ilustra o sertanejo alvo desse trabalho. Algo entre o “Brasil Sertanejo” e o “Brasil Caipira” do livro “O povo brasileiro”. O sertanejo que nos ocupa não é aquele sujeito assolado pela seca, muito pelo contrário: está na beira dos rios Araguaia e Tocantins, mas conserva a mentalidade coronelística e algo da rusticidade (RIBEIRO, 1995).
No século XX já não é apenas branco, mas uma mistura entre os diferentes povos que ocuparam a região, em concordância com Frei Audrim, que tem os sertanejos como uma mistura entre negros, índios e brancos, conservando muitos aspectos dos indígenas por manterem contato frequente. Todavia, o título “sertanejo” acaba por afastar a matriz indígena que possibilitou a sobrevivência no “inferno verde” (AUDRIM, 1963).
Há quem reivindique a bandeira sertaneja como pauta regional e traço forte da cultura local. As composições musicais por vezes reclamam o passado sertanejo em tom saudosista, como é nítido, por exemplo, em:
Vivendo aqui no mato (Trio Parada Dura, 2017): Não troco seu despertador; Pelo cantar do galo; Não troco seu carro bonito; Pelo meu cavalo; Não troco seu ar poluído; Pelo pó da estrada; Aqui não tem trânsito; Só tem boiada; Nossa céu é limpo; E a noite, enluarada; Aqui, o nosso alimento; É a gente que faz; Plantamos de tudo pro gasto; E um pouco mais.

A partir das colocações acima, buscou-se conhecer qual a imagem tanto do indígena como do sertanejo que estão sendo construídas hoje, por jovens que cursam o ensino médio e provavelmente ocuparão as cadeiras da academia nos próximos anos.

METODOLOGIA
Foram realizadas entrevistas presenciais com alunos de ensino médio público no dia 18 de outubro de 2019. As entrevistas ocorreram em grupo, tendo dois momentos distintos: o primeiro na parte da manhã com um grupo de sete alunos e o entrevistador e o segundo, no período vespertino, contando com seis alunos e o entrevistador. A participação foi voluntária e se deu de forma espontânea.
Em uma sala de aula ampla, bem ventilada, os participantes se organizaram em meia lua, circundado o aparelho gravador de voz. As explanações não seguiram uma ordem pré-definida, ao se sentir confortável qualquer um pôde falar, praticamente sem interrupções.
Foram feitas duas perguntas-chave (que imagem se tem sobre índios; que imagem se tem sobre sertanejos) e a partir delas constituiu-se uma longa conversa de aproximadamente 180 minutos, arquivada em áudio. A pedido dos entrevistados os nomes, idades e a transcrição completa das gravações não foram disponibilizadas.
Os áudios obtidos da gravação das entrevistas foram analisados a luz da historiografia contemporânea, com autores como João Pacheco de Oliveira e Diogo de Carvalho Cabral, e buscou-se identificar traços de apagamento nos discursos dos alunos. 

RESULTADOS & DISCUSSÃO
Se na parte inicial da entrevista a predominância foi de estereótipos a muito construídos, como:
“Pessoas peladas [...] que pintam o corpo [...] gente que vive na floresta [...] descobrimento [...] é a imagem cultural, passada sobre o índio pra gente, desde pequeno. Um estereotipo que se mantem até hoje. Mas isso é uma observação que leva em conta a nossa cultura, porque a gente se veste e quando alguém não está vestido isso nos incomoda.”

Do meio para o fim os entrevistados mostraram uma visão muito atual da questão indígena, com um domínio da agenda das identidades muito bem demarcado:
“Uma das principais culturas nativas do nosso país e um pouco subestimada no nosso século. [...]História indígena não é falada, não é ensinada, não é valorizada. Devia ser.”

Essa visão fica ainda mais clara quando os alunos negam, mesmo que indiretamente, o conceito de aculturação, que dominou o discurso público sobre os indígenas por muito tempo. Ao perguntar se é possível deixar de ser índio a resposta unanime foi não, seguida de justificativas como:
“É como o povo judeu, sabe? Não é porque não estão em Israel que não são judeus.”

“Mesmo usando roupa ou celular continuam sendo índios. Estão evoluindo. [...]Eles ressignificam as coisas para a cultura deles, a cultura muda como a nossa. Cada um tem suas particularidades.”

As falas acima se chocam frontalmente com o discurso de Darcy Ribeiro acerca da aculturação. Dentro do assunto de história indígena, seguiram muito do que João Pacheco Oliveira propõe sobre um processo não de pura submissão, mas de desenvolvimento conjunto e aprendizado mutuo entre brancos e índios:
[Quanto ao processo de catequização] apaga um pouco da cultura deles, mas é uma troca: os índios pegavam um pouco dos europeus e os europeus, um pouco dos índios.”

“Eu coloco, em grau de complexidade, tanto europeus quanto índios no mesmo patamar. Os índios desenvolveram leis, hierarquias, línguas, lutavam em guerras. Coisas que, mesmo diferente dos europeus, tem um grau de complexidade igual.”

