sábado, 15 de agosto de 2020

HOGWARTS E O PROGRAMA “ESCOLA SEM PARTIDO”

 

FRANCISCO OCTÁVIO B. DE SOUSA*

KAROLAYNE PERES DE MELO **

 

RESUMO: Em dezembro de 2019 o projeto de lei 7180/14, vulgo “Escola Sem Partido”, retornou ao congresso. Em abril de 2020, o tema voltou ao Supremo Tribunal Federal. O texto a seguir tem por objetivo demonstrar de forma didática, através do filme "Harry Potter e a Ordem da Fênix" (2007) alguns dos problemas do projeto de lei 7180/14. Para cumprir tal objetivo, são feitos cruzamentos entre textos de especialistas, como Fernando Penna e Gaudêncio Frigotto, e partes do filme. Com uma escrita simples e concisa, visa-se alcançar o maior número possível de pessoas. Organiza-se em quatro partes: "O retorno", em que apresenta-se o projeto de lei 7180/14; "O filme", onde o leitor vai encontrar uma síntese do filme; "ESP em Hogwarts", em que mesclamos filme e textos; e "Um pouco mais de Brasil", encerramento do texto com considerações sobre o nosso país hoje, maio de 2020.

 

PALAVRAS-CHAVE: “Escola Sem Partido”; "Harry Potter e a Ordem da Fênix"; Fernando Penna; Gaudêncio Frigotto.

 

O RETORNO

2020 definitivamente não tem sido um ano fácil, mas infelizmente esse texto não foi feito pra acalmar alguém. Pelo contrário, o intuito é justamente chamar atenção para mais um problema. Estamos tontos no meio dessa pandemia que ganhou um tempero político, econômico e social no Brasil, mas a verdade é que o governo Bolsonaro não tem avançado só na sua proposta de desgaste dos poderes constituídos. No longínquo dezembro de 2019, Rodrigo Maia abriu uma Comissão Especial no congresso para tratar do projeto de lei 7180/14, o “Escola Sem Partido” (ESP). Em abril de 2020, no meio da zona em que vivemos, o tema voltou ao Supremo Tribunal Federal (STF) que declarou inconstitucional, por unanimidade, uma lei municipal de Novo Gama (Goiás) que proibia o debate sobre identidade de gênero em escolas. Porem essa é só uma das 15 ações relacionadas ao ESP que figuram no STF.

Pra quem não se lembra, segue um pequeno resumo:

 

Criado em 2004, o ESP apresenta-se como uma iniciativa conjunta de estudantes e pais preocupados com o que chamaram de “grau de contaminação político-ideológica das escolas brasileiras”. A centralidade de suas ações e concepções está num site que atua com os objetivos de veicular ideias, instrumentalizar denúncias, disseminar procedimentos de vigilância, além de controlar e criminalizar o que seus membros entendem como “práticas doutrinárias” realizadas em salas de aula e presentes em materiais escolares e acadêmicos, livros didáticos e programas formativos. [...] Há uma relação próxima do ESP com a direita brasileira. A proposta foi apresentada pela primeira vez em forma de projeto de lei em 2014, no estado do Rio de Janeiro, pelo deputado Flávio Bolsonaro (PSC/RJ). A segunda vez, ainda nesse ano, foi no município do Rio de Janeiro, pelo vereador Carlos Bolsonaro (PSC/RJ), ambos filhos do deputado federal Jair Bolsonaro (PSC/RJ). (FERREIRA E ALVADIA FILHO, 2017, p.65-66).

 

O discurso é atrativo para muitas mães e pais, pois trata “de valores como moral, ética, laicidade e liberdade no âmbito da pluralidade, quando, na verdade, supõe a supressão da pluralidade em favor de um ensino que se pretende estéril e unidimensional, estimulando o denuncismo, o controle e o cultivo a valores nocivos pedagogicamente” (FERREIRA E ALVADIA FILHO, 2017, p.64). Não quer acreditar em mim e nesses autores? Pois bem, esse texto tem por objetivo demonstrar o que seria o ESP na prática, através de uma obra, tanto literária quanto fílmica, muito famosa e que com certeza você já ouviu falar: Harry Potter (HP).

