Francisco O. B. Sousa
Timor Leste era um país com poucas
industrias e população predominantemente rural. O acesso há energia elétrica era
limitado para a maior parte da população. As famílias eram grandes, com uma
média de 7,5 filhos por casal. O país foi tutelado por outros países e órgãos internacionais
por um longo período, o que tem reflexo não só sobre os tipos de tomada ou
saída de gás, mas também sobre o sistema jurídico, as línguas e o entendimento
social sobre o papel do estado. Desse modo, a população dispersa pelo
território, organizou-se de maneiras autônomas e variadas (SIMIÃO, 2005,
p.09-121).
A inserção na realidade capitalista
promoveu diversas mudanças, mas o autor trata com propriedade do papel da
mulher: se antes era vista apenas como “doadora de vida” e responsável pelos
afazeres domésticos, no sistema capitalista uma massa de mulheres passou a
trabalhar fora se tornando responsável pelo sustento da família e pela inserção
dos parentes na nova realidade dinâmica, aproximando o papel feminino do
masculino. Essa aproximação não foi muito duradoura, posto que surgem
movimentos de resistência a ocidentalização do país, as pessoas retomam antigos
costumes como forma de luta. No caso das mulheres o antigo costume adotado foi
o uso do véu e a imagem feminina é novamente ressignificada: agora uma mulher
grávida tem maior peso social que uma mulher que trabalha fora (SIMIÃO, 2005,
p.09-45).
Outra consequência dessa resistência foi o
fortalecimento dos sistemas de poder local, mas já inseridos na sociedade
capitalista, de forma que existiam três esferas de convívio social e, por
consequência, de batalha por legitimidade: a casa, a aldeia e o Estado. Em cada
esfera existiam padrões e hierarquias que, à primeira vista, parece-nos
extremamente desiguais para as mulheres, permitindo, por exemplo, no âmbito do
lar e da aldeia, castigos físicos. É esse o panorama geral do texto de Daniel
Schroeter Simião (SIMIÃO, 2005, p.45-148).
O antropólogo observou em Timer Leste os
conflitos entorno dos diretos das mulheres, em especial, sobre a construção da
violência doméstica e os pesares desse processo majoritariamente internacional.
Nesse sentido, existiu uma agenda de ressignificação de “processos educacionais
violentos” intrafamiliares, comuns na sociedade timorense, uma agenda que estava
longe de ser progressiva e participativa, apesar de rotular-se com essas duas
características. Um exemplo da radicalização foi o discurso de “gender”: a
exigência de uma inserção feminina na tomada de decisão e uma retirada dos
processos de violência do âmbito do poder local/tradicional, mesmo que contra a
vontade das próprias mulheres, chegando, no extremo a retirar qualquer agência
feminina. A discussão é compreensível, bem como a radicalização, todavia, a
proposta que apresentou à sociedade (de um rompimento total com os “poderes
tradicionais”) é um tanto quanto questionável (SIMIÃO, 2005, p.51-94;231-247).
O autor verificou um avanço considerável
na legislação feminina no período em que permaneceu no país. Criou-se uma nova
instância de poder, a delegacia, que abriu possibilidade para conciliação de
casos que não foram resolvidos nos níveis do lar ou do poder local. (SIMIÃO,
2005, p.152-228).
O Estado, na mesma linha do discurso de
“gender”, insistiu em não considerar o pluralismo jurídico de “legislação”
tradicional e estatal. Todavia, mesmo que o poder local/tradicional não tenha tido
reconhecimento do Estado, as próprias pessoas garantiram sua legitimidade, numa
lógica de subversão dos sistemas: as pessoas reconheciam o pluralismo jurídico
utilizando as diferentes vias jurídicas de maneira a atender seus interesses pessoais
(por exemplo: se a pena obtida por via estatal não suprisse o esperado pela
acusação, essa submetia o processo a via tradicional) (SIMIÃO, 2005, p.231-247).
Cabe uma observação sobre essas “vias
legais”: enquanto a via estatal estava preocupada com a punição, a via
tradicional se preocupava com a conciliação/mediação, de forma que o sujeito
saia reintegrado à sociedade. Nessa lógica, se observamos a proposta da
“Divisão do trabalho social” (DURKHEIM, 1893) o caráter penal/punitivo das leis
é atribuído as “sociedades de organização simples”, enquanto o caráter
restitutivo é característico das sociedades modernas. O que se verificou no
Timor Leste parece o exato oposto.