Problematizaram até mesmo a questão da existência (ou não) de “mata virgem”, alvo de pesquisa de Diogo Cabral, no texto “O ‘mato’”. Em síntese, como se pode chamar de “mata virgem” algo que vem sendo cultivado e selecionado a milhares de anos? Essa suposta “virgindade” da mata está muito mais ligada a um pensamento europeu de que a civilização se afirmava pelo domínio sobre a natureza que a qualquer aspecto biológico, de natureza rural. A floresta de pé era sinônimo de baixo desenvolvimento, uma interpretação por demais preconceituosa, todavia, muito ligada a uma cosmologia europeia fortalecida com a descoberta do “Novo Mundo” e reforçada com as revoluções industriais. Os comentários seguiram a linha de pensamento desse autor e os alunos saíram em defesa da Amazônia, posto que a entrevista foi realizada no período em que os incêndios na floresta pululavam na mídia convencional:
“Se [mata virgem] significar que nunca foi tocado então não. Os índios plantavam, cuidavam, conheciam pra viver. Como a Amazônia, tem muita coisa que os índios cultivaram, que são benéficas, que a gente só desmata e nem conhece.”

“Tem a questão de inferioridade também, não é? Relacionada com construir coisas, ter dinheiro, lucro, alterar o meio ambiente, derrubar a floresta. Eles tratavam os índios como inferiores porque eles viviam de modo selvagem, na floresta [...]as vezes parecem atrasados porque a gente uniformizou o mundo, o capitalismo uniformizou o mundo, e a vida dos índios não era voltada para isso de gerar capital.”

O sertanejo, ao contrário do que era esperado, é muito pouco conhecido. Não houve referência a qualquer aprendizado com os povos originais. O pouco que foi debatido circundou a imagem euclidiana de miséria camponesa:
“Quando se fala de sertão eu penso no nordeste. [...]O Euclides da Cunha escreve sobre, não é? Do povo pobre, magro, faminto.”

A parte final da conversa se voltou para a discussão de preconceito e políticas públicas contemporâneas, como a demarcação de terras, fazendo críticas ao atual presidente (Jair Messias Bolsonaro):
“As pessoas são muito preconceituosas. Tipo demarcação de terras, é um problema, gera conflito. [...] Olha esse presidente que está aí agora: quer explorar o que não é dele e tirar o pouco que os índios tem. É preconceito, falta de valorização.”

A falta de reconhecimento da matriz cultural indígena brasileira se mostrou um sério problema para os entrevistados, o que fica claro em falas como:
“Até as línguas, tem muitas línguas de matriz indígena no Brasil e a gente não conhece, não é reconhecido por lei.”

Nos primeiros minutos de conversa os entrevistados demonstravam certo desconforto, o que fazia com que as intervenções do entrevistador fossem mais frequentes. O desconforto não durou muito, com exceção à uma participante que se retirou. Os demais participantes, principalmente com a imagem indígena sendo debatida, expuseram diferentes pontos de vista, todavia a premissa de que existiria um apagamento da imagem dos povos originais pela figura do sertanejo estava completamente equivocada. A imagem do sertanejo que os participantes apontaram foi para o lado negativo da imagem euclidiana: “povo pobre, magro e faminto”, sem conexão direta com os índios.
Já quanto a imagem do índio, os participantes contestaram o estereotipo da nudez e da selvageria no momento em que foi apresentado. Flertaram indiretamente com a “fricção interétnica” de João Pacheco de Oliveira, observando a realidade indígena não como uma totalidade fechada, mas como uma relação complexa entre os grupos indígenas e a sua integração com a sociedade brasileira. Um contraponto a aculturação.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
O ponto de partida da pesquisa se mostrou errado, o que não é algo negativo. Muito pelo contrário, prova que há em parte da juventude um interesse e algum domínio dos assuntos de debate recente na academia. Ainda existem pontos que precisam ser trabalhados, como a imagem do sertanejo para além da miséria, porem a explanação de assuntos tão atuais demonstra não só um interesse genuíno, mas também que o “desenvolvimento da autonomia intelectual e do pensamento crítico”, objetivado pela LDB 9394/96, vem sendo alcançado e representa uma fagulha de esperança em uma sociedade flagelada pelo obscurantismo e pelo preconceito.

REFERÊNCIAS
ABREU, Martha & MATTOS, Hebe. Em torno das “Diretrizes curriculares nacionais para a educação das relações étnico-raciais e para o ensino de história e cultura afro-brasileira e africana”: uma conversa com historiadores. Estudos Históricos, Rio de Janeiro, vol. 21, nº 41, janeiro-junho/2008, p. 5-20.

AUDRIM, Frei José M.. Os Sertanejos que eu conheci. Coleção Documentos Brasileiros. Rio de Janeiro: José Olympio Editora, 1963.

CABRAL, Diogo de Carvalho. O “mato”: a mestiçagem e a construção da alteridade florestal. IN.: ________. Na presença da floresta. Mata Atlântica e história colonial. Rio de Janeiro: Garamond, 2014, p. 61-103.

DALTRO, Leolinda. Da catequese dos índios no Brasil. 1920.

LEI Nº 9.394, DE 20 DE DEZEMBRO DE 1996.

MATTOS, Izabel Missagia de. O indigenismo na transição para a república: fundamentos do SPILTN. In: Memória do SPI: textos, imagens e documentos sobre o Serviço de Proteção aos Índios (1910-1967).  Museu do Índio: Funai, 2011.

