quinta-feira, 13 de abril de 2023

Títulos de terra entre imagem, magia e imaginação: ensaio sobre as formas de ver a propriedade da terra

 Títulos de terra entre imagem, magia e imaginação: ensaio sobre as formas de ver a propriedade da terra


Francisco Octávio Bittencourt de Sousa


Nesse ensaio curto apresento uma tentativa de analisar um conflito entre sistemas de propriedade a partir da Antropologia Visual; mais especificamente, a partir do diálogo com Sylvia Caiuby Moraes no texto “Imagem, magia e imaginação: desafios ao texto antropológico” (2008). Falo do lugar de estudante branco, residente em Brasília, com alguma experiência de campo.

Partindo de Moraes, retorno aos materiais coletados em estudo de campo que realizei junto a Comunidade Kalunga de Goiás, em Cavalcante, expondo formas de ver - em suas várias acepções - parte do imóvel Bonito que compõe o SHPCK. Tentando traduzir em palavras o que vi da vida dos membros da comunidade, concluo esse escrito propondo mais uma forma de pensar o conflito cosmológico entre sociedades ocidentais e não-ocidentais.

A escolha pelo texto de Moraes se deu, primeiramente, por um encontro de referencial teórico. A autora traz alguns autores com os quais já trabalho na pesquisa, a exemplo de Mauss e Gell. Além disso, ela toca em pontos importantes para o quebra-cabeças teórico que estou tentando montar: pensar os títulos de terra também como imagens. Logo no primeiro parágrafo de seu texto, há a seguinte citação "Lemos um texto, olhamos uma imagem. De modos muito diversos ambos comunicam. Tanto as palavras e as frases que lemos em um texto, quanto as formas e as cores que vemos na imagem expressam algo sobre o mundo." (2008:455). 

A necessidade de pensar os títulos como imagens surgiu de uma releitura da monografia, ao perceber que toda a análise dos títulos que apresentei exigia a habilidade da leitura. A maior parte dos meus interlocutores não dominam a “letra”; logo, por mais que eu descrevesse o que deveria ser visto/lido em um papel, não alcançaria o resultado que esperava (que era permitir que eles próprios analisassem os títulos que lhes eram apresentados por invasores cotidianamente).

Em diálogo com uma das interlocutoras, D. Dulce, que teve seu sítio invadido, foi que percebi que mesmo sem a habilidade da leitura, os moradores já haviam desenvolvido formas próprias de analisar os títulos que transcendiam o papel. É aqui que surge o embate cosmológico: para além de identificar características próprias de um título que não carecem do domínio da leitura (a presença de uma assinatura, do carimbo do cartório etc.), a análise de propriedade dos Kalunga parece baseada na construção de relações locais. É preciso ser visto em interação com a comunidade, participando das atividades cotidianas, tendo antepassados que também eram vistos participando dessa vida em comunidade; algo que não é passível de forja, como os títulos e outros registros ocidentais. 

Depois de acionar essa chave de pensamento, voltei ao meu material de pesquisa e fui procurar as representações feitas do imóvel Bonito, um dos imóveis localizados dentro do SHPCK que está sendo invadido. O que percebi foi uma hierarquia clara entre tipos de representação em uma lógica perversa de colonização, onde o colonizador cria o documento e a exigência de obtenção dentro de regras próprias de sua cosmologia. 

A discussão de propriedade nesses termos cria uma própria temporalidade: a imagem de “maior valor” é a mais antiga dentro desse sistema de propriedade criado. No caso em questão, os Registros Paroquiais referentes ao imóvel Bonito orbitam a essa primeira casta de representação estabelecida pelas regras jurídicas ocidentais. Trago aqui a transcrição completa de um desses registros: 

Certidão/Registro Paroquial n° 95: Oa baixo assignado dá ao Registro nesta Freguesia as terras que possue como abaixo se declara. No lugar denominado = Bonito a deseseis leguas da matris, uma legõa de terras mais, ou menos compradas a Joaquim Alz. da Rocha; e são seos limites= passagem do Chumbado, estrada Velha te o Prata, esta abaixo abarra doriacho da vereda escura, epelo parte do Nascente com as de minha May Dona Joaquina Martinha de Sousa. No mesmo lugar, mais meia legoa de terras mais ou menos compradas a Archanja na beira do corrente com os limites seguintes = barra do Ticym assima the o atoleiro; em rumo direito a pedra preta, d'esta ao corrente, por este abaixo the o Paranã Villa de Cavalcante 4 de Janeiro de 1858. 


Aqui poderíamos elencar uma série de problemas do sistema de propriedade ocidental, que com os limites mal-definidos possibilita um sem-fim de fraudes. Mas, atendo ao limite do texto, vou de deter em apresentar as representações, guardando as críticas para trabalhos futuros.