 

O FILME

A saga conta com, ao menos, oito títulos. Mas aqui vamos nos centrar no quinto filme: Harry Potter e a Ordem da Fênix. Um brevíssimo resumo: durante as férias HP e seu primo são atacados por dementadores em uma região habitada por trouxas. Harry usou um feitiço para defender a si e a seu primo e por isso foi convocado ao Ministério da Magia correndo o risco de ser expulso de Hogwarts por usar magia fora da escola. Dumbledore defende HP no julgamento, ganhando a causa e permitindo que Harry retorne a Hogwarts. Todavia, assim que o ano letivo começa, descobrimos que Dolores Umbrigde ocupou a cadeira de Defesa Contra as Artes das Trevas, demonstrando a interferência do Ministério da Magia em Hogwarts. Em sala, o método de Dolores era mecanicista, desestimulando o pensamento crítico e o aprendizado em equipe. Para além dos portões da escola, o Profeta Diário focou esforçou para destruir a imagem de HP e Dumbledore, ambos defendiam que o Lorde das Trevas havia retornado, porem o ministro da magia insistia no contrário. Como consequência, HP se tornava cada vez mais isolado em Hogwarts e até mesmo Dumbledore evitava conversar com o protagonista. Isolado, pós discussão em sala com Dolores Umbrigde, Harry passou a ser vítima de tortura física. Ao perceber, os amigos do garoto contam à professora Minerva McGonagall que protagoniza uma discussão pública com Umbrigde. Essa última apela à autoridade do ministro da magia e afirma poder denunciar Minerva por traição. Dolores passou a acumular mais e mais poderes, com uma postura cada vez mais moralista, chegando a demitir uma das professoras, Sibila Trelawney, que só não é expulsa por interferência do diretor. Do lado de fora, o ministro da magia criava teorias alopradas sobre Dumbledore querer tomar o ministério. Essa criação de inimigos imaginários tinha consequência direta nas aulas cada vez mais unidimensionais, a fim de que alunos não-treinados não pudessem integrar um suposto movimento golpista liderado pelo diretor de Hogwarts. Todavia os alunos não assistem passivamente essa série de eventos, juntos passam a compor uma organização chamada “Armada de Dumbledore”, um primeiro ato de desobediência civil em que aprendiam juntos o que lhes era negado em sala de aula. Os mandos de Dolores eram cada vez mais autoritários, recrutando alunos para policiar os demais, permitindo interrogatórios sobre “atividades suspeitas”, proibindo organizações estudantis, enfim, criando medo. A Armada de Dumbledore continuava com suas atividades paralelas até ser encontrada por Dolores. Dumbledore é acusado de conspiração e foge. Umbrigde agora ocupava o cargo mais alto de Hogwarts, adotando tortura em massa e criminalizando até mesmo as artes plásticas. Enquanto isso, o ministro e a imprensa seguiam adotando uma posição negacionista, mesmo caindo em descrédito. Dolores adotava métodos cada vez mais violentos, invocando a “questão de segurança”. A loucura era tanta que os alunos acabam enganando a tirana de rosa, que é sequestrada por centauros, pois estavam perdendo território. Com uma batalha entre Dumbledore e Voldmort no ministério, presenciada pelo ministro, torna-se impossível seguir com negacionismo e é assim que termina esse filme.

 

ESP EM HOGWARTS

Agora vamos ponto a ponto. O filme já começa com um julgamento em que o objetivo é justamente silenciar um aluno. Falhando em expulsá-lo, o ministro, juntamente a mídia, passa a desqualificar tanto HP quanto Dumbledore. Por que desqualificar o diretor de Hogwarts é importante? “A desconfiança em relação ao educador é um dos pilares do ESP e se traduz numa ameaça constante ao seu trabalho em sala de aula, entendendo-o como um tradutor “perigoso” do conhecimento diante de estudantes supostamente vulneráveis à chamada doutrinação” (FERREIRA E ALVADIA FILHO, 2017, p.71). E é justamente essa desconfiança que possibilita a intervenção na escola.