OLIVEIRA, João Pacheco de. Os indígenas na fundação da colônia: uma abordagem crítica. IN.: FRAGOSO, João & GOUVÊA, Maria de Fátima (orgs.). O Brasil colonial. Vol. 1. 2ª ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2015, p. 167-228.

OLIVEIRA, João Pacheco de. O nascimento do Brasil: revisão de um paradigma historiográfico. IN.: ________. O nascimento do Brasil e outros ensaios: “pacificação”, regime tutelar e formação de alteridades. Rio de Janeiro: Contracapa, 2016, p. 44-74.

RIBEIRO, Darcy. O Brasil como problema. São Paulo, editora Global, 2ª edição, 2015 (1ª edição de 1995), páginas 91-93.

RIBEIRO, Darcy. O povo brasileiro. Curitiba: Companhia das Letras, 1995.

VARNHAGEN, Francisco Adolfo de; LISBOA, João Francisco. Os Indios bravos e o Sr. Lisboa, Timon 3º. pelo autor da "Historia Geral do Brazil" (F. A. de V.) Em parte gora de novo reimpresa. 1867. Disponível em: <http://objdigital.bn.br/objdigital2/acervo_digital/div_obrasraras/or1466183/or1466183.pdf>. Acesso em: 12 out. 2019.




*Discente de Ciências Sociais pela Universidade de Brasília (UnB). Matrícula: 190045809.

Vargas e Golpe de 64

HISTÓRIA SOCIAL E POLÍTICA DO BRASIL - II PROVA
QUESTÃO 03
Em 2018 Ronaldo Caiado foi eleito como governador de Goiás. É médico, formado no exterior, filiado ao partido Democratas, ruralista e um dos fundadores da UDR[1]. O próprio sobrenome já revela muito da personalidade: os Caiado formaram a maior oligarquia de Goiás durante a I República, ascendendo em 1906 e permanecendo no poder até o Golpe de 1930, mas o declínio dessa primeira experiencia republicana começa anos antes de 1930. Talvez os problemas econômicos desencadeados com a I Grande Guerra tenham sido um golpe muito forte para uma economia extremamente dependente de exportações como era o Brasil Republicano, que já se complicava ao menos desde 1906 com a constatação da crise de superprodução do café e o fracasso do Convenio de Taubaté[2]. Talvez o tão aclamado “pacto federativo” não tenha obtido o sucesso esperado, sendo mais benéfico para São Paulo e Minas Gerais que para qualquer outro estado. Ou até mesmo a incapacidade da república de lidar com a parte pública do sistema. Fato é que um golpe ou revolução era eminente por fatores externos e internos (FURTADO, 1998).
O mundo pós I Grande Guerra era contraditório: se por um lado a Europa ainda se ocupava com os problemas gerados pela guerra e pela epidemia de gripe espanhola, por outro os Estados Unidos vivenciavam um crescimento cavalar regado a bebida dos gangsters, até 1929. Foram anos de expansão dos direitos, principalmente para as mulheres, mas também foram anos de xenofobia e perseguição a imigrantes – a exemplo do crescimento do número de adeptos da Ku Klux Klan[3]. O jazz começou a fazer sucesso nos EUA, as produções cinemáticas aumentaram, e a juventude tornou-se cada vez mais alienada. Já chegando no oriente, a Rússia estava em erupção: o estado fraco e falido criado pós queda do tsarismo assistiu a ascensão golpista de Lenin. A fundação da URSS[4] mudou o mundo e consolidou-se como grande potência depois da Grande Depressão[5], pela qual passou intacta com a sua economia planificada. A América Latina vivenciou um serie de revoluções anti-imperialistas - influenciadas pela Crise de 29 e a depressão economia que se seguiu - e a maioria dos governos alinharam-se ao espectro socialista. Em suma: é um período de efervescência mundial de ideias.
O Brasil desse período não é diferente: é um período de convulsão política, em que pautas sociais e culturais ganhavam cada vez mais peso. Em meados da década de 20 ocorreu a primeira grande greve, as cidades passavam por um crescimento populacional vertiginoso, o Partido Comunista Brasileiro foi fundado, os primeiros industriais começavam a ter voz dentro da política nacional – entrando em choque com os interesses da oligarquia cafeeira. Em 1922 o tenentismo ganhou força e a Semana de Arte Moderna buscou construir uma representação do país, abandonando o academicismo e o tradicionalismo tão cultuados por uma elite decadente. A república brasileira viu-se transbordando de povo.
Se a política dos governadores[6] terceirizava os problemas regionais e transmitia uma imagem de tranquilidade, internamente a política era extremamente conturbada. Havia um foço cada vez mais profundo entre estados de primeiro plano (São Paulo e Minas Gerais) e estados de segundo plano (o restante do país), corroendo aos poucos a estabilidade garantida por Campos Sales. A desproporcionalidade de poderes não era só de nível político federal, atingia também boa parte da população que se via a margem do sistema jurídico, com uma agenda social ignorada pela república. (RESENDE, 2010).
Em 1930 os candidatos das oligarquias cafeeiras foram eleitos, como já era de se esperar. As eleições foram contestas, algo frequente que raramente obtinha sucesso posto que as fraudes eram comuns. A agenda da Aliança Liberal não era menos elitista que a das oligarquias cafeeira, o problema foi que o vice de Getúlio Vargas, João Pessoa, acabou assassinado. Hoje se sabe que o motivo do assassinato foi passional, mas no período em questão João Pessoa se tornou um mártir e o estopim do Movimento de 1930. Em 3 de outubro de 1930 a revolução estoura em Minas Gerais e Rio Grande do Sul espalhando-se com velocidade pelo restante do país, com o apoio popular exemplificado por greves e ocupação de prédios públicos. Os militares do sul preparavam a invasão final a São Paulo, mas antes que houvesse derramamento de sangue o presidente foi deposto. Membros do exército e da marinha compuseram uma Junta Provisória de governo. Apesar das tentativas de se manter no poder, a Junta cedeu à pressão popular e revolucionária. Getúlio partiu de trem para São Paulo, findando sua viagem no Rio de Janeiro, sendo empossado em 3 de novembro daquele ano (FAUSTO, 2018).
Apesar das diversas interpretações do Golpe, Revolução ou Movimento de 1930, esse se caracteriza por rupturas e continuidades: se por um lado antigos oligarcas continuam no poder, o movimento não é capitaneado só por oligarcas, mas também por muitos outros eixos políticos a exemplo de tenentes, classe média e operários, unidos por uma agenda anti-oligarca. Feita a revolução, essa diversidade de cabeças criou um empecilho para os próximos passos da política federal. Para evitar mudanças radicais instaurou-se um “Estado de compromisso”:
“[...]o que se observa no pós-30 é um reajuste nas relações internas dos setores dominantes. O Estado de compromisso, nesse sentido, nada mais é do que um Estado que se abre a todas as pressões sem se subordinar necessariamente a nenhuma delas. Suas principais características são uma maior centralização, [...] ampliação do intervencionismo, [...] além do estabelecimento de certa racionalização na utilização de algumas fontes fundamentais de riqueza pelo capitalismo internacional” (FERREIRA & PINTO, 2010, p.410).

