sábado, 15 de agosto de 2020

1º Quase publicação: Um olhar antropológico sobre “Nós”

 

Resumo: A antropologia, antes de tudo, é um olhar para além da visão como sentido. O que chamamos de "olhar antropológico" é a capacidade de transformar teoria em instrumento para, por exemplo, assistir ao filme "Nós" (2019) e fazer dele uma revisão dos evolucionistas Edward Burnett Tylor, Lewis Henry Morgan e James George Frazer. A partir das camadas desse terror de invasão domiciliar, retomou-se o encontro entre dois mundos que propiciou a discussão evolucionista do século XIX, eurocêntrica e reducionista, mas por meio da qual fora promovida a institucionalização da disciplina.

 

Palavras-chave: olhar antropológico, evolucionismo, invasão domiciliar, encontro entre dois mundos

 

Una mirada antropológica a "Nosotros"

 

Resumen: La antropología, en primer lugar, es una mirada más allá de la visión como significado. Lo que llamamos una "mirada antropológica" es la capacidad de convertir la teoría en un instrumento para, por ejemplo, ver la película "Nosotros" (2019) y convertirla en una revisión de los evolucionistas Edward Burnett Tylor, Lewis Henry Morgan y James George Frazer. A partir de las capas de este terror de la invasión doméstica, el encuentro entre dos mundos que propició la discusión evolutiva del siglo XIX, eurocéntrica y reduccionista, pero a través de la cual se promovió la institucionalización de la disciplina.

 

Palabra clave: mirada antropológica, evolucionismo, invasión de hogares, encuentro entre dos mundos.

 

Apresentação

Concordo com François Laplantine, quando, em “Aprender Antropologia” (2003), afirma que a antropologia, antes de tudo, é um olhar. Antes de ser campo de conhecimento, antes de ser ciência ou arte, antes de ser uma teoria do social[1] ou linguagem, a antropologia é um olhar sobre o mundo, sobre os processos macro e micro que fazem parte do cotidiano. Esse olhar, estruturante para todo o texto, é, de acordo com Oliveira (1996) "[...] uma espécie de prisma por meio do qual a realidade observada sofre um processo de refração [...]". É por meio dele que a teoria dissecada nos livros e em sala de aula passa a ser instrumento do pesquisador. Não se restringe apenas à visão como sentido, mas é uma domesticação do sistema sensorial capaz de criar uma sensibilidade etnográfica, empregada aqui de forma algo poética, para referir uma perspectiva ou abordagem singular da realidade. Todavia, a construção dessa forma de olhar sobre o mundo não foi tranquila: remonta ao auge do darwinismo social, paralelamente ao surgimento do termo “antropologia” para nomear uma área do conhecimento que pensava a humanidade como um todo (STOCKING, 2006), e voltar a esse período não é uma tarefa fácil. Para a nossa sorte, a modernidade trouxe consigo uma ferramenta útil para a ciência e prazerosa para grande parte das pessoas: o cinema.

Os filmes podem dar forma à imaginação, uma imagem pode expressar inúmeras palavras, muitas que nem mesmo conhecemos. Podem ilustrar, com metáforas ou reconstruções, realidades perdidas no tempo, ou intencionalmente apagadas. Plantar batatas em Marte ou fugir de dinossauros no centro da Terra. Todavia, não são muitos os que aproveitam todo o potencial desse tipo de arte. Há milhares de filmes que poderiam servir de pano de fundo para discussão dos mais diversos conteúdos, e quando o debate é antropológico, esses milhares se multiplicam, afinal, antropologia é, antes de tudo, um olhar.

Talvez os “clássicos” da academia, como “Tempos Modernos” (1936), “Desmundo” (2002) ou “O Enigma de Kaspar Hauser” (1974), já estejam muito batidos e, para um público mais jovem, recém-chegado ao ambiente universitário, sejam um tanto quanto entediantes, mas o universo cinematográfico não se restringe só a esses filmes “clássico”, incontáveis vezes analisados. Existem inúmeras obras recentes que possibilitam amplas discussões acadêmicas tão relevantes quanto as discussões propiciadas pelos filmes que chamei de clássicos, mas tudo indica que trazer esses elementos novos ainda é um desafio em muitas salas de aula universitárias. E é tentando colaborar para novos debates a partir de produções recentes que esse texto foi escrito.

