FRANCISCO OCTÁVIO B. DE SOUSA*
KAROLAYNE PERES DE MELO **
RESUMO: Em
dezembro de 2019 o projeto de lei 7180/14, vulgo “Escola Sem Partido”, retornou
ao congresso. Em abril de 2020, o tema voltou ao Supremo Tribunal Federal. O
texto a seguir tem por objetivo demonstrar de forma didática, através do filme
"Harry Potter e a Ordem da Fênix" (2007) alguns dos problemas do
projeto de lei 7180/14. Para cumprir tal objetivo, são feitos cruzamentos entre
textos de especialistas, como Fernando Penna e Gaudêncio Frigotto, e partes do
filme. Com uma escrita simples e concisa, visa-se alcançar o maior número
possível de pessoas. Organiza-se em quatro partes: "O retorno", em
que apresenta-se o projeto de lei 7180/14; "O filme", onde o leitor
vai encontrar uma síntese do filme; "ESP em Hogwarts", em que
mesclamos filme e textos; e "Um pouco mais de Brasil", encerramento
do texto com considerações sobre o nosso país hoje, maio de 2020.
PALAVRAS-CHAVE: “Escola
Sem Partido”; "Harry Potter e a Ordem da Fênix"; Fernando Penna; Gaudêncio
Frigotto.
O
RETORNO
2020 definitivamente não tem sido um
ano fácil, mas infelizmente esse texto não foi feito pra acalmar alguém. Pelo
contrário, o intuito é justamente chamar atenção para mais um problema. Estamos
tontos no meio dessa pandemia que ganhou um tempero político, econômico e
social no Brasil, mas a verdade é que o governo Bolsonaro não tem avançado só
na sua proposta de desgaste dos poderes constituídos. No longínquo dezembro de
2019, Rodrigo Maia abriu uma Comissão Especial no congresso para tratar do
projeto de lei 7180/14, o “Escola Sem Partido” (ESP). Em abril de 2020, no meio
da zona em que vivemos, o tema voltou ao Supremo Tribunal Federal (STF) que
declarou inconstitucional, por unanimidade, uma lei municipal de Novo Gama
(Goiás) que proibia o debate sobre identidade de gênero em escolas. Porem essa
é só uma das 15 ações relacionadas ao ESP que figuram no STF.
Pra quem não se lembra, segue um pequeno
resumo:
Criado em
2004, o ESP apresenta-se como uma iniciativa conjunta de estudantes e pais
preocupados com o que chamaram de “grau de contaminação político-ideológica das
escolas brasileiras”. A centralidade de suas ações e concepções está num site
que atua com os objetivos de veicular ideias, instrumentalizar denúncias,
disseminar procedimentos de vigilância, além de controlar e criminalizar o que
seus membros entendem como “práticas doutrinárias” realizadas em salas de aula
e presentes em materiais escolares e acadêmicos, livros didáticos e programas
formativos. [...] Há uma relação próxima do ESP com a direita brasileira. A
proposta foi apresentada pela primeira vez em forma de projeto de lei em 2014,
no estado do Rio de Janeiro, pelo deputado Flávio Bolsonaro (PSC/RJ). A segunda
vez, ainda nesse ano, foi no município do Rio de Janeiro, pelo vereador Carlos
Bolsonaro (PSC/RJ), ambos filhos do deputado federal Jair Bolsonaro (PSC/RJ).
(FERREIRA E ALVADIA FILHO, 2017, p.65-66).
O
discurso é atrativo para muitas mães e pais, pois trata “de valores como moral,
ética, laicidade e liberdade no âmbito da pluralidade, quando, na verdade,
supõe a supressão da pluralidade em favor de um ensino que se pretende estéril
e unidimensional, estimulando o denuncismo, o controle e o cultivo a valores
nocivos pedagogicamente”
(FERREIRA E ALVADIA FILHO, 2017, p.64). Não quer acreditar em
mim e nesses autores? Pois bem, esse texto tem por objetivo demonstrar o que
seria o ESP na prática, através de uma obra, tanto literária quanto fílmica,
muito famosa e que com certeza você já ouviu falar: Harry Potter (HP).