As conquistas dos primeiros anos do período Vargas foram variadas, circundando principalmente a esfera social com a Constituição de 1934. No mesmo ano, Vargas é eleito indiretamente presidente da República. Pululavam partidos políticos representantes dos mais diversos eixos de pensamento, com presença inclusive de fascistas na Ação Integralista Brasileira. Getúlio estava cada vez mais confortável com o apoio das Forças Armadas e da sociedade, com o pacto construído entorno da burguesia e dos trabalhadores, o que permitia medidas cada vez mais autoritárias (FAUSTO, 2018).
O último golpe ao suposto regime democrático que se inaugurava foi desferido em 1937 com o Plano Cohen, uma suposta insurreição comunista que possibilitou, em 10 de novembro do mesmo ano, a implantação da ditadura nomeada “Estado Novo”. Vargas acumulou mais poderes que os antigos imperadores, todavia a ditadura não representou um rompimento total, pelo contrário: aumentou o ritmo em que as mudanças modernizantes promovidas por Getúlio que desde 1930 vinham sendo implantadas, em especial a industrialização tendo o Estado como protagonista, transformando o papel das elites – antes agroexportadoras, agora empresárias.
Uma das características mais marcantes do período Vargas foi a refundação da relação capital-trabalho sob proteção do Estado para obter pacificação social, que Ângela de Castro Gomes chama de “trabalhismo”. A máquina de propaganda estatal assumiu o papel de propagação das ideias do governo central, apresentando a legislação trabalhista ao povo, partindo do pressuposto de uma ignorância popular e de que a legislação trabalhista não foi fruto de lutas sociais, mas era um presente do executivo aos trabalhadores. Criou-se até mesmo um calendário comemorativo festejando o Dia do Trabalho e o aniversário de Vargas. Dessa forma, Getúlio construiu uma imagem de líder carismático, criando uma mitologia entorno do Estado Novo, do presidente e do trabalho, em última instancia: a ilusão de um estado capaz de antecipar convulsões sociais e impedi-las com concessões (GOMES, 2005).
O Brasil inseriu-se no capitalismo global com o desenvolvimentismo nacional, seguindo uma tendência mundial corporativista, em que os sindicatos se tornaram cada vez mais fortes. No contexto nacional o sindicalismo autônomo foi marginalizado: os sindicatos deveriam estar ligados ao Ministério do Trabalho, que cuidava também da pasta de cidadania. Era o trabalho que fazia do indivíduo brasileiro. Daqui surgiu a afirmação de que o bom brasileiro é bom trabalhador, incluindo não só a ponta da produção, mas até mesmo os donos dos meios de produção. Por muito tempo a cultura predominante era a do “não trabalho” como sucesso na vida profissional, com Vargas isso se esvai: o trabalho passou a engrandecer o homem, a caracterizar o povo brasileiro, junto a mestiçagem de Gilberto Freyre.
O desenvolvimentismo enquanto pauta econômica se baseou na substituição de importações com o fortalecimento das indústrias de base. O parque industrial brasileiro aumentou com a construção de polos estatais e centros de pesquisa, destacando-se a Companhia Siderúrgica Nacional (1940), a Companhia Vale do Rio Doce (1942), a Fábrica Nacional de Motores (1943) e a Hidrelétrica do Vale do São Francisco (1945). Ampliaram-se a possibilidade de emprego, a renda média da população e as garantias legislativas relativas ao trabalho. Quanto a essa última questão, a CLT[7] decretada em 1 de março de 1943 é emblemática cumprindo não só o papel legislativo, mas também de repressão:
(Vargas) criou as leis de proteção ao trabalhador – jornada de oito horas, regulação do trabalho da mulher e do menor; lei de férias, instituição da carteira de trabalho e do direito a pensões e à aposentadoria. Na outra, reprimiu qualquer esforço de organização dos trabalhadores fora do controle do Estado – sufocou, com particular violência, a atuação dos comunistas. Para completar, liquidou com o sindicalismo autônomo, enquadrou os sindicatos como órgãos de colaboração com o Estado e excluiu o acesso dos trabalhadores rurais aos benefícios da legislação protetora do trabalho” (SCHAWRCZ & STARLING, 2015, p.322-362).