Dolores Umbrigde ocupou exatamente a cadeira de Defesa Contra as Artes das Trevas, uma das matérias mais importantes para o treinamento defensivo dos alunos, além de ser uma das mais queridas matérias. Uma vez professora de Defesa Contra as Artes das Trevas, Dolores

 

“[...] quebra o que define a relação pedagógica e educativa: uma relação de confiança, de solidariedade, de busca e de interpelação frente aos desafios de uma sociedade cuja promessa mais clara, para as novas gerações, é de “vida provisória e em suspenso”. Esta pedagogia de confiança e diálogo é substituída pelo estabelecimento de uma nova função para alunos, pais, mães: dedo-duro” (FRIGOTTO,2016, p.13).

 

Fora que com o método avaliativo empregado por Dolores, em que, como bem apontado por Hermione Granger, “não precisa pensar” e "Decreta-se a idiotização dos docentes e dos alunos, autômatos humanos a repetir conteúdos que o partido único, mas que se diz sem partido, autoriza a ensinar" (FRIGOTTO, 2016, p.12).

Com os decretos, Umbrigde incentivava a "[...]supressão da pluralidade em favor de um ensino que se pretende estéril e unidimensional, estimulando o denuncismo, o controle e o cultivo a valores nocivos pedagogicamente" (FERREIRA E ALVADIA FILHO, 2017, p.64). Ou criar uma milícia de alunos para vigiar os demais, autorizar interrogatórios sem objeto determinado e proibir organizações estudantis não se tratam exatamente de supressão da pluralidade e estimulo ao denuncismo? Isso porque nem se quer foi preciso citar tortura física.

Do ponto de vista administrativo, a demissão da professora Sibila Trelawney é a demonstração de que Dolores, a nossa interventora do ESP, “[...] desconsidera o saber profissional dos professores, por isso exclui dos princípios da Educação a sua liberdade para ensinar e a pluralidade de concepções pedagógicas” (PENNA, 2016, p.51). Enquanto isso, para além de Hogwarts, o ministro segue criando inimigos imaginários, favorecendo a vigilância sobre os professores e principalmente Dumbledore. Essa estratégia de apontar um inimigo constantemente lembra uma estratégia dos defensores do ESP, ao desumanizar professores "[...]os quais [supostamente] contaminariam as escolas brasileiras com suas visões de mundo “petistas”, “petralhas” ou “esquerdistas” e recheadas com “ideologia de gênero”. O professor precisa então ser fiscalizado, controlado e denunciado para evitar que aprisione os estudantes, sua audiência cativa" (SILVA, 2018, p.100).  É nessa mesma linha de pensamento que a arte passa a ser também criminalizada.

Encerrando essa analise geral do filme, a Armada de Dumbledore é muito significativa, pois ela é a prova de que Dolores, bem como o ESP estão errados ao

 

"Perceber os alunos como sujeitos é justamente o contrário de percebê-los como passivos. [...] O programa Escola sem Partido não só representa os alunos como figuras absolutamente passivas, a proposta apresenta-se como uma política de escolarização que reduziria enormemente o espaço para que os alunos pudessem revelar-se como sujeitos em sala de aula. [...] É pior que uma prisão" (PENNA, 2016, p.55).