O
FILME
A saga conta com, ao menos, oito
títulos. Mas aqui vamos nos centrar no quinto filme: Harry Potter e a Ordem
da Fênix. Um brevíssimo resumo: durante as férias HP e seu primo são
atacados por dementadores em uma região habitada por trouxas. Harry usou um
feitiço para defender a si e a seu primo e por isso foi convocado ao Ministério
da Magia correndo o risco de ser expulso de Hogwarts por usar magia fora da
escola. Dumbledore defende HP no julgamento, ganhando a causa e permitindo que
Harry retorne a Hogwarts. Todavia, assim que o ano letivo começa, descobrimos
que Dolores Umbrigde ocupou a cadeira de Defesa Contra as Artes das Trevas, demonstrando
a interferência do Ministério da Magia em Hogwarts. Em sala, o método de
Dolores era mecanicista, desestimulando o pensamento crítico e o aprendizado em
equipe. Para além dos portões da escola, o Profeta Diário focou esforçou para destruir
a imagem de HP e Dumbledore, ambos defendiam que o Lorde das Trevas havia
retornado, porem o ministro da magia insistia no contrário. Como consequência,
HP se tornava cada vez mais isolado em Hogwarts e até mesmo Dumbledore evitava
conversar com o protagonista. Isolado, pós discussão em sala com Dolores
Umbrigde, Harry passou a ser vítima de tortura física. Ao perceber, os amigos
do garoto contam à professora Minerva McGonagall que protagoniza uma discussão
pública com Umbrigde. Essa última apela à autoridade do ministro da magia e
afirma poder denunciar Minerva por traição. Dolores passou a acumular mais e
mais poderes, com uma postura cada vez mais moralista, chegando a demitir uma
das professoras, Sibila Trelawney, que só não é expulsa por interferência do
diretor. Do lado de fora, o ministro da magia criava teorias alopradas sobre
Dumbledore querer tomar o ministério. Essa criação de inimigos imaginários
tinha consequência direta nas aulas cada vez mais unidimensionais, a fim de que
alunos não-treinados não pudessem integrar um suposto movimento golpista
liderado pelo diretor de Hogwarts. Todavia os alunos não assistem passivamente
essa série de eventos, juntos passam a compor uma organização chamada “Armada
de Dumbledore”, um primeiro ato de desobediência civil em que aprendiam juntos o
que lhes era negado em sala de aula. Os mandos de Dolores eram cada vez mais
autoritários, recrutando alunos para policiar os demais, permitindo
interrogatórios sobre “atividades suspeitas”, proibindo organizações
estudantis, enfim, criando medo. A Armada de Dumbledore continuava com suas
atividades paralelas até ser encontrada por Dolores. Dumbledore é acusado de
conspiração e foge. Umbrigde agora ocupava o cargo mais alto de Hogwarts,
adotando tortura em massa e criminalizando até mesmo as artes plásticas.
Enquanto isso, o ministro e a imprensa seguiam adotando uma posição
negacionista, mesmo caindo em descrédito. Dolores adotava métodos cada vez mais
violentos, invocando a “questão de segurança”. A loucura era tanta que os
alunos acabam enganando a tirana de rosa, que é sequestrada por centauros, pois
estavam perdendo território. Com uma batalha entre Dumbledore e Voldmort no
ministério, presenciada pelo ministro, torna-se impossível seguir com
negacionismo e é assim que termina esse filme.
ESP
EM HOGWARTS
Agora
vamos ponto a ponto. O filme já começa com um julgamento em que o objetivo é
justamente silenciar um aluno. Falhando em expulsá-lo, o ministro, juntamente a
mídia, passa a desqualificar tanto HP quanto Dumbledore. Por que desqualificar
o diretor de Hogwarts é importante? “A desconfiança em relação ao educador é um
dos pilares do ESP e se traduz numa ameaça constante ao seu trabalho em sala de
aula, entendendo-o como um tradutor “perigoso” do conhecimento diante de
estudantes supostamente vulneráveis à chamada doutrinação” (FERREIRA E ALVADIA FILHO, 2017, p.71).