A II Grande Guerra impactou na política brasileira: as Leis Trabalhistas foram inspiradas na Carta del Lavoro, de Benito Mussolini; a Alemanha Nazista fez doações as universidades brasileiras, como o laboratório de Engenharia Civil da Universidade Federal de Goiás e entrou nas negociações pela construção da Companhia Siderúrgica Nacional. Vargas foi um ditador que prezava pelo corporativismo e perseguiu opositores e indesejados – vide criação dos sanatórios regionais - como Mussolini e Hitler, mas apoiou os Aliados. O fascismo varguista acabou sendo maquiado pelo trabalhismo e pela mestiçagem e a derrota da Alemanha Nazista se confundiu com a derrota dos fascismos, tapando essa ideologia no restante do mundo (CARNEIRO, 2010).
Apesar de tudo, o legado varguista não pode ser desprezado pela política brasileira por ser muito vasto e positivo, incluindo pontos que não foram abordados no texto. Ignorar o trabalhismo, a CLT, a fundamentação da justiça eleitoral, o investimento na educação pública, a campanha pelo petróleo e o desenvolvimento industrial, é retroceder.

REFERENCIAS
Brasil Escola. Portal UOL. Disponível em: <https://brasilescola.uol.com.br/>.

CARNEIRO, Maria Luiza Tucci. “Fascistas à brasileira – encontros e confrontos”. In: CARNEIRO, Maria Luiza Tucci (et.al.). Tempos de fascismos: Ideologia, Intolerância, Imaginário. São Paulo: Edusp, 2010.

CPDOC. Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil. Escola de Ciências Sociais da Fundação Getúlio Vargas.

FAUSTO, Boris. História Concisa do Brasil. Ed. USP, 2018.

FERREIRA, Marieta de Moraes & PINTO, Surama Conde Sá. A crise dos anos 1920 e a Revolução de 1930. IN.: FERREIRA, Jorge & DELGADO, Lucília de Almeida Neves (orgs.). O Brasil Republicano: do tempo do liberalismo excludente – Da proclamação da República à Revolução de 1930. 4ª ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2010, p. 387-415.

FURTADO, Celso. Formação Econômica do Brasil. Ed. Nacional, 1998.

GOMES, Angela de Castro. A invenção do trabalhismo; Trabalhismo e corporativismo. IN.: ________. A invenção do trabalhismo. 3ª ed. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2005, p. 211-264.

RESENDE, Maria Efigênia Lage de. O processo político na Primeira República e o liberalismo oligárquico. IN.: FERREIRA, Jorge & DELGADO, Lucília de Almeida Neves (orgs.). O Brasil Republicano: do tempo do liberalismo excludente – Da proclamação da República à Revolução de 1930. 4ª ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2010, p. 89-120.

SCHAWRCZ, Lilia M. e STARLING, Heloisa M. Brasil: Uma Biografia. São Paulo: Companhia das Letras, 2015. p. 322. p. 362.





QUESTÃO 04
No dia 19 de novembro de 2019, na reunião anual da UNESCO[8], em Paris, o secretário de cultura nomeado por Jair Messias Bolsonaro, Roberto Alvim, ao lado de ministros da cultura de todo o mundo fez a seguinte afirmação:
"A arte brasileira transformou-se em um meio para escravizar a mentalidade do povo em nome de um violento projeto de poder esquerdista.[...] Nas últimas duas décadas, a arte e a cultura brasileira foram reduzidas a meros veículos de propaganda ideológica, de palanque político, de propagação de uma agenda progressista avessa às bases de nossa civilização e às aspirações da maioria do nosso povo” (CHADE, 2019).