A preocupação de Daniel Simião não estava
na dualidade moderno/tradicional, até porque a antropologia já superou esse
momento, mas na construção da violência doméstica, nos espaços para o seu
debate e na reação dos indivíduos. A violência doméstica passa a existir a
partir de um momento que a dor física não é a única existente na agressão:
ganha espaço também uma “dor moral” e essa “dor moral” só surgem após a ampla
divulgação de uma outra forma de viver que não com a agressão. Essa divulgação
é feita de inúmeras maneiras no Timor Leste e organizada, predominantemente,
por órgãos internacionais. Foram empregados cartazes, reuniões, programas de
televisão e rádio. Tudo isso contribui para uma relação aparentemente
participativa entre Estado e sociedade, o que na realidade não existe: o Estado
já tinha um ponto onde queria chegar e só guiou as pessoas para esse ponto,
mesmo que não fosse uma decisão democrática (SIMIÃO, 2005).
O próprio espaço de debate a cerca da
criação e criminalização da violência nunca foi pensando, pelo Estado, para
incorporar ideias do poder local. De forma que, quando efetivado, surgiram
alguns problemas, a exemplo da lentidão estatal em lidar com os processos, em
oposição ao poder local que tomava decisões imediatas e levava em consideração
não apenas o ato em si, mas o que podia ter levado ao ato, dando voz aos envolvidos,
fato que o “tribunal legal” não conseguia. Outro ponto de crítica aberto pelo
Estado é a questão da diversidade linguística: nas traduções muito do sentido
original pensado para as legislações se perde, abrindo brecha para
interpretações pessoais dos juízes (que muitas vezes não são nacionais) e
autoritarismos (SIMIÃO, 2005, p.295-228).
De qualquer forma, é um processo longo e
impossível de ser pensado e aplicado no curto prazo, como o discurso de “gender”
pregava. As modificações devem ser feitas a partir de resultados práticos
levando em conta a efetividade das decisões aplicadas: um bom exemplo de
modificação no mínimo duvidosa são as delegacias, que começaram com um relativo
sucesso na resolução de problemas numa linha de mediação, todavia essa linha
desrespeitava, em parte, o pensamento individualista que guiava tanto o
discurso de “gender” como o da jurisdição legal, fazendo com que se obrigasse a
passagem de todos os casos de violência doméstica pelos tribunais: uma vitória
momentânea para o eixo individualista. Momentânea pelo fato de que os tribunais
continuaram na linha de mediação tão criticada pelos adeptos do discurso de
“gender”. A questão é que a mediação era eficaz para os envolvidos, evita-la enfraquecia
a instituição jurídica nascente, que devia buscar apoio nos meios tradicionais
de justiça e não se opor a eles (SIMIÃO, 2005, p.231-247).
Concluo o curtíssimo resumo da obra de D.
Simião, apontando a concordância com medidas que apresentem um outro jeito de
pensar a vida em coletividade e não a imposição desse outro jeito, de forma a
acabar exaltando o discurso evolucionista tão problemático. Ao antropólogo,
cabe, como Simião aponta, a observação (crítica sim, mas não autoritária) da
sociedade e a apresentação de outras formas de pensar não só a sociedade
timorense, mas parte das sociedades que vivem problemas com a violência, como o
Brasil (SIMIÃO, 2005).
Quanto a estrutura do texto, seria
interessante que o autor ocupasse um ou dois parágrafos apresentando um
panorama geral do país, como feito nesse singelo resumo, descrevendo, por
exemplo, a questão da ausência de fornecimento de energia que tem um impacto
enorme na sociedade. Outras informações, como a presença de vários códigos
jurídicos e a presença de juízes não-nacionais ou o conflito que envolve a
adoção do português como língua oficial ou ainda a taxa de natalidade, estão
dispersas no texto e, se apresentadas na introdução, ajudariam na composição
imaginaria do leitor sobre sociedade timorense.
Das reflexões sobre o texto, o autor tem
um zelo muito importante para não cair no discurso evolucionista e nem na
dualidade primitivo e moderno, apontando essas características nos projetos dos
quais participou. A posição, em parte, neutra ao tratar do papel do antropólogo
quanto a observação e o diálogo são questões que precisam ter sua relevância
garantida, posto que, apesar de toda profissão e todo discurso serem políticos,
o ativismo tem seus espaços, sendo (muitas vezes) negado pela academia. Ainda
nesse sentido, o foco em “apresentar” (e não “impor”) uma outra visão de mundo
é de relevância primeva. As aberturas para a discussão sobre o país de origem
do pesquisador, o Brasil, também são válidas e é a partir delas que os próximos
comentários foram tecidos.