 

Evolucionismo, terror e “Nós”

Por brilhar mais nas sutilezas, o olhar antropológico nos permite discutir filmes que atinjam um público mais amplo.  É o caso desse texto de tom ensaístico. Com um filme recém lançado e voltado para um público menos restrito, pretendo fazer apontamentos sobre o evolucionismo cultural em sua fase clássica, remontando com metáforas de um terror de invasão domiciliar às premissas dos evolucionistas Edward Burnett TylorLewis Henry Morgan e James George Frazer[2].

É desafiador treinar a nossa visão para sutilezas e metáforas, e a dificuldade aumenta quando temos como objeto de análise algo que pretende causar medo, mas o objetivo é mostrar como esse olhar antropológico pode alterar a nossa percepção, como a antropologia está contida mesmo em um filme de terror. Por que escolher um filme de terror? Por trazer as discussões sobre preconceitos e desigualdade sobre ângulos diferentes dos convencionais. Pelo desejo de mostrar como é possível aplicar o tal olhar antropológico em situações variadas.  Mas, acima de qualquer outro motivo, a escolha se deve pelo fato de a gênese da antropologia pelos evolucionistas ser assustadora. Antes de prosseguir com a leitura, recomendo fortemente que assista ao filme “Nós” (“US”, na língua original), de 2019, dirigido por Jordan Peele[3]. As reflexões que serão expostas carecerão de explanação sobre as surpresas que o filme apresenta, possivelmente atrapalhando a primeira experiência com a obra.

Jordan Peele é um ator, escritor, diretor e roteirista estadunidense que saiu da comédia, estreando como diretor em "Corra!" (Get out, 2017), vencendo a categoria de Melhor Roteiro Original no Oscar. Em 2019, coproduziu "Infiltrado na Klan" (BlacKkKlansman), vencedor do prémio de Melhor Roteiro Adaptado, e "Nós" (Us), que ficou longe da grande premiação, apesar de propiciar uma experiência incrível. Atentemo-nos a esse último, objeto desse texto.

Em síntese, “Nós” retrata a história da família Wilson, que vai à praia descansar. O pai da família é Gabriel Wilson (Winston Duke), o tipo brincalhão, buscando mais comunicação com a família. Zora Wilson (Shahadi Wright Joseph) é a filha mais velha, na fase "rebelde" da adolescência em que os sonhos dos pais deixam de ser os sonhos da filha, de busca por uma autonomia maior. O filho mais novo, Jason Wilson (Evan Alex), uma criança na transição para a adolescência, em que o vocabulário começa a mudar, que começam a dizer que a pessoa está velha demais para brincar. E a protagonista (e antagonista) Adelaide Wilson, estrelada por Lupita Nyong'o: uma mãe preocupada com os filhos e uma mulher marcada por traumas do passado. Na casa de praia encontram cópias, “humanos criados por humanos”, mas sem alma, condenados a viver como sombras, na definição da antagonista, que viviam em um mundo subterrâneo e conseguem subir ao mundo superficial, procurando, pela primeira vez, agência sobre suas próprias vidas, mesmo que para isso tenham que se sujar de sangue “inocente”.

 

Metáforas de invasão domiciliar

O filme solta inúmeras farpas aos dramas sociais contemporâneos, típicas das obras de Peele: desde uma ausência paterna, logo no início, quando o pai de Adelaide perde a filha no parque; até comportamentos racistas normalizados, como as falas da família Tyler na praia, e a própria ideia de ter pessoas vivendo “acima” (literal e metaforicamente) de outras.  É um filme com camadas: na primeira consta o terror “real”, da invasão domiciliar, de violência gráfica; na segunda, mais metafórica, a obra faz crítica a uma sociedade de privilégios que se mantém pela exploração e exclusão. É na segunda camada que esse texto encontra seu alvo de estudo, posto que as metáforas que o filme sugere podem aludir ao movimento evolucionista da antropologia no XIX.

A primeira delas é a existência de dois “mundos”, duas realidades literalmente sobrepostas: o mundo da superfície seria o europeu, com suas instituições sociais e civis supostamente mais avançadas, localizando, para os autores evolucionistas, no último degrau de uma ilusória escada evolutiva pela qual toda a “raça” humana iria passar. E o subterrâneo, as “descobertas” europeias, os nomeados “primitivos”, tidos para os europeus desse período como carentes de invenções e descobertas, em um estágio de desenvolvimento muito inferior (TYLOR, 2005 [1871]; FRAZER, 2005 [1908]; MORGAN, 2005 [1877]; STOCKING, 2006).

