sábado, 15 de agosto de 2020

RESENHA: AS DONAS DA PALAVRA, D. SIMIÃO

 Francisco O. B. Sousa

Timor Leste era um país com poucas industrias e população predominantemente rural. O acesso há energia elétrica era limitado para a maior parte da população. As famílias eram grandes, com uma média de 7,5 filhos por casal. O país foi tutelado por outros países e órgãos internacionais por um longo período, o que tem reflexo não só sobre os tipos de tomada ou saída de gás, mas também sobre o sistema jurídico, as línguas e o entendimento social sobre o papel do estado. Desse modo, a população dispersa pelo território, organizou-se de maneiras autônomas e variadas (SIMIÃO, 2005, p.09-121).

A inserção na realidade capitalista promoveu diversas mudanças, mas o autor trata com propriedade do papel da mulher: se antes era vista apenas como “doadora de vida” e responsável pelos afazeres domésticos, no sistema capitalista uma massa de mulheres passou a trabalhar fora se tornando responsável pelo sustento da família e pela inserção dos parentes na nova realidade dinâmica, aproximando o papel feminino do masculino. Essa aproximação não foi muito duradoura, posto que surgem movimentos de resistência a ocidentalização do país, as pessoas retomam antigos costumes como forma de luta. No caso das mulheres o antigo costume adotado foi o uso do véu e a imagem feminina é novamente ressignificada: agora uma mulher grávida tem maior peso social que uma mulher que trabalha fora (SIMIÃO, 2005, p.09-45).

Outra consequência dessa resistência foi o fortalecimento dos sistemas de poder local, mas já inseridos na sociedade capitalista, de forma que existiam três esferas de convívio social e, por consequência, de batalha por legitimidade: a casa, a aldeia e o Estado. Em cada esfera existiam padrões e hierarquias que, à primeira vista, parece-nos extremamente desiguais para as mulheres, permitindo, por exemplo, no âmbito do lar e da aldeia, castigos físicos. É esse o panorama geral do texto de Daniel Schroeter Simião (SIMIÃO, 2005, p.45-148).

O antropólogo observou em Timer Leste os conflitos entorno dos diretos das mulheres, em especial, sobre a construção da violência doméstica e os pesares desse processo majoritariamente internacional. Nesse sentido, existiu uma agenda de ressignificação de “processos educacionais violentos” intrafamiliares, comuns na sociedade timorense, uma agenda que estava longe de ser progressiva e participativa, apesar de rotular-se com essas duas características. Um exemplo da radicalização foi o discurso de “gender”: a exigência de uma inserção feminina na tomada de decisão e uma retirada dos processos de violência do âmbito do poder local/tradicional, mesmo que contra a vontade das próprias mulheres, chegando, no extremo a retirar qualquer agência feminina. A discussão é compreensível, bem como a radicalização, todavia, a proposta que apresentou à sociedade (de um rompimento total com os “poderes tradicionais”) é um tanto quanto questionável (SIMIÃO, 2005, p.51-94;231-247).

O autor verificou um avanço considerável na legislação feminina no período em que permaneceu no país. Criou-se uma nova instância de poder, a delegacia, que abriu possibilidade para conciliação de casos que não foram resolvidos nos níveis do lar ou do poder local. (SIMIÃO, 2005, p.152-228).

O Estado, na mesma linha do discurso de “gender”, insistiu em não considerar o pluralismo jurídico de “legislação” tradicional e estatal. Todavia, mesmo que o poder local/tradicional não tenha tido reconhecimento do Estado, as próprias pessoas garantiram sua legitimidade, numa lógica de subversão dos sistemas: as pessoas reconheciam o pluralismo jurídico utilizando as diferentes vias jurídicas de maneira a atender seus interesses pessoais (por exemplo: se a pena obtida por via estatal não suprisse o esperado pela acusação, essa submetia o processo a via tradicional) (SIMIÃO, 2005, p.231-247).

Cabe uma observação sobre essas “vias legais”: enquanto a via estatal estava preocupada com a punição, a via tradicional se preocupava com a conciliação/mediação, de forma que o sujeito saia reintegrado à sociedade. Nessa lógica, se observamos a proposta da “Divisão do trabalho social” (DURKHEIM, 1893) o caráter penal/punitivo das leis é atribuído as “sociedades de organização simples”, enquanto o caráter restitutivo é característico das sociedades modernas. O que se verificou no Timor Leste parece o exato oposto.