E é justamente essa desconfiança que possibilita a intervenção na escola.
Dolores
Umbrigde ocupou exatamente a cadeira de Defesa Contra as Artes das Trevas, uma
das matérias mais importantes para o treinamento defensivo dos alunos, além de
ser uma das mais queridas matérias. Uma vez professora de Defesa Contra as
Artes das Trevas, Dolores
“[...]
quebra o que define a relação pedagógica e educativa: uma relação de confiança,
de solidariedade, de busca e de interpelação frente aos desafios de uma
sociedade cuja promessa mais clara, para as novas gerações, é de “vida
provisória e em suspenso”. Esta pedagogia de confiança e diálogo é substituída
pelo estabelecimento de uma nova função para alunos, pais, mães: dedo-duro”
(FRIGOTTO,2016, p.13).
Fora
que com o método avaliativo empregado por Dolores, em que, como bem apontado
por Hermione Granger, “não precisa pensar” e "Decreta-se a idiotização dos
docentes e dos alunos, autômatos humanos a repetir conteúdos que o partido
único, mas que se diz sem partido, autoriza a ensinar" (FRIGOTTO, 2016,
p.12).
Com
os decretos, Umbrigde incentivava a "[...]supressão da pluralidade em
favor de um ensino que se pretende estéril e unidimensional, estimulando o
denuncismo, o controle e o cultivo a valores nocivos pedagogicamente"
(FERREIRA E ALVADIA FILHO, 2017, p.64). Ou criar uma milícia de alunos para
vigiar os demais, autorizar interrogatórios sem objeto determinado e proibir
organizações estudantis não se tratam exatamente de supressão da pluralidade e
estimulo ao denuncismo? Isso porque nem se quer foi preciso citar tortura
física.
Do ponto de vista administrativo, a
demissão da professora Sibila Trelawney é a demonstração de que Dolores, a
nossa interventora do ESP, “[...] desconsidera o saber profissional dos
professores, por isso exclui dos princípios da Educação a sua liberdade para
ensinar e a pluralidade de concepções pedagógicas” (PENNA, 2016, p.51). Enquanto
isso, para além de Hogwarts, o ministro segue criando inimigos imaginários,
favorecendo a vigilância sobre os professores e principalmente Dumbledore. Essa
estratégia de apontar um inimigo constantemente lembra uma estratégia dos
defensores do ESP, ao desumanizar professores "[...]os quais [supostamente]
contaminariam as escolas brasileiras com suas visões de mundo “petistas”,
“petralhas” ou “esquerdistas” e recheadas com “ideologia de gênero”. O
professor precisa então ser fiscalizado, controlado e denunciado para evitar
que aprisione os estudantes, sua audiência cativa" (SILVA, 2018, p.100). É nessa mesma linha de pensamento que a arte
passa a ser também criminalizada.
Encerrando essa analise geral do filme, a
Armada de Dumbledore é muito significativa, pois ela é a prova de que Dolores,
bem como o ESP estão errados ao
"Perceber os alunos como
sujeitos é justamente o contrário de percebê-los como passivos. [...] O
programa Escola sem Partido não só representa os alunos como figuras
absolutamente passivas, a proposta apresenta-se como uma política de
escolarização que reduziria enormemente o espaço para que os alunos pudessem
revelar-se como sujeitos em sala de aula. [...] É pior que uma prisão"
(PENNA, 2016, p.55).
UM
POUCO MAIS DE BRASIL
Falando
mais de Brasil, para encerrar. Alguns devem estar se perguntando “ah, mas as
escolas nem estão abertas, por que tratar disso agora?” Porque as ideias do ESP
orientam o ministro da deseducação! O MEC (Ministério da Educação) e o MCTIC (Ministério
da Ciência, Tecnologia, Inovações e Comunicações) vêm atacando as humanidades a
nível superior, com corte de bolsas, e básico, com diminuição de carga horária.
