sábado, 15 de agosto de 2020

1º Quase publicação: Um olhar antropológico sobre “Nós”

 

Resumo: A antropologia, antes de tudo, é um olhar para além da visão como sentido. O que chamamos de "olhar antropológico" é a capacidade de transformar teoria em instrumento para, por exemplo, assistir ao filme "Nós" (2019) e fazer dele uma revisão dos evolucionistas Edward Burnett Tylor, Lewis Henry Morgan e James George Frazer. A partir das camadas desse terror de invasão domiciliar, retomou-se o encontro entre dois mundos que propiciou a discussão evolucionista do século XIX, eurocêntrica e reducionista, mas por meio da qual fora promovida a institucionalização da disciplina.

 

Palavras-chave: olhar antropológico, evolucionismo, invasão domiciliar, encontro entre dois mundos

 

Una mirada antropológica a "Nosotros"

 

Resumen: La antropología, en primer lugar, es una mirada más allá de la visión como significado. Lo que llamamos una "mirada antropológica" es la capacidad de convertir la teoría en un instrumento para, por ejemplo, ver la película "Nosotros" (2019) y convertirla en una revisión de los evolucionistas Edward Burnett Tylor, Lewis Henry Morgan y James George Frazer. A partir de las capas de este terror de la invasión doméstica, el encuentro entre dos mundos que propició la discusión evolutiva del siglo XIX, eurocéntrica y reduccionista, pero a través de la cual se promovió la institucionalización de la disciplina.

 

Palabra clave: mirada antropológica, evolucionismo, invasión de hogares, encuentro entre dos mundos.

 

Apresentação

Concordo com François Laplantine, quando, em “Aprender Antropologia” (2003), afirma que a antropologia, antes de tudo, é um olhar. Antes de ser campo de conhecimento, antes de ser ciência ou arte, antes de ser uma teoria do social[1] ou linguagem, a antropologia é um olhar sobre o mundo, sobre os processos macro e micro que fazem parte do cotidiano. Esse olhar, estruturante para todo o texto, é, de acordo com Oliveira (1996) "[...] uma espécie de prisma por meio do qual a realidade observada sofre um processo de refração [...]". É por meio dele que a teoria dissecada nos livros e em sala de aula passa a ser instrumento do pesquisador. Não se restringe apenas à visão como sentido, mas é uma domesticação do sistema sensorial capaz de criar uma sensibilidade etnográfica, empregada aqui de forma algo poética, para referir uma perspectiva ou abordagem singular da realidade. Todavia, a construção dessa forma de olhar sobre o mundo não foi tranquila: remonta ao auge do darwinismo social, paralelamente ao surgimento do termo “antropologia” para nomear uma área do conhecimento que pensava a humanidade como um todo (STOCKING, 2006), e voltar a esse período não é uma tarefa fácil. Para a nossa sorte, a modernidade trouxe consigo uma ferramenta útil para a ciência e prazerosa para grande parte das pessoas: o cinema.

Os filmes podem dar forma à imaginação, uma imagem pode expressar inúmeras palavras, muitas que nem mesmo conhecemos. Podem ilustrar, com metáforas ou reconstruções, realidades perdidas no tempo, ou intencionalmente apagadas. Plantar batatas em Marte ou fugir de dinossauros no centro da Terra. Todavia, não são muitos os que aproveitam todo o potencial desse tipo de arte. Há milhares de filmes que poderiam servir de pano de fundo para discussão dos mais diversos conteúdos, e quando o debate é antropológico, esses milhares se multiplicam, afinal, antropologia é, antes de tudo, um olhar.

Talvez os “clássicos” da academia, como “Tempos Modernos” (1936), “Desmundo” (2002) ou “O Enigma de Kaspar Hauser” (1974), já estejam muito batidos e, para um público mais jovem, recém-chegado ao ambiente universitário, sejam um tanto quanto entediantes, mas o universo cinematográfico não se restringe só a esses filmes “clássico”, incontáveis vezes analisados. Existem inúmeras obras recentes que possibilitam amplas discussões acadêmicas tão relevantes quanto as discussões propiciadas pelos filmes que chamei de clássicos, mas tudo indica que trazer esses elementos novos ainda é um desafio em muitas salas de aula universitárias. E é tentando colaborar para novos debates a partir de produções recentes que esse texto foi escrito.