Tal fala pode nos arremeter a ideia de hegemonia cultural de esquerda, já debatida por Roberto Schwarz e Marcelo Ridente no contexto de Ditadura Militar. Quem dera essa fosse a única fala que rememorasse aqueles 21 anos sangrentos: o presidente, seus filhos e aliados políticos, insistem em positivar a Ditadura, elogiam torturadores, pregam um comunismo crescente no país, e, mais recentemente, projetam um “novo AI-5” caso a população vá as ruas.
Jair Messias Bolsonaro fala em 2019 como se vivêssemos na década de 60, em que o contexto mundial era de Guerra Fria. O mundo estava rachado: de um lado o Primeiro Mundo, encabeçado pelos Estados Unidos, de outro o Segundo Mundo, liderado pela União das Repúblicas Socialistas Soviéticas. A Revolução Cubana ecoava em todo a América Latina, os capitais estadunidenses estavam voltados principalmente para a Europa, afim de cercear o crescimento da influência soviética, o que não impedia a intervenção sobre os latinos, com o que ficou conhecido como Aliança para o Progresso[9]. Todavia a mesma década é marcada mundialmente por um crescimento dos ideais libertários com a profusão da cultura pop e da contracultura, marcados pela
“[...] inserção numa conjuntura internacional de prosperidade econômica; crise no sistema escolar; ascensão da ética da revolta e da revolução;  busca do alargamento dos sistemas de participação política, cada vez mais desacreditados; simpatia pelas propostas revolucionárias alternativas ao marxismo soviético; recusa de guerras coloniais ou imperialistas; negação da sociedade de consumo; aproximação entre arte e política; uso de recursos  de desobediência civil; ânsia de libertação pessoal  das estruturas do sistema (capitalista ou comunista); mudanças comportamentais; vinculação estreita entre lutas sociais amplas e interesses imediatos  das pessoas; aparecimento de aspectos precursores do pacifismo, da ecologia, da antipsiquiatria, do feminismo, do movimentos de homossexuais, de minorias étnicas e outros [...]” (RIDENTE, 2003, p.153).

Esses ideais assustavam uma elite conservadora e, a partir de 1954 na Nicarágua e no Paraguai, uma serie de governos à esquerda caíram para golpes militares apoiados pelos EUA.
O caso brasileiro não é diferente. Desde o governo JK o país vivenciava tentativas de golpes. Jânio Quadros tentou um autogolpe, descrito por ele mesmo no livro sobre sua vida, fracassado pela “incompetência dos militares”. Quem assumiu com a renúncia de JQ, foi João Goulart, apoiado por militares, pelos políticos de centro e pelas esquerdas em um regime parlamentarista. Jango assumiu um Brasil industrializado, mas herdou a crise economia de JK que desenvolveu a indústria de bens de consumo as custas de uma inflação elevada e dívida externa alta, que inviabilizava investimentos públicos, promovendo sucateamento da máquina estatal acompanhada de uma população urbana crescente, atraída do campo para a cidade pelos empregos nas fábricas, fazendo o custo de vida crescer. A oposição era feita pela União Democrática Nacional, contando com lideranças na Guanabara, em Minas Gerais e São Paulo, um forte eixo econômico e militar. Os poderes de JG no parlamentarismo eram restritos bem como espaço para negociações, que diminuía cada vez mais posto que no sul no país deu-se início a estatização de empresas norte-americanas, algo complicado de se explicar em um contexto de Guerra Fria. Em 1963, com o acirramento da política externa independente e a dificuldade de aprovação do Plano Trienal[10], os EUA igualaram trabalhistas e comunistas, afirmando ao mundo que o Brasil não era confiável, inviabilizando capitais externos.
Do ponto de vista cultural urbano, elaborou-se uma crítica a matriz capitalista em que “[...] buscava-se no passado uma cultura popular autêntica para construir uma nova nação, ao mesmo tempo moderna e desalienada, no limite, socialista”. A urbanização acompanhada de avanços tecnológicos e crescimento no acesso à educação explicavam as “ondas românticas de rebeldia e revolução”, buscando raízes brasileiras e a libertação do subdesenvolvimento. A esse movimento deu-se o nome de “romantismo revolucionário brasileiro” (RIDENTE, 2003, p.136).
No campo, a “libertação” do trabalhador rural, ou seja, a ruptura do pacto paternalista que retirou das pessoas a sua condição de sobrevivência, tornou a situação insustentável, como bem ilustra a música de Augusto Boal e Geny Marcondes (1961), "Zé da Silva é um homem livre":
“Passo a vida trabalhando; Dando duro no batente; A comer de vez em quando; Isso é vida minha gente‎; Se ser livre é passar fome; Não basta ser livre, não; Pro’ patrão pedi aumento; Só levei um pontapé; Sem comida e sem vintém; E agora, sêo’ José?‎; Se ser livre á passar tome; Não basta ser livre, não; No xadrez não me quiseram; Posse fome lá pra fora; se estou livre, estou faminto; Com a barriga dando hora.‎; Sem comida a liberdade; É mentira. não é verdade; Zé da Silva é um homem livre; O que, o que, o que‎; Zé da Silva é um homem livre‎;O que ele vai fazer?‎;O que?‎; Livre é livre, é livre.‎;Livre, livre, livre; É livre!‎; Aqui! Que eu sou livre.”.
A população camponesa organizou-se em grupos conhecidos por Ligas Camponesas e, posteriormente, em sindicatos que passaram a engrossar o caldo heterogêneo das esquerdas. As diversas pautas, urbanas e camponesas, de reinvindicação de direitos e acesso à terra acabaram reunidas em um pacote que ficou conhecido como Reformas de Base. O apoio a essas reformas era imenso e converteu-se em apoio a Jango, que “se elegeu presidente” com 82% dos votos pelo plebiscito sobre a forma de governo de 1963.
Pós retorno do presidencialismo, JG tentou pactuar com o centro afim de aprovar as tais Reformas de Base. Os quadros administrativos do governo foram os melhores que o Brasil já conheceu: Darcy Ribeiro e Paulo Freire na Educação, Celso Furtado no Planejamento, Ulysses Guimarães na Indústria e Comércio, Santiago Dantas nas Relações Exteriores, entre outros. A questão foi que havia um entrave legislativo a Reforma Agrária, principal pauta das Reformas de Base. Apesar das tentativas de conciliação, a mudança na legislação tornou-se inviável e as negociações quanto ao Plano Trienal corroíam o apoio de Jango entre as esquerdas, sua base social.
Inviabilizada as reformas pelos entraves legislativos, João Goulart, afim de conservar o apoio que tinha entre as camadas populares, firma seu compromisso com as esquerdas no Comício da Central do Brasil, em 13 de março de 1964. Com uma plateia de aproximadamente 300 mil pessoas, Jango afirmou que as reformas seriam feitas. Naquele momento JG pareceu intocável, a ponto de baixar no mesmo dia o Decreto da Reforma Agrária[11] (Decreto nº 53.700) e o Decreto do Aluguel[12] (Decreto nº 53.702) no dia seguinte. As promessas assustaram a elite conservadora que ainda não conspiravam. Leonel Brizola afirmou que o país só daria certo com o fechamento do congresso. As propagandas anti-comunistas eram produzidas a todo vapor. As relações com os EUA já estavam abaladas. O clima de radicalização alcançou o ponto máximo. Um golpe, ou pela esquerda ou pela direita, era eminente.
Em 31 de março de 1964, partem de Minas Gerais tropas golpistas. Haviam militares ainda alinhados a João Goulart. Era o presidente o único capaz de puxar uma resistência, mas não o fez. A ideia de que Jango não tinha pulso firme ou tato político para governar, hoje já não é aceita. Também não é hegemônico a afirmação de que JG não teria como resistir, pois, além de contar ainda com o apoio do exército do sul:
“Pesquisas feitas pelo Ibope às vésperas do golpe de 31 de março de 1964 mostram que o então presidente da República, João Goulart, deposto pelos militares, tinha amplo apoio popular. Doadas à Universidade de Campinas (Unicamp) em 2003, as sondagens não foram reveladas à época. Pelos números levantados, Jango, como Goulart também era conhecido, ganharia as eleições do ano seguinte se elas tivessem ocorrido. Entrevistas realizadas na cidade de São Paulo na semana anterior ao golpe mostravam que quase 70% da população aprovavam as medidas do governo” (Portal da Câmara).