Ao se debruçar sobre o texto observa-se
muitas contradições com o restante do mundo, mas (o que é assustador) muitas
similitudes com o Brasil. A “violência pedagógica” só foi expurgada, ao menos
no âmbito infantil, em 2014 pela lei n° 13.010:
“A criança e o adolescente têm o
direito de ser educados e cuidados sem o uso de castigo físico ou de tratamento
cruel ou degradante, como formas de correção, disciplina, educação ou qualquer
outro pretexto [...]”
(LEI Nº 13.010, DE 26 DE JUNHO DE 2014).
Cabe a inserção do comentário de uma mãe e
professora da rede pública e de um colégio particular: na opinião desta
senhora:
“Quanto ser mãe, era mais comum [antes da lei] ver crianças
apanhando muito, não existia um limite, ninguém interferia. Como se as crianças
demonstrassem uma educação maior, mas não era bem educação, era opressão, medo
mesmo. A lei só veio para ajudar. A professora já fazia o papel de curar as
tristezas das crianças, mas era natural, todo mundo sabia que batia mesmo.
Depois da lei, de certa forma, os pais abandonaram a criação dos filhos e
atribuíram à escola, aos psicólogos. Só que a realidade de escola particular é
uma e de escola pública é outra: na particular o diálogo é crescente, na
pública ainda batem muito, castigam brutalmente, de forma muito violenta e
velada, velada até para o Conselho Tutelar não entrar e tomar.”
A crítica é feita quanto a “violência
educacional” e a sua eficácia por imposição do medo/opressão. Por outro lado,
recai sobre os professores e profissionais voltados ao cuidado infantil a
missão de “curar as tristezas”, que é intensificada depois das leis, quando, na
fala da entrevistada “os pais abandonaram a criação dos filhos”. E a realidade
muda também conforme a realidade econômica de cada família.
Na questão de direitos femininos: apesar
de começarmos a reconhecer o protagonismo feminino e reservar garantias as
mulheres a muitos anos, a intenção de proteção parece não ser sobre a mulher como indivíduo, mas da
virgindade e da “honestidade”, próximo as jurisdições tradicionais do Timor
Leste: o decreto Nº 847, de 11 de outubro de 1890, previa punição para atentado
contra o pudor e para estupro com diferenças para “mulher virgem ou não, mas
honesta” (1-6 anos) e “mulher publica ou prostituta” (1-2 anos). Veja que o
“fim” da realização do atentado abre brecha para agressão na esfera doméstica.
No
Código Civil de 1916, a relação de dependência entre mulher e homem era
reforçada, cerceando atos das mulheres a depender de aprovação do esposo, a
exemplo do exercício de alguma profissão. A questão fica mais incomoda se
olharmos para produções músicas da época, que refletem a dependência e o “bater
com amor” a que Simião faz referência em seu texto. Se caracterizando como
violência física e de cunho econômico, a exemplo de:
Amor de malando (Francisco Alves, 1929):
Vem, vem; Que eu dou tudo a você; Menos vaidade; Tenho
vontade; Mas é que não pode ser; O amor é o do malandro; Oh, meu bem; Melhor do
que ele ninguém; Se ele te bate; É porque gosta de ti; Pois bater-se em
quem; Não se gosta; Eu nunca vi.
Já a Constituição de 1934 da passos
importantes quanto a igualdade de gênero com o seguinte artigo: “Todos são iguais perante a lei. Não haverá
privilégios, nem distinções, por motivo de nascimento, sexo, raça, profissões
próprias ou dos pais, classe social, riqueza, crenças religiosas ou idéias
políticas”. Com a implantação do Estado Novo em 1937, a repressão dos direitos
femininos é retomada. Todavia, o regime varguista é contraditório,
apresentando, no Código Civil de 1940, medidas que garantiam a emancipação
feminina (ao menos do ponto de vista de posses). E as produções musicais podem,
mais uma vez, ilustrar a contradição evidente da Constituição de 34 e das vozes
dissonantes nas entrevistas apresentadas por D. Simião:
Ciúmes (Ultraje a rigor, 1985): Eu
quero levar; Uma vida moderninha; Deixar minha menininha; Sair sozinha; Não ser
machista; E não bancar o possessivo; Ser mais seguro; E não ser tão impulsivo;
Mas eu me mordo de ciúme; Meu bem me deixa; Sempre muito à vontade; Ela me
diz que é muito bom; Ter liberdade; E que não há mal nenhum; Em ter outra
amizade; E que brigar por isso; É muita crueldade.