A preocupação de Daniel Simião não estava na dualidade moderno/tradicional, até porque a antropologia já superou esse momento, mas na construção da violência doméstica, nos espaços para o seu debate e na reação dos indivíduos. A violência doméstica passa a existir a partir de um momento que a dor física não é a única existente na agressão: ganha espaço também uma “dor moral” e essa “dor moral” só surgem após a ampla divulgação de uma outra forma de viver que não com a agressão. Essa divulgação é feita de inúmeras maneiras no Timor Leste e organizada, predominantemente, por órgãos internacionais. Foram empregados cartazes, reuniões, programas de televisão e rádio. Tudo isso contribui para uma relação aparentemente participativa entre Estado e sociedade, o que na realidade não existe: o Estado já tinha um ponto onde queria chegar e só guiou as pessoas para esse ponto, mesmo que não fosse uma decisão democrática (SIMIÃO, 2005).

O próprio espaço de debate a cerca da criação e criminalização da violência nunca foi pensando, pelo Estado, para incorporar ideias do poder local. De forma que, quando efetivado, surgiram alguns problemas, a exemplo da lentidão estatal em lidar com os processos, em oposição ao poder local que tomava decisões imediatas e levava em consideração não apenas o ato em si, mas o que podia ter levado ao ato, dando voz aos envolvidos, fato que o “tribunal legal” não conseguia. Outro ponto de crítica aberto pelo Estado é a questão da diversidade linguística: nas traduções muito do sentido original pensado para as legislações se perde, abrindo brecha para interpretações pessoais dos juízes (que muitas vezes não são nacionais) e autoritarismos (SIMIÃO, 2005, p.295-228).

De qualquer forma, é um processo longo e impossível de ser pensado e aplicado no curto prazo, como o discurso de “gender” pregava. As modificações devem ser feitas a partir de resultados práticos levando em conta a efetividade das decisões aplicadas: um bom exemplo de modificação no mínimo duvidosa são as delegacias, que começaram com um relativo sucesso na resolução de problemas numa linha de mediação, todavia essa linha desrespeitava, em parte, o pensamento individualista que guiava tanto o discurso de “gender” como o da jurisdição legal, fazendo com que se obrigasse a passagem de todos os casos de violência doméstica pelos tribunais: uma vitória momentânea para o eixo individualista. Momentânea pelo fato de que os tribunais continuaram na linha de mediação tão criticada pelos adeptos do discurso de “gender”. A questão é que a mediação era eficaz para os envolvidos, evita-la enfraquecia a instituição jurídica nascente, que devia buscar apoio nos meios tradicionais de justiça e não se opor a eles (SIMIÃO, 2005, p.231-247).

Concluo o curtíssimo resumo da obra de D. Simião, apontando a concordância com medidas que apresentem um outro jeito de pensar a vida em coletividade e não a imposição desse outro jeito, de forma a acabar exaltando o discurso evolucionista tão problemático. Ao antropólogo, cabe, como Simião aponta, a observação (crítica sim, mas não autoritária) da sociedade e a apresentação de outras formas de pensar não só a sociedade timorense, mas parte das sociedades que vivem problemas com a violência, como o Brasil (SIMIÃO, 2005).

Quanto a estrutura do texto, seria interessante que o autor ocupasse um ou dois parágrafos apresentando um panorama geral do país, como feito nesse singelo resumo, descrevendo, por exemplo, a questão da ausência de fornecimento de energia que tem um impacto enorme na sociedade. Outras informações, como a presença de vários códigos jurídicos e a presença de juízes não-nacionais ou o conflito que envolve a adoção do português como língua oficial ou ainda a taxa de natalidade, estão dispersas no texto e, se apresentadas na introdução, ajudariam na composição imaginaria do leitor sobre sociedade timorense.  

Das reflexões sobre o texto, o autor tem um zelo muito importante para não cair no discurso evolucionista e nem na dualidade primitivo e moderno, apontando essas características nos projetos dos quais participou. A posição, em parte, neutra ao tratar do papel do antropólogo quanto a observação e o diálogo são questões que precisam ter sua relevância garantida, posto que, apesar de toda profissão e todo discurso serem políticos, o ativismo tem seus espaços, sendo (muitas vezes) negado pela academia. Ainda nesse sentido, o foco em “apresentar” (e não “impor”) uma outra visão de mundo é de relevância primeva. As aberturas para a discussão sobre o país de origem do pesquisador, o Brasil, também são válidas e é a partir delas que os próximos comentários foram tecidos.