O primeiro contato entre pessoas desses mundos é assustador, afinal, são “iguais”[4].  Se o novo é “igual”, biologicamente, a diferença estaria no comportamento. Essa foi a premissa dos primeiros antropólogos, os evolucionistas. O método comparativo promovido por Tylor (2005 [1871]) objetivava encontrar leis universais que explicassem uma sequência natural e necessária de evolução, retirando a agência das pessoas sobre os processos históricos e sobre a própria vida. A ausência de agência é exposta de forma metafórica no filme: as pessoas do mundo subterrâneo passam involuntariamente pelos mesmos eventos que os iluminados realizam autonomamente, aludindo a escala de desenvolvimento de um povo proposta por Morgan (2005 [1877]), selvageria-barbárie-civilização, que serviu de justificativa para intervenção direta sobre a vida de outros povos a fim de fazê-los alcançar um suposto grau de desenvolvimento em que os europeus se encontravam. Teoricamente, seguia uma sequência natural e necessária, como apresentado por E. Tylor (2005 [1871]), mas poderia ser agilizado com um guia, com uma “tutela civilizatória”, uma intervenção dos ditos “civilizados” sobre os povos não europeus em que fosse demonstrado um caminho para a evolução humana[5], uma “invasão domiciliar” justificada: é só com a orientação de uma iluminada que os subterrâneos conseguem chegar à superfície.

O filme ainda ilustra o que deveria ser o maior medo dos antropólogos de gabinete[6]: o advento dos não europeus, uma ruptura violenta (literal e metaforicamente), a tomada do lugar que era dos europeus “por direito”. É possível perceber esse receio dos evolucionistas pela insistência que tinham em defender que as explicações de mundo dos “primitivos” não superavam a ciência, pois eram mágicas e/ou religiosas, convertendo-se não em conhecimento, mas em pseudo-ciência ou pseudo-arte. Nos termos do filme, esse medo seria do “desacorrentamento” proposto pela antagonista.

Ingold (1994) afirmou que a concepção de animalidade em cada geração é reconstruída partindo do que, supostamente, apenas nós, humanos, temos. Essa constatação de Ingold cai como uma luva ao observarmos que há uma construção animalesca entorno das cópias, seja pela ausência de fala, pelo modo de se locomover, pelos grunhidos: é como se houvesse uma insistência para que, quem assiste, não humanize aquelas personagens, de forma que as mortes delas não geram incômodo. Aproximadamente aos 75 minutos de filme, a família Wilson, logo após matar as cópias da família Tyler, senta para bater papo como se os cadáveres pela casa não significassem nada. O que acontece ao longo dos séculos de ocupação colonial entorno do mundo é justamente essa desumanização, de forma a reduzir o impacto das mortes, ou seja, interessados em explorar e/ou matar, cabia aos colonizadores negar aos habitantes prévios do território ocupado a humanidade, para que pudessem se sentar e bater papo em casa tranquilos, como a família Tyler fez no filme, sem o peso da morte de pares.

Quanto ao uso da violência como reflexo de uma barbárie/selvageria: tanto os iluminados quanto os subterrâneos recorrem à violência, o que colocaria os dois em um mesmo patamar[7]. E, no final do filme, quando temos a confirmação de que Red pertencia ao mundo da superfície e Adelaide pertencia ao mundo subterrâneo, fico inquieto com qual seria o real invasor. Outra reflexão que pode ser extraída desse mesmo ponto é sobre o que somos capazes de fazer depois que ascendemos socialmente a fim de nos mantermos no “topo”.

 

Conclusão

Por fim, é necessário deixar evidente que toda interpretação é particular e única, ligada ao contexto de vida de cada pessoa. E é essa a graça de todo tipo de arte: o choque entre diferentes interpretações/visões de mundo. Com esse texto em tom ensaístico objetivei aplicar um olhar antropológico sobre uma obra cinematográfica e trazer algo sobre a discussão evolucionista, imbrincada no surgimento da antropologia. A visão dos evolucionistas, apesar de pioneira, foi eurocêntrica, preconceituosa e reducionista, entre outros adjetivos pejorativos, mas não é por isso que se deve negar a existência dessa primeira escola de pensamento ou deixar de reconhecer os pontos positivos que ela propiciou: a institucionalização da disciplina, um primeiro objeto (o “primitivo”), um primeiro método (o comparativo). Sem o trabalho desses “colecionadores de borboleta”, a antropologia provavelmente estaria ainda anexa à Sociologia ou à História.