 

Evolucionismo, terror e “Nós”

Por brilhar mais nas sutilezas, o olhar antropológico nos permite discutir filmes que atinjam um público mais amplo.  É o caso desse texto de tom ensaístico. Com um filme recém lançado e voltado para um público menos restrito, pretendo fazer apontamentos sobre o evolucionismo cultural em sua fase clássica, remontando com metáforas de um terror de invasão domiciliar às premissas dos evolucionistas Edward Burnett TylorLewis Henry Morgan e James George Frazer[2].

É desafiador treinar a nossa visão para sutilezas e metáforas, e a dificuldade aumenta quando temos como objeto de análise algo que pretende causar medo, mas o objetivo é mostrar como esse olhar antropológico pode alterar a nossa percepção, como a antropologia está contida mesmo em um filme de terror. Por que escolher um filme de terror? Por trazer as discussões sobre preconceitos e desigualdade sobre ângulos diferentes dos convencionais. Pelo desejo de mostrar como é possível aplicar o tal olhar antropológico em situações variadas.  Mas, acima de qualquer outro motivo, a escolha se deve pelo fato de a gênese da antropologia pelos evolucionistas ser assustadora. Antes de prosseguir com a leitura, recomendo fortemente que assista ao filme “Nós” (“US”, na língua original), de 2019, dirigido por Jordan Peele[3]. As reflexões que serão expostas carecerão de explanação sobre as surpresas que o filme apresenta, possivelmente atrapalhando a primeira experiência com a obra.

Jordan Peele é um ator, escritor, diretor e roteirista estadunidense que saiu da comédia, estreando como diretor em "Corra!" (Get out, 2017), vencendo a categoria de Melhor Roteiro Original no Oscar. Em 2019, coproduziu "Infiltrado na Klan" (BlacKkKlansman), vencedor do prémio de Melhor Roteiro Adaptado, e "Nós" (Us), que ficou longe da grande premiação, apesar de propiciar uma experiência incrível. Atentemo-nos a esse último, objeto desse texto.

Em síntese, “Nós” retrata a história da família Wilson, que vai à praia descansar. O pai da família é Gabriel Wilson (Winston Duke), o tipo brincalhão, buscando mais comunicação com a família. Zora Wilson (Shahadi Wright Joseph) é a filha mais velha, na fase "rebelde" da adolescência em que os sonhos dos pais deixam de ser os sonhos da filha, de busca por uma autonomia maior. O filho mais novo, Jason Wilson (Evan Alex), uma criança na transição para a adolescência, em que o vocabulário começa a mudar, que começam a dizer que a pessoa está velha demais para brincar. E a protagonista (e antagonista) Adelaide Wilson, estrelada por Lupita Nyong'o: uma mãe preocupada com os filhos e uma mulher marcada por traumas do passado. Na casa de praia encontram cópias, “humanos criados por humanos”, mas sem alma, condenados a viver como sombras, na definição da antagonista, que viviam em um mundo subterrâneo e conseguem subir ao mundo superficial, procurando, pela primeira vez, agência sobre suas próprias vidas, mesmo que para isso tenham que se sujar de sangue “inocente”.

 

Metáforas de invasão domiciliar

O filme solta inúmeras farpas aos dramas sociais contemporâneos, típicas das obras de Peele: desde uma ausência paterna, logo no início, quando o pai de Adelaide perde a filha no parque; até comportamentos racistas normalizados, como as falas da família Tyler na praia, e a própria ideia de ter pessoas vivendo “acima” (literal e metaforicamente) de outras.  É um filme com camadas: na primeira consta o terror “real”, da invasão domiciliar, de violência gráfica; na segunda, mais metafórica, a obra faz crítica a uma sociedade de privilégios que se mantém pela exploração e exclusão. É na segunda camada que esse texto encontra seu alvo de estudo, posto que as metáforas que o filme sugere podem aludir ao movimento evolucionista da antropologia no XIX.

A primeira delas é a existência de dois “mundos”, duas realidades literalmente sobrepostas: o mundo da superfície seria o europeu, com suas instituições sociais e civis supostamente mais avançadas, localizando, para os autores evolucionistas, no último degrau de uma ilusória escada evolutiva pela qual toda a “raça” humana iria passar. E o subterrâneo, as “descobertas” europeias, os nomeados “primitivos”, tidos para os europeus desse período como carentes de invenções e descobertas, em um estágio de desenvolvimento muito inferior (TYLOR, 2005 [1871]; FRAZER, 2005 [1908]; MORGAN, 2005 [1877]; STOCKING, 2006).