Talvez a esquadra estadunidense na Bahia da Guanabara tenha sido o elemento de desestruturação fatal do governo. Caso os militares golpistas falhassem, os EUA interveriam. Mais do que um golpe contra João Goulart, 1 de abril foi um golpe consensual contra as esquerdas que se viam pela primeira vez apoiadas por um presidente e com espaço garantido na discussão política legal. Não só a UDN com tradição golpista participou, mas o próprio centro de JK, bem como parte da população civil que havia expressado sua insatisfação na Marcha da Família com Deus pela Liberdade[13] (FERREIRA, 2003).
O contraditório é que em meio a um regime autoritário a cultura de esquerda ganhou espaço:
"[...] apesar da ditadura da direita há(havia) relativa hegemonia cultural de esquerda no país. Pode(podia) ser vista nas livrarias de São Paulo e Rio, cheias de marxismo, nas estréias teatrais, incrivelmente festivas e febris, às vezes ameaçadas de invasão policial, na movimentação estudantil ou nas proclamações do clero avançado. Em suma, nos santuários da cultura burguesa a esquerda dá(dava) o tom. Esta anomalia – que agora periclita, quando a ditadura decretou penas pesadíssimas para a propaganda do socialismo – é o traço mais visível do panorama cultural brasileiro entre 1964 e 1969" (SCHWARZ,1978, p.62).

Interpreto “esta anomalia” como uma das várias formas de resistência popular fortalecida pelo endurecimento do regime e um desenvolvimentismo cada vez mais excludente, atingindo todas as camadas populares. Talvez esse ganho de espaço da cultura da esquerda também tenha se dado, em parte, por uma ignorância (ausência de inteligência) dos responsáveis pela censura, como fica claro pela música “A Mosca” de Raul Seixas que não foi censurada e faz clara alusão a esses produtores de cultura que perturbam a ordem ditatorial. Dentre os vários polos culturais de resistência, o tropicalismo destacou-se:
"[...] entre 1967 e 1969, surgiu uma nova resposta em relação às demandas artísticas e culturais que ficou conhecida como “movimento” Tropicalista; trazia consigo todo um conjunto de referenciais antagônicos, paradoxais da política e da estética, tematizava elementos de ruptura, a incorporação e a inovação relacionadas às propostas culturais consagradas, até então, pelo paradigma do nacionalismo de esquerda" (MALINI, 2018, p.169).

Esses movimentos artísticos devem nos servir enquanto acadêmicos como inspiração, posto que a Ditadura Militar é a inspiração de quem preside o país. Enquanto estudantes de ciências humanas é nosso papel ser a mosca que pousa na sopa, que perturba o sono, e, como o restante da América Latina cabe a nós gritar pelas ruas que é proibido proibir.

REFERENCIAS
CHADE, Jamil. Secretário diz na Unesco que arte brasileira servia a "projeto absolutista". Portal UOL, 2019. Disponível em: <https://noticias.uol.com.br/colunas/jamil-chade/2019/11/20/secretario-diz-na-unesco-que-arte-brasileira-servia-a-projeto-absolutista.htm>.