Espero encorajar alguns leitores, como foi feito com “Nós” (2019) e as teorias evolucionistas, a pensarem as relações entre humanos e não-humanos com “Dolittle" (2020),  as teorias econômicas malthusianas a partir de “Vingadores: Ultimato” (2019), as revoluções e contrarrevoluções a partir da saga “Jogos Vorazes” (2012-2015) ou ainda o programa “Escola Sem Partido” no filme “Harry Potter e a Ordem da Fênix" (2007).  Igualmente espero que com esse escrito tenha demonstrado uma parte ínfima do que esse olhar antropológico é capaz. Ele nos possibilita enxergar um outro mundo, não superior nem inferior, mas paralelo, para além do postulado da alteridade. E talvez a maior missão do antropólogo seja possibilitar esse olhar a toda a sociedade, construindo um ambiente de convivência menos predatório e mais cooperativo, valorizando os múltiplos saberes que vão para muito além da academia.


[1] Raewny Connel propõe, em “A iminente revolução na teoria social”, que o principal produto da antropologia deve uma teoria do social, que leve em conta os aspectos socioeconômicos e geopolíticos da realidade em que é praticada. Um ponto de vista muito diferente do evolucionismo, alvo desse texto.

[2] Com publicações entre 1871 e 1908, embora essa tradição não se restrinja a esses três autores.

[3] Jordan Peele é um ator, escritor, diretor e roteirista estadunidense que iniciou sua carreira na comédia estando no elenco de MADtv entre 2003 e 2009. Junto com Michael Key, criou o programa Key e Peele (2012-2015) que tratava de forma bem humorada de cultura popular estadunidense, estereótipos e críticas sociais. Em 2017, Peele deu um salto em sua carreira estreando como diretor em "Corra!" (Get out), um longa de terror instigante que joga luz sobre o racismo pós-Obama por uma ótica inusitada. Com essa obra Jordan Peele se consagrou como primeiro negro a vencer a categoria de Melhor Roteiro Original no Oscar, abrindo espaço para filmes com teor crítico nas principais categorias da premiação. Em 2019, o drama policial com pitadas de comédia "Infiltrado na Klan" (BlacKkKlansman) coproduzido por Peele levou o Oscar de Melhor Roteiro Adaptado, reforçando a crítica ao racismo que permeia toda a jornada profissional do diretor. No mesmo ano, o filme "Nós" (Us) veio para comprovar que o terror é onde Peele consegue mais destaque, apesar de ter sido esquecido pela grande premiação.

[4] No filme: literalmente igual; metaforicamente, biologicamente iguais.

[5] Nos escritos de Frazer (2005 [1908]), a suposição problemática em que os primitivos eram tidos como pouco intelectuais que careciam de liderança e deveriam ser governados é evidente.

[6] Pesquisadores que não faziam pesquisa em campo, que escreviam suas teses a partir de relatos de outras pessoas, a exemplo de viajantes, missionários, comerciantes

[7] É fato que a inferiorização criada pelos iluminados gera incômodo nos subterrâneos, mesmo que os indivíduos não tenham culpa por terem nascido na superfície ou no mundo “inferior”, mas isso de maneira nenhuma justifica o uso da força, bem como nada deveria justificar.

 

REFERÊNCIAS

CONNEL, Raewyn. A iminente revolução na teoria social. In: RBSC, vol.27, n°80. 2012.

FRAZER, James George. “O escopo da antropologia social”. In: Evolucionismo cultural – Textos de Morgan, Tylor e Frazer. Castro, Celso (org.) Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor. 2005 [1908].

INGOLD, Tim. Humanidade e Animalidade. Tradução: Vera Pereira. Companion Encyclopedia of Anthropology, Londres, Routledge. 1994.

LAPLANTINE, François. Aprender Antropologia. São Paulo: Editora Brasiliense, 2003.

MORGAN, Lewis Henry. “Sociedade antiga”. In: Evolucionismo cultural – Textos de Morgan, Tylor e Frazer. Castro, Celso (org.) Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor. 2005 [1877].