Ao se debruçar sobre o texto observa-se muitas contradições com o restante do mundo, mas (o que é assustador) muitas similitudes com o Brasil. A “violência pedagógica” só foi expurgada, ao menos no âmbito infantil, em 2014 pela lei n° 13.010:

“A criança e o adolescente têm o direito de ser educados e cuidados sem o uso de castigo físico ou de tratamento cruel ou degradante, como formas de correção, disciplina, educação ou qualquer outro pretexto [...]” (LEI Nº 13.010, DE 26 DE JUNHO DE 2014).

 

Cabe a inserção do comentário de uma mãe e professora da rede pública e de um colégio particular: na opinião desta senhora:

“Quanto ser mãe, era mais comum [antes da lei] ver crianças apanhando muito, não existia um limite, ninguém interferia. Como se as crianças demonstrassem uma educação maior, mas não era bem educação, era opressão, medo mesmo. A lei só veio para ajudar. A professora já fazia o papel de curar as tristezas das crianças, mas era natural, todo mundo sabia que batia mesmo. Depois da lei, de certa forma, os pais abandonaram a criação dos filhos e atribuíram à escola, aos psicólogos. Só que a realidade de escola particular é uma e de escola pública é outra: na particular o diálogo é crescente, na pública ainda batem muito, castigam brutalmente, de forma muito violenta e velada, velada até para o Conselho Tutelar não entrar e tomar.”

 

A crítica é feita quanto a “violência educacional” e a sua eficácia por imposição do medo/opressão. Por outro lado, recai sobre os professores e profissionais voltados ao cuidado infantil a missão de “curar as tristezas”, que é intensificada depois das leis, quando, na fala da entrevistada “os pais abandonaram a criação dos filhos”. E a realidade muda também conforme a realidade econômica de cada família. 

Na questão de direitos femininos: apesar de começarmos a reconhecer o protagonismo feminino e reservar garantias as mulheres a muitos anos, a intenção de proteção parece não  ser sobre a mulher como indivíduo, mas da virgindade e da “honestidade”, próximo as jurisdições tradicionais do Timor Leste: o decreto Nº 847, de 11 de outubro de 1890, previa punição para atentado contra o pudor e para estupro com diferenças para “mulher virgem ou não, mas honesta” (1-6 anos) e “mulher publica ou prostituta” (1-2 anos). Veja que o “fim” da realização do atentado abre brecha para agressão na esfera doméstica.

 No Código Civil de 1916, a relação de dependência entre mulher e homem era reforçada, cerceando atos das mulheres a depender de aprovação do esposo, a exemplo do exercício de alguma profissão. A questão fica mais incomoda se olharmos para produções músicas da época, que refletem a dependência e o “bater com amor” a que Simião faz referência em seu texto. Se caracterizando como violência física e de cunho econômico, a exemplo de:

Amor de malando (Francisco Alves, 1929): Vem, vem; Que eu dou tudo a você; Menos vaidade; Tenho vontade; Mas é que não pode ser; O amor é o do malandro; Oh, meu bem; Melhor do que ele ninguém; Se ele te bate; É porque gosta de ti; Pois bater-se em quem; Não se gosta; Eu nunca vi.

 

Já a Constituição de 1934 da passos importantes quanto a igualdade de gênero com o seguinte artigo: “Todos são iguais perante a lei. Não haverá privilégios, nem distinções, por motivo de nascimento, sexo, raça, profissões próprias ou dos pais, classe social, riqueza, crenças religiosas ou idéias políticas”. Com a implantação do Estado Novo em 1937, a repressão dos direitos femininos é retomada. Todavia, o regime varguista é contraditório, apresentando, no Código Civil de 1940, medidas que garantiam a emancipação feminina (ao menos do ponto de vista de posses). E as produções musicais podem, mais uma vez, ilustrar a contradição evidente da Constituição de 34 e das vozes dissonantes nas entrevistas apresentadas por D. Simião:

Ciúmes (Ultraje a rigor, 1985): Eu quero levar; Uma vida moderninha; Deixar minha menininha; Sair sozinha; Não ser machista; E não bancar o possessivo; Ser mais seguro; E não ser tão impulsivo; Mas eu me mordo de ciúme; Meu bem me deixa; Sempre muito à vontade; Ela me diz que é muito bom; Ter liberdade; E que não há mal nenhum; Em ter outra amizade; E que brigar por isso; É muita crueldade.