Ainda nessa primeira casta, a nível jurídico, outra representação com imenso valor e que omite uma série de elementos é a Ação Discriminatória:

Imóvel Bonito, levado ao paroquial em dois registros, na freguesia de Senhora de Santa Ana do Cavalcante, sob n° 35, por Joaquim Martinha, e sob n° 95, por seu filho Francisco de Paula Souza, com precedências diversas, mas limítrofes. A 05-08-1870, foi julgado o inventário de Joaquina Martinha de Souza, no qual foram descritas 2 e 1/2 (duas e meia) léguas de terras no Bonito, que limita "da barra do Prata no Paranã, por este acima até a barra do riacho Feio, por este acima até o Retiro Velho, e deste em rumo ao córrego das Pedras e por este abaixo até a estrada velha e desta em rumo ao Chumbado, e deste ao rumo do Caíçara o por este abaixo ao Prata". Por sua vez, em 15-09-1877, foi julgado o inventário de Francisco de Paula e Souza, descritas terras no Bonito. Limites do paroquial n° 95 : 1 légua mais ou menos na passagem do Chumbado, estrada velha, até o Prata por este abaixo à barra do riacho da Vereda Escura e pela parte do Nascente com minha mãe Dona Joaquina Martinha de Souza" e mais 1/2 (meia) légua mais ou menos na beira do Corrente: "da barra do Ticum acima até o Taboleiro, em rumo direito à Pedra Prêtra e desta ao Corrente e por este abaixo até o Paranã".


Longe de serem descrições perfeitas ou mesmo criarem imagens mentais razoavelmente inteligíveis, esses papéis da terra tem seu valor - dentro do sistema ocidental de propriedade - justamente pelas imprecisões, criando brechas para discussões centenárias e interpretações criativas que sempre tendem a beneficiar uma mesma elite latifundiária. 

Numa casta um pouco inferior estão as representações gráficas em duas dimensões: mapas, polígonos de imóveis, etc. Normalmente, são utilizados em companhia aos primeiros, para reforçar o seu valor. 


Aqui temos um mapa “tradicional” do imóvel Bonito, situando seus limites e confrontantes. Veja que o modelo em si não nos diz muita coisa. Esse mapa foi feito com base na descrição da Ação Discriminatória, mas preciso confessar que aquela descrição jamais geraria essa imagem mental ao menos em minha cabeça. Talvez esse tipo de representação seja o que melhor caracteriza a suposta transparência da imagem, tão valorizada no âmbito jurídico.


- Mapa do imóvel Bonito - Altamir Freitas, 2021


Outro exemplo de representação de um fragmento do Bonito: uma declaração no cadastro ambiental rural que presume uma propriedade que raramente é verificada.


- Exemplo de fragmento do imóvel Bonito registrado no CAR - Francisco Sousa, 2021


Essas representações do Bonito vão se sobrepondo e articulando processos sociais conflituosos. Na base desses conflitos estão os documentos mais comuns quando falamos de grilagem: as matrículas e transcrições.


Essa Transcrição, em uma primeira olhada, parece perfeita: apresenta o registro anterior, o tamanho do imóvel, proprietário, limites, proprietários anteriores, assinaturas etc. A questão é que ela foi registrada por um sujeito que faleceu ainda no século XIX. Aqui sim teríamos um exemplo de mimesis: quem fraudou tinha o objetivo de alcançar as mesmas qualidades de uma Transcrição original/verdadeira. 


- Certidão de Inteiro Teor de uma das Transcrições referentes ao imóvel Bonito - INCRA, 2021



Por fim, um exemplo do papel da terra mais conhecido: uma escritura referente ao imóvel Bonito. Textualmente apresenta características que são esperadas de uma escritura, o problema é que o suposto proprietário e seu procurador são grileiros afamados. Talvez sejam esses os motivos para os Kalunga terem criado uma forma alternativa de analisar os títulos, partindo do ver enquanto interação rotineira.


- Exemplo de Escritura de Compra e Venda referente ao Imóvel Bonito - Francisco Sousa, 2021


Os títulos "iludem-nos em sua aparência de naturalidade e transparência, a qual esconde os inúmeros mecanismos de representação de que resultam" (2008:456). Ignoram modos de vida que não os ocidentais, se tornando catalisadores de conflitos, e - nesse caso específico - de disputa de territórios. Não há aqui um caso de mimesis enquanto busca pela qualidade e o poder original, pois a magia desses papéis está em "ser mais reais do que a própria coisa à qual elas se referem" (2008:459). Captam uma realidade em duas dimensões, escondendo a terceira que abriga pessoas e tradições ancestrais. Nesse sentido, Moraes acerta em cheio ao afirmar que o grande perigo da imagem é fazer crer que ela não é apenas uma imagem. 

Concluo este breve ensaio, que sei possuir dezenas de pontas soltas, com duas últimas representações do Bonito - provavelmente ainda menos valorizadas que as já apresentadas - feitas a partir da presença física no imóvel. A primeira é de Vercilene Dias, advogada, quilombola e ativista que assim descreve seu local de nascença: localizado “entre vãos e serras, cobertos por um céu de azul celeste, límpido e profundo, e emoldurado pela beleza sutil dos Cerrados nas margens do rio Paranã, desenvolveu-se um pedaço da África” (DIAS, 2019, p.52). E, indo de encontro com a descrição de Vercilene, trago uma foto de minha autoria em um dos rios perpendiculares ao Paranã, ainda no SHPCK:  












- Fotografia do Rio da Prata, SHPCK - Francisco Sousa, 2021


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