Nós, Us (Original). Direção de Jordan Peele. Estados Unidos da América: Universal, 2019. P&B.

OLIVEIRA, R. O trabalho do Antropólogo: olhar, ouvir, escrever. Revista de Antropologia, v. 39, n. 1, p. 13-37, 6 jun. 1996.

STOCKING, GEORGE W. Jr. Tradições Paradigmáticas na História da Antropologia. Teoria e Sociedade, 13 (2). Belo Horizonte. 2006.

TYLOR, Edward. B. “A ciência da cultura”. In: Evolucionismo cultural – Textos de Morgan, Tylor e Frazer. Castro, Celso (org.) Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor. 2005 [1871].

 

HOGWARTS E O PROGRAMA “ESCOLA SEM PARTIDO”

 

FRANCISCO OCTÁVIO B. DE SOUSA*

KAROLAYNE PERES DE MELO **

 

RESUMO: Em dezembro de 2019 o projeto de lei 7180/14, vulgo “Escola Sem Partido”, retornou ao congresso. Em abril de 2020, o tema voltou ao Supremo Tribunal Federal. O texto a seguir tem por objetivo demonstrar de forma didática, através do filme "Harry Potter e a Ordem da Fênix" (2007) alguns dos problemas do projeto de lei 7180/14. Para cumprir tal objetivo, são feitos cruzamentos entre textos de especialistas, como Fernando Penna e Gaudêncio Frigotto, e partes do filme. Com uma escrita simples e concisa, visa-se alcançar o maior número possível de pessoas. Organiza-se em quatro partes: "O retorno", em que apresenta-se o projeto de lei 7180/14; "O filme", onde o leitor vai encontrar uma síntese do filme; "ESP em Hogwarts", em que mesclamos filme e textos; e "Um pouco mais de Brasil", encerramento do texto com considerações sobre o nosso país hoje, maio de 2020.

 

PALAVRAS-CHAVE: “Escola Sem Partido”; "Harry Potter e a Ordem da Fênix"; Fernando Penna; Gaudêncio Frigotto.

 

O RETORNO

2020 definitivamente não tem sido um ano fácil, mas infelizmente esse texto não foi feito pra acalmar alguém. Pelo contrário, o intuito é justamente chamar atenção para mais um problema. Estamos tontos no meio dessa pandemia que ganhou um tempero político, econômico e social no Brasil, mas a verdade é que o governo Bolsonaro não tem avançado só na sua proposta de desgaste dos poderes constituídos. No longínquo dezembro de 2019, Rodrigo Maia abriu uma Comissão Especial no congresso para tratar do projeto de lei 7180/14, o “Escola Sem Partido” (ESP). Em abril de 2020, no meio da zona em que vivemos, o tema voltou ao Supremo Tribunal Federal (STF) que declarou inconstitucional, por unanimidade, uma lei municipal de Novo Gama (Goiás) que proibia o debate sobre identidade de gênero em escolas. Porem essa é só uma das 15 ações relacionadas ao ESP que figuram no STF.

Pra quem não se lembra, segue um pequeno resumo:

 

Criado em 2004, o ESP apresenta-se como uma iniciativa conjunta de estudantes e pais preocupados com o que chamaram de “grau de contaminação político-ideológica das escolas brasileiras”. A centralidade de suas ações e concepções está num site que atua com os objetivos de veicular ideias, instrumentalizar denúncias, disseminar procedimentos de vigilância, além de controlar e criminalizar o que seus membros entendem como “práticas doutrinárias” realizadas em salas de aula e presentes em materiais escolares e acadêmicos, livros didáticos e programas formativos. [...] Há uma relação próxima do ESP com a direita brasileira. A proposta foi apresentada pela primeira vez em forma de projeto de lei em 2014, no estado do Rio de Janeiro, pelo deputado Flávio Bolsonaro (PSC/RJ). A segunda vez, ainda nesse ano, foi no município do Rio de Janeiro, pelo vereador Carlos Bolsonaro (PSC/RJ), ambos filhos do deputado federal Jair Bolsonaro (PSC/RJ). (FERREIRA E ALVADIA FILHO, 2017, p.65-66).