O primeiro contato entre pessoas desses mundos é assustador, afinal, são “iguais”[4].  Se o novo é “igual”, biologicamente, a diferença estaria no comportamento. Essa foi a premissa dos primeiros antropólogos, os evolucionistas. O método comparativo promovido por Tylor (2005 [1871]) objetivava encontrar leis universais que explicassem uma sequência natural e necessária de evolução, retirando a agência das pessoas sobre os processos históricos e sobre a própria vida. A ausência de agência é exposta de forma metafórica no filme: as pessoas do mundo subterrâneo passam involuntariamente pelos mesmos eventos que os iluminados realizam autonomamente, aludindo a escala de desenvolvimento de um povo proposta por Morgan (2005 [1877]), selvageria-barbárie-civilização, que serviu de justificativa para intervenção direta sobre a vida de outros povos a fim de fazê-los alcançar um suposto grau de desenvolvimento em que os europeus se encontravam. Teoricamente, seguia uma sequência natural e necessária, como apresentado por E. Tylor (2005 [1871]), mas poderia ser agilizado com um guia, com uma “tutela civilizatória”, uma intervenção dos ditos “civilizados” sobre os povos não europeus em que fosse demonstrado um caminho para a evolução humana[5], uma “invasão domiciliar” justificada: é só com a orientação de uma iluminada que os subterrâneos conseguem chegar à superfície.

O filme ainda ilustra o que deveria ser o maior medo dos antropólogos de gabinete[6]: o advento dos não europeus, uma ruptura violenta (literal e metaforicamente), a tomada do lugar que era dos europeus “por direito”. É possível perceber esse receio dos evolucionistas pela insistência que tinham em defender que as explicações de mundo dos “primitivos” não superavam a ciência, pois eram mágicas e/ou religiosas, convertendo-se não em conhecimento, mas em pseudo-ciência ou pseudo-arte. Nos termos do filme, esse medo seria do “desacorrentamento” proposto pela antagonista.

Ingold (1994) afirmou que a concepção de animalidade em cada geração é reconstruída partindo do que, supostamente, apenas nós, humanos, temos. Essa constatação de Ingold cai como uma luva ao observarmos que há uma construção animalesca entorno das cópias, seja pela ausência de fala, pelo modo de se locomover, pelos grunhidos: é como se houvesse uma insistência para que, quem assiste, não humanize aquelas personagens, de forma que as mortes delas não geram incômodo. Aproximadamente aos 75 minutos de filme, a família Wilson, logo após matar as cópias da família Tyler, senta para bater papo como se os cadáveres pela casa não significassem nada. O que acontece ao longo dos séculos de ocupação colonial entorno do mundo é justamente essa desumanização, de forma a reduzir o impacto das mortes, ou seja, interessados em explorar e/ou matar, cabia aos colonizadores negar aos habitantes prévios do território ocupado a humanidade, para que pudessem se sentar e bater papo em casa tranquilos, como a família Tyler fez no filme, sem o peso da morte de pares.

Quanto ao uso da violência como reflexo de uma barbárie/selvageria: tanto os iluminados quanto os subterrâneos recorrem à violência, o que colocaria os dois em um mesmo patamar[7]. E, no final do filme, quando temos a confirmação de que Red pertencia ao mundo da superfície e Adelaide pertencia ao mundo subterrâneo, fico inquieto com qual seria o real invasor. Outra reflexão que pode ser extraída desse mesmo ponto é sobre o que somos capazes de fazer depois que ascendemos socialmente a fim de nos mantermos no “topo”.

 

Conclusão

Por fim, é necessário deixar evidente que toda interpretação é particular e única, ligada ao contexto de vida de cada pessoa. E é essa a graça de todo tipo de arte: o choque entre diferentes interpretações/visões de mundo. Com esse texto em tom ensaístico objetivei aplicar um olhar antropológico sobre uma obra cinematográfica e trazer algo sobre a discussão evolucionista, imbrincada no surgimento da antropologia. A visão dos evolucionistas, apesar de pioneira, foi eurocêntrica, preconceituosa e reducionista, entre outros adjetivos pejorativos, mas não é por isso que se deve negar a existência dessa primeira escola de pensamento ou deixar de reconhecer os pontos positivos que ela propiciou: a institucionalização da disciplina, um primeiro objeto (o “primitivo”), um primeiro método (o comparativo). Sem o trabalho desses “colecionadores de borboleta”, a antropologia provavelmente estaria ainda anexa à Sociologia ou à História.