Por outro flanco, o ministro da economia segue nas tentativas de acabar com a
estabilidade de funcionários públicos, congelar salários, minando a carreira
docente. Agora querem forçar o ENEM (Exame Nacional do Ensino Médio) no ano em
que as escolas públicas fecharam e pouquíssimas lecionaram via EaD (Educação a
distância), que por si só já renderia um grande debate. Não há competição justa
nesse neoliberalismo tosco que esse governo defende. Fato é que "Quando a
escola pública passou a ser encarada como um veículo de ascensão social das
classes trabalhadoras, recebeu fortes ataques dos setores conservadores, os
quais se empenham na manutenção das hierarquias e dos sistemas de valores
hegemônicos" (SILVA, 2018, p.102):
é a velha
artimanha da direita: já que não convém mudar a realidade, pode-se acobertá-la
com palavras. E que não se saiba que desigualdade social decorre da opressão
sistêmica; a riqueza, do empobrecimento alheio; a homofobia, do machismo
exacerbado; a leitura fundamentalista da Bíblia da miopia que lê o texto fora
do contexto (BETTO, 2016, p. 67).
Mas
nós, como a Armada de Dumbledore, vamos resistir! Com métodos diferentes, se
eles tinham que permanecer em silencio, sem serem vistos, nós precisamos fazer
muito barulho e jogar o foco de luz nos milhões que estão sendo prejudicados
pelas medidas desse governo.
REFERÊNCIAS
Harry Potter e a
Ordem da Fênix (Harry Potter and the Order of the Phoenix). 2007. Direção:
David Yates. Distribuição: Warner Bros.
BETTO, Frei. “Escola
sem Partido”? In: A ideologia do movimento Escola Sem Partido: 20 autores desmontam
o discurso. Ação Educativa Assessoria, Pesquisa e Informação (Org.). São Paulo:
Ação Educativa, 2016.
FERREIRA, Walace;
FILHO, Alberto Alvadia. A serpente pedagógica: o projeto Escola sem
Partido e o ensino de
Sociologia no Brasil. In: Revista e-mosaicos, vol. 6, n.12, ago. 2017.
Disponível em:
<http://www.e-publicacoes.uerj.br/index.php/emosaicos/article/view/30272/21433>.
Acesso em: 07/05/2020.
FRIGOTTO, Gaudêncio.
“ESCOLA SEM PARTIDO”: IMPOSIÇÃO DA MORDAÇA AOS EDUCADORES. In: Revista
e-mosaicos, vol. 5, n.9, jun. 2016. Disponível em:<https://www.e-publicacoes.uerj.br/index.php/e-mosaicos/article/view/24722>.
Acesso em: 07/05/2020.
PENNA, Fernando.
Programa “Escola Sem Partido”: Uma ameaça à educação emancipadora. In: GABRIEL,
C. T.; MONTEIRO, A. M. e MARTINS, M. L. B. (org.) Narrativas do Rio de Janeiro
nas aulas de história. Rio de Janeiro: Mauad X, 2016.
SILVA, Marília M. C.
da. FRIGOTTO, Gaudêncio (org). ESCOLA “SEM” PARTIDO: esfinge que ameaça a
educação e a sociedade brasileira. Rio de Janeiro: UERJ, LPP, 2017. 144 pág.
In: Revista Perspectiva Sociológica, n.º 21, 1º sem. 2018. Disponível em:<https://www.cp2.g12.br
› ojs › index.php › article › download>. Acesso em: 07/05/2020.
* Autor. Discente de Ciências
Sociais da Universidade de Brasília. Currículo Lattes:
<http://lattes.cnpq.br/4432857212289289>. Blog pessoal: <https://chicodesociais.blogspot.com/>. E-mail para contato: <franciscooctavio@hotmail.com.br>.
** Responsável por revisão do texto.
Discente de Engenharia Civil do Instituto Federal Goiano – Campus Trindade.
Currículo Lattes: <http://lattes.cnpq.br/5772755262137487 >. E-mail para
contato: <karolaynepm@gmail.com>.
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