 

UM POUCO MAIS DE BRASIL

Falando mais de Brasil, para encerrar. Alguns devem estar se perguntando “ah, mas as escolas nem estão abertas, por que tratar disso agora?” Porque as ideias do ESP orientam o ministro da deseducação! O MEC (Ministério da Educação) e o MCTIC (Ministério da Ciência, Tecnologia, Inovações e Comunicações) vêm atacando as humanidades a nível superior, com corte de bolsas, e básico, com diminuição de carga horária. Por outro flanco, o ministro da economia segue nas tentativas de acabar com a estabilidade de funcionários públicos, congelar salários, minando a carreira docente. Agora querem forçar o ENEM (Exame Nacional do Ensino Médio) no ano em que as escolas públicas fecharam e pouquíssimas lecionaram via EaD (Educação a distância), que por si só já renderia um grande debate. Não há competição justa nesse neoliberalismo tosco que esse governo defende. Fato é que "Quando a escola pública passou a ser encarada como um veículo de ascensão social das classes trabalhadoras, recebeu fortes ataques dos setores conservadores, os quais se empenham na manutenção das hierarquias e dos sistemas de valores hegemônicos" (SILVA, 2018, p.102):

 

é a velha artimanha da direita: já que não convém mudar a realidade, pode-se acobertá-la com palavras. E que não se saiba que desigualdade social decorre da opressão sistêmica; a riqueza, do empobrecimento alheio; a homofobia, do machismo exacerbado; a leitura fundamentalista da Bíblia da miopia que lê o texto fora do contexto (BETTO, 2016, p. 67).

 

Mas nós, como a Armada de Dumbledore, vamos resistir! Com métodos diferentes, se eles tinham que permanecer em silencio, sem serem vistos, nós precisamos fazer muito barulho e jogar o foco de luz nos milhões que estão sendo prejudicados pelas medidas desse governo.

 

REFERÊNCIAS

Harry Potter e a Ordem da Fênix (Harry Potter and the Order of the Phoenix). 2007. Direção: David Yates. Distribuição: Warner Bros.

BETTO, Frei. “Escola sem Partido”? In: A ideologia do movimento Escola Sem Partido: 20 autores desmontam o discurso. Ação Educativa Assessoria, Pesquisa e Informação (Org.). São Paulo: Ação Educativa, 2016.

FERREIRA, Walace; FILHO, Alberto Alvadia. A serpente pedagógica: o projeto Escola sem

Partido e o ensino de Sociologia no Brasil. In: Revista e-mosaicos, vol. 6, n.12, ago. 2017.

Disponível em: <http://www.e-publicacoes.uerj.br/index.php/emosaicos/article/view/30272/21433>. Acesso em: 07/05/2020.

FRIGOTTO, Gaudêncio. “ESCOLA SEM PARTIDO”: IMPOSIÇÃO DA MORDAÇA AOS EDUCADORES. In: Revista e-mosaicos, vol. 5, n.9, jun. 2016. Disponível em:<https://www.e-publicacoes.uerj.br/index.php/e-mosaicos/article/view/24722>. Acesso em: 07/05/2020.

PENNA, Fernando. Programa “Escola Sem Partido”: Uma ameaça à educação emancipadora. In: GABRIEL, C. T.; MONTEIRO, A. M. e MARTINS, M. L. B. (org.) Narrativas do Rio de Janeiro nas aulas de história. Rio de Janeiro: Mauad X, 2016.

SILVA, Marília M. C. da. FRIGOTTO, Gaudêncio (org). ESCOLA “SEM” PARTIDO: esfinge que ameaça a educação e a sociedade brasileira. Rio de Janeiro: UERJ, LPP, 2017. 144 pág. In: Revista Perspectiva Sociológica, n.º 21, 1º sem. 2018. Disponível em:<https://www.cp2.g12.br › ojs › index.php › article › download>. Acesso em: 07/05/2020.



* Autor. Discente de Ciências Sociais da Universidade de Brasília. Currículo Lattes: <http://lattes.cnpq.br/4432857212289289>. Blog pessoal: <https://chicodesociais.blogspot.com/>. E-mail para contato: <franciscooctavio@hotmail.com.br>.

** Responsável por revisão do texto. Discente de Engenharia Civil do Instituto Federal Goiano – Campus Trindade. Currículo Lattes: <http://lattes.cnpq.br/5772755262137487 >. E-mail para contato: <karolaynepm@gmail.com>.

 

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