 

Já em 1988, com o fim da Ditadura Militar e a efervescência da discussão política para a construção de um estado mais igual, a Constituição Cidadã deu enormes passos em direção as garantias femininas. E, em 1990, o estupro é reconhecido como crime hediondo. Todavia, as músicas produzidas posteriormente são um tanto quanto macabras, evidenciando não só a violência, mas o seu extremo, o feminicídio:

Maria Chiquinha (Sandy e Junior, 1991): Os passarinhos comeram tudo; Então eu vou te cortar a cabeça, Maria Chiquinha; Então eu vou te cortar a cabeça; Que você vai fazer com o resto, Genaro, meu bem?;Que você vai fazer com o resto?;O resto? Pode deixar que eu aproveito.

 

Faixa amarela (Zeca Pagodinho, 1999): Mas se ela vacilar, vou dar um castigo nela; Vou lhe dar uma banda de frente; Quebrar cinco dentes e quatro costelas; Vou pegar a tal faixa amarela; Gravada com o nome dela; E mandar incendiar; Na entrada da favela.

 

Em 2006 é sancionada uma lei que se tornou um marco na luta por emancipação feminina: a lei n° 11.340, mas conhecida como Lei Maria da Penha, criando “mecanismos para coibir a violência doméstica e familiar contra a mulher”. No âmbito musical, a resposta vem na ressignificação (uma espécie de amor violento/possessivo) da violência com um sucesso nacional:

Esse cara sou eu (Roberto Carlos, 2012): O cara que pega você pelo braço; Esbarra em quem for que interrompa seus passos; Está do seu lado pro que der e vier; O herói esperado por toda mulher; Por você ele encara o perigo; Seu melhor amigo; Esse cara sou eu.

 

Por fim, em 2015, o feminicídio é reconhecido como crime hediondo pela lei n° 13.104. O que fica de lição? A transição de pensamento é gradual, no caso brasileiro o processo foi iniciado em 1890, andando a curtos passos e com muito a ser conquistado ainda. Dessa forma, D. Simião está certo em criticar o discurso de “gender” por retirar a autonomia timorense e pregar uma radicalização que, ao contrario do que se espera, tende a afastar as pessoas do estado e fortalecer os vínculos tradicionais tão criticados pelos adeptos de “gender”. É preciso reconhecer que a violência é sempre ressignificada e responder a essas ressignificações, e, encerro com isso, mais uma vez as músicas brasileiras são emblemáticas ilustrando a possessão e chegando no extremo do rapto:

Vidinha de balada (Henrique e Juliano, 2017): Oi, tudo bem? Que bom te ver; A gente ficou, coração gostou não deu pra esquecer; Desculpe a visita, eu só vim te falar; 'Tô afim de você e se não tiver 'cê vai ter que ficar;  Eu vim acabar com essa sua vidinha de balada; E dar outro gosto pra essa sua boca de ressaca; Vai namorar comigo sim; Vai por mim igual nós dois não tem; Se reclamar 'cê vai casar também, com comunhão de bens; Seu coração é meu e o meu é seu também.

 

Surto de amor (Bruno e Marrone; Jorge e Mateus, 2019): Ela 'tava tão linda; Mesmo abraçando ele; O amor da minha vida; Sendo exibida de troféu por ele; Vez ou outra me olhava; Como quem diz, vem cá; E na frente do povo, num surto de amor; Peguei ela nos braços e a festa parou.

 

FONTES

SIMIÃO, Daniel. As donas das palavras. Gênero, justiça e invenção da violência doméstica em Timor Leste. UnB, 2005.

 

DURKHEIM, Émile. Da Divisão do Trabalho Social. São Paulo: Martins Fontes, 2015[1893].

 

LEI Nº 13.010, DE 26 DE JUNHO DE 2014.

 

DECRETO Nº 847, DE 11 DE OUTUBRO DE 1890.

 

CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA DOS ESTADOS UNIDOS DO BRASIL (DE 16 DE JULHO DE 1934).

 

DECRETO-LEI N o 2.848, DE 7 DE DEZEMBRO DE 1940.

 

LEI Nº 3.071, DE 1º DE JANEIRO DE 1916.

 

CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL DE 1988.

 

LEI Nº 11.340, DE 7 DE AGOSTO DE 2006.

 

LEI Nº 13.104, DE 9 DE MARÇO DE 2015.

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