Já em 1988, com o fim da Ditadura Militar
e a efervescência da discussão política para a construção de um estado mais
igual, a Constituição Cidadã deu enormes passos em direção as garantias
femininas. E, em 1990, o estupro é reconhecido como crime hediondo. Todavia, as
músicas produzidas posteriormente são um tanto quanto macabras, evidenciando
não só a violência, mas o seu extremo, o feminicídio:
Maria Chiquinha (Sandy e Junior,
1991): Os passarinhos comeram tudo; Então eu vou te cortar a cabeça,
Maria Chiquinha; Então eu vou te cortar a cabeça; Que você vai fazer com o
resto, Genaro, meu bem?;Que você vai fazer com o resto?;O resto? Pode deixar
que eu aproveito.
Faixa amarela (Zeca Pagodinho,
1999): Mas se ela vacilar, vou dar um castigo nela; Vou lhe dar uma banda
de frente; Quebrar cinco dentes e quatro costelas; Vou pegar a tal
faixa amarela; Gravada com o nome dela; E mandar incendiar; Na entrada da
favela.
Em 2006 é sancionada uma lei que se tornou
um marco na luta por emancipação feminina: a lei n° 11.340, mas conhecida como
Lei Maria da Penha, criando “mecanismos para coibir a violência doméstica e
familiar contra a mulher”. No âmbito musical, a resposta vem na ressignificação
(uma espécie de amor violento/possessivo) da violência com um sucesso nacional:
Esse cara sou eu (Roberto Carlos,
2012): O cara que pega você pelo braço; Esbarra em quem for que
interrompa seus passos; Está do seu lado pro que der e vier; O herói
esperado por toda mulher; Por você ele encara o perigo; Seu melhor amigo; Esse
cara sou eu.
Por fim, em 2015, o feminicídio é reconhecido
como crime hediondo pela lei n° 13.104. O que fica de lição? A transição de
pensamento é gradual, no caso brasileiro o processo foi iniciado em 1890,
andando a curtos passos e com muito a ser conquistado ainda. Dessa forma, D.
Simião está certo em criticar o discurso de “gender” por retirar a autonomia
timorense e pregar uma radicalização que, ao contrario do que se espera, tende
a afastar as pessoas do estado e fortalecer os vínculos tradicionais tão
criticados pelos adeptos de “gender”. É preciso reconhecer que a violência é
sempre ressignificada e responder a essas ressignificações, e, encerro com
isso, mais uma vez as músicas brasileiras são emblemáticas ilustrando a
possessão e chegando no extremo do rapto:
Vidinha de balada (Henrique e
Juliano, 2017): Oi, tudo bem? Que bom te ver; A gente ficou, coração gostou
não deu pra esquecer; Desculpe a visita, eu só vim te falar; 'Tô afim de
você e se não tiver 'cê vai ter que ficar;
Eu vim acabar com essa sua vidinha de balada; E dar outro gosto pra essa
sua boca de ressaca; Vai namorar comigo sim; Vai por mim igual nós dois não
tem; Se reclamar 'cê vai casar também, com comunhão de bens; Seu coração é meu
e o meu é seu também.
Surto de amor (Bruno e Marrone;
Jorge e Mateus, 2019): Ela 'tava tão linda; Mesmo abraçando ele; O amor da
minha vida; Sendo exibida de troféu por ele; Vez ou outra me olhava; Como
quem diz, vem cá; E na frente do povo, num surto de amor; Peguei ela nos braços
e a festa parou.
FONTES
SIMIÃO, Daniel. As
donas das palavras. Gênero, justiça e invenção da violência doméstica em Timor
Leste. UnB, 2005.
DURKHEIM, Émile. Da Divisão
do Trabalho Social. São Paulo: Martins Fontes, 2015[1893].
LEI Nº 13.010, DE 26
DE JUNHO DE 2014.
DECRETO Nº 847, DE 11
DE OUTUBRO DE 1890.
CONSTITUIÇÃO DA
REPÚBLICA DOS ESTADOS UNIDOS DO BRASIL (DE 16 DE JULHO DE 1934).
DECRETO-LEI N o 2.848,
DE 7 DE DEZEMBRO DE 1940.
LEI Nº 3.071, DE 1º
DE JANEIRO DE 1916.
CONSTITUIÇÃO DA
REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL DE 1988.
LEI Nº 11.340, DE 7
DE AGOSTO DE 2006.
LEI Nº 13.104, DE 9
DE MARÇO DE 2015.
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