Espero encorajar alguns leitores, como foi feito com “Nós” (2019) e as teorias evolucionistas, a pensarem as relações entre humanos e não-humanos com “Dolittle" (2020),  as teorias econômicas malthusianas a partir de “Vingadores: Ultimato” (2019), as revoluções e contrarrevoluções a partir da saga “Jogos Vorazes” (2012-2015) ou ainda o programa “Escola Sem Partido” no filme “Harry Potter e a Ordem da Fênix" (2007).  Igualmente espero que com esse escrito tenha demonstrado uma parte ínfima do que esse olhar antropológico é capaz. Ele nos possibilita enxergar um outro mundo, não superior nem inferior, mas paralelo, para além do postulado da alteridade. E talvez a maior missão do antropólogo seja possibilitar esse olhar a toda a sociedade, construindo um ambiente de convivência menos predatório e mais cooperativo, valorizando os múltiplos saberes que vão para muito além da academia.


[1] Raewny Connel propõe, em “A iminente revolução na teoria social”, que o principal produto da antropologia deve uma teoria do social, que leve em conta os aspectos socioeconômicos e geopolíticos da realidade em que é praticada. Um ponto de vista muito diferente do evolucionismo, alvo desse texto.

[2] Com publicações entre 1871 e 1908, embora essa tradição não se restrinja a esses três autores.

[3] Jordan Peele é um ator, escritor, diretor e roteirista estadunidense que iniciou sua carreira na comédia estando no elenco de MADtv entre 2003 e 2009. Junto com Michael Key, criou o programa Key e Peele (2012-2015) que tratava de forma bem humorada de cultura popular estadunidense, estereótipos e críticas sociais. Em 2017, Peele deu um salto em sua carreira estreando como diretor em "Corra!" (Get out), um longa de terror instigante que joga luz sobre o racismo pós-Obama por uma ótica inusitada. Com essa obra Jordan Peele se consagrou como primeiro negro a vencer a categoria de Melhor Roteiro Original no Oscar, abrindo espaço para filmes com teor crítico nas principais categorias da premiação. Em 2019, o drama policial com pitadas de comédia "Infiltrado na Klan" (BlacKkKlansman) coproduzido por Peele levou o Oscar de Melhor Roteiro Adaptado, reforçando a crítica ao racismo que permeia toda a jornada profissional do diretor. No mesmo ano, o filme "Nós" (Us) veio para comprovar que o terror é onde Peele consegue mais destaque, apesar de ter sido esquecido pela grande premiação.

[4] No filme: literalmente igual; metaforicamente, biologicamente iguais.

[5] Nos escritos de Frazer (2005 [1908]), a suposição problemática em que os primitivos eram tidos como pouco intelectuais que careciam de liderança e deveriam ser governados é evidente.

[6] Pesquisadores que não faziam pesquisa em campo, que escreviam suas teses a partir de relatos de outras pessoas, a exemplo de viajantes, missionários, comerciantes

[7] É fato que a inferiorização criada pelos iluminados gera incômodo nos subterrâneos, mesmo que os indivíduos não tenham culpa por terem nascido na superfície ou no mundo “inferior”, mas isso de maneira nenhuma justifica o uso da força, bem como nada deveria justificar.

 

REFERÊNCIAS

CONNEL, Raewyn. A iminente revolução na teoria social. In: RBSC, vol.27, n°80. 2012.

FRAZER, James George. “O escopo da antropologia social”. In: Evolucionismo cultural – Textos de Morgan, Tylor e Frazer. Castro, Celso (org.) Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor. 2005 [1908].

INGOLD, Tim. Humanidade e Animalidade. Tradução: Vera Pereira. Companion Encyclopedia of Anthropology, Londres, Routledge. 1994.

LAPLANTINE, François. Aprender Antropologia. São Paulo: Editora Brasiliense, 2003.

MORGAN, Lewis Henry. “Sociedade antiga”. In: Evolucionismo cultural – Textos de Morgan, Tylor e Frazer. Castro, Celso (org.) Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor. 2005 [1877].

Nós, Us (Original). Direção de Jordan Peele. Estados Unidos da América: Universal, 2019. P&B.

OLIVEIRA, R. O trabalho do Antropólogo: olhar, ouvir, escrever. Revista de Antropologia, v. 39, n. 1, p. 13-37, 6 jun. 1996.

STOCKING, GEORGE W. Jr. Tradições Paradigmáticas na História da Antropologia. Teoria e Sociedade, 13 (2). Belo Horizonte. 2006.

TYLOR, Edward. B. “A ciência da cultura”. In: Evolucionismo cultural – Textos de Morgan, Tylor e Frazer. Castro, Celso (org.) Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor. 2005 [1871].

 

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