CPDOC. Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil. Escola de Ciências Sociais da Fundação Getúlio Vargas.

FERREIRA, Jorge. O governo Goulart e o golpe civil-militar de 1964. IN.: FERREIRA, Jorge & DELGADO, Lucília de Almeida Neves (orgs.). O Brasil Republicano. O tempo da experiência democrática – da democratização de 1945 ao golpe civil-militar de 1964. Livro 3. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003, 343-404.

Legislação Informatizada - Decreto nº 53.700, de 13 de Março de 1964 - Publicação Original

Legislação Informatizada - Decreto nº 53.702, de 14 de Março de 1964 - Publicação Original

MILANI, Vinicius. Tropicalismo, nacionalismo e contracultura: as afinidades entre a canção e o teatro tropicalistas (1966-1969). IN: Rev. Sociologias Plurais, v. 4, número especial 3, p.168-186, nov. 2018.

Portal da Câmara dos Deputados. Jango tinha 70% de aprovação às vésperas do golpe de 64, aponta pesquisa. 2014. Disponível em: <https://www.camara.leg.br/noticias/429807-jango-tinha-70-de-aprovacao-as-vesperas-do-golpe-de-64-aponta-pesquisa/>.

RIDENTI, Marcelo. Cultura e política: os anos 1960-1970 e sua herança. IN.: FERREIRA, Jorge & DELGADO, Lucília de Almeida Neves (Orgs.). O Brasil Republicano. Vol. 4. O tempo da Ditadura. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003, p. 135-166.

SCHWARZ, Roberto. “Cultura e política, 1964-1969”. In: O pai de família e outros estudos. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1978.



[1] União Democrática Ruralista (UDR): Associação civil criada em maio de 1985 por grandes proprietários de terras, com a finalidade de defender a propriedade privada e como expressão da radicalização patronal rural contra a política agrária promovida pelo governo federal no começo da administração do presidente José Sarney (CPDOC).
[2] O Convênio de Taubaté foi um encontro realizado em 1906 pelos governadores dos estados de São Paulo, Minas Gerais e Rio de Janeiro, na cidade paulista de Taubaté, com o objetivo de encontrarem uma política estatal para garantir a rentabilidade da cafeicultura brasileira (Brasil Escola).
[3] A Ku Klux Klan é uma organização terrorista formada por supremacistas brancos que surgiu nos Estados Unidos depois da Guerra Civil Americana com o intuito de perseguir e promover ataques contra afro-americanos e defensores dos direitos desse grupo. Ficaram conhecidos por suas vestimentas peculiares e por promoverem o espancamento de pessoas. O grupo chegou a possuir quatro milhões de membros na década de 1920 e existe até hoje, mas bastante enfraquecido (Brasil Escola).
[4] União das Repúblicas Socialistas Soviéticas ou simplesmente União Soviética, foi um Estado socialista localizado na Eurásia que existiu entre 1922 e 1991.
[5] A Crise de 1929, também conhecida como Grande Depressão, foi uma forte recessão econômica que atingiu o capitalismo internacional no final da década de 1920. Marcou a decadência do liberalismo econômico, naquele momento, e teve como causas a superprodução e especulação financeira (Brasil Escola).
[6] Nome com que ficou conhecido o arranjo político promovido pelo presidente Campos Sales (1898-1902) e os governadores e presidentes estaduais com o objetivo de superar as incertezas políticas que marcaram os primeiros governos da República (CPDOC).
[7] Consolidação das Leis do Trabalho.
[8] Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura.
[9] Programa de assistência ao desenvolvimento socioeconômico da América Latina formalizado quando os Estados Unidos e 22 outras nações do hemisfério, entre elas o Brasil, assinaram a Carta de Punta del Este em agosto de 1961. De acordo com o documento, os países latino-americanos deveriam traçar planos de desenvolvimento e garantir a maior parte dos custos dos programas, cabendo aos EUA o restante (CPDOC).
[10] Elaborado pela equipe chefiada pelo ministro extraordinário do Planejamento, o economista Celso Furtado, o Plano Trienal de Desenvolvimento Econômico e Social procurou estabelecer regras e instrumentos rígidos para o controle do déficit público e refreamento do crescimento inflacionário (CPDOC).
[11] Declara de interesse social para fins de desapropriação as áreas rurais que ladeiam os eixos rodoviários federais, os leitos das ferrovias nacionais, e as terras beneficiadas ou recuperadas por investimentos exclusivos da União em obras de irrigação, drenagem e açudagem, atualmente inexploradas ou exploradas contrariamente à função social da propriedade, e dá outras providências (Decreto nº 53.700).
[12] Ficam tabelados os aluguéis de imóveis e respectivo mobiliário em todo o território nacional, que se acham atualmente desocupados ou que vierem a vagar (Decreto nº 53.702).
[13] Movimento surgido em março de 1964 e que consistiu numa série de manifestações, ou "marchas", organizadas principalmente por setores do clero e por entidades femininas em resposta ao comício realizado no Rio de Janeiro em 13 de março de 1964, durante o qual o presidente João Goulart anunciou seu programa de reformas de base. Congregou segmentos da classe média, temerosos do "perigo comunista" e favoráveis à deposição do presidente da República (CPDOC).

Carta sobre GTAQ

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