 

O discurso é atrativo para muitas mães e pais, pois trata “de valores como moral, ética, laicidade e liberdade no âmbito da pluralidade, quando, na verdade, supõe a supressão da pluralidade em favor de um ensino que se pretende estéril e unidimensional, estimulando o denuncismo, o controle e o cultivo a valores nocivos pedagogicamente” (FERREIRA E ALVADIA FILHO, 2017, p.64). Não quer acreditar em mim e nesses autores? Pois bem, esse texto tem por objetivo demonstrar o que seria o ESP na prática, através de uma obra, tanto literária quanto fílmica, muito famosa e que com certeza você já ouviu falar: Harry Potter (HP).

 

O FILME

A saga conta com, ao menos, oito títulos. Mas aqui vamos nos centrar no quinto filme: Harry Potter e a Ordem da Fênix. Um brevíssimo resumo: durante as férias HP e seu primo são atacados por dementadores em uma região habitada por trouxas. Harry usou um feitiço para defender a si e a seu primo e por isso foi convocado ao Ministério da Magia correndo o risco de ser expulso de Hogwarts por usar magia fora da escola. Dumbledore defende HP no julgamento, ganhando a causa e permitindo que Harry retorne a Hogwarts. Todavia, assim que o ano letivo começa, descobrimos que Dolores Umbrigde ocupou a cadeira de Defesa Contra as Artes das Trevas, demonstrando a interferência do Ministério da Magia em Hogwarts. Em sala, o método de Dolores era mecanicista, desestimulando o pensamento crítico e o aprendizado em equipe. Para além dos portões da escola, o Profeta Diário focou esforçou para destruir a imagem de HP e Dumbledore, ambos defendiam que o Lorde das Trevas havia retornado, porem o ministro da magia insistia no contrário. Como consequência, HP se tornava cada vez mais isolado em Hogwarts e até mesmo Dumbledore evitava conversar com o protagonista. Isolado, pós discussão em sala com Dolores Umbrigde, Harry passou a ser vítima de tortura física. Ao perceber, os amigos do garoto contam à professora Minerva McGonagall que protagoniza uma discussão pública com Umbrigde. Essa última apela à autoridade do ministro da magia e afirma poder denunciar Minerva por traição. Dolores passou a acumular mais e mais poderes, com uma postura cada vez mais moralista, chegando a demitir uma das professoras, Sibila Trelawney, que só não é expulsa por interferência do diretor. Do lado de fora, o ministro da magia criava teorias alopradas sobre Dumbledore querer tomar o ministério. Essa criação de inimigos imaginários tinha consequência direta nas aulas cada vez mais unidimensionais, a fim de que alunos não-treinados não pudessem integrar um suposto movimento golpista liderado pelo diretor de Hogwarts. Todavia os alunos não assistem passivamente essa série de eventos, juntos passam a compor uma organização chamada “Armada de Dumbledore”, um primeiro ato de desobediência civil em que aprendiam juntos o que lhes era negado em sala de aula. Os mandos de Dolores eram cada vez mais autoritários, recrutando alunos para policiar os demais, permitindo interrogatórios sobre “atividades suspeitas”, proibindo organizações estudantis, enfim, criando medo. A Armada de Dumbledore continuava com suas atividades paralelas até ser encontrada por Dolores. Dumbledore é acusado de conspiração e foge. Umbrigde agora ocupava o cargo mais alto de Hogwarts, adotando tortura em massa e criminalizando até mesmo as artes plásticas. Enquanto isso, o ministro e a imprensa seguiam adotando uma posição negacionista, mesmo caindo em descrédito. Dolores adotava métodos cada vez mais violentos, invocando a “questão de segurança”. A loucura era tanta que os alunos acabam enganando a tirana de rosa, que é sequestrada por centauros, pois estavam perdendo território. Com uma batalha entre Dumbledore e Voldmort no ministério, presenciada pelo ministro, torna-se impossível seguir com negacionismo e é assim que termina esse filme.

 

ESP EM HOGWARTS

Agora vamos ponto a ponto. O filme já começa com um julgamento em que o objetivo é justamente silenciar um aluno. Falhando em expulsá-lo, o ministro, juntamente a mídia, passa a desqualificar tanto HP quanto Dumbledore. Por que desqualificar o diretor de Hogwarts é importante? “A desconfiança em relação ao educador é um dos pilares do ESP e se traduz numa ameaça constante ao seu trabalho em sala de aula, entendendo-o como um tradutor “perigoso” do conhecimento diante de estudantes supostamente vulneráveis à chamada doutrinação” (FERREIRA E ALVADIA FILHO, 2017, p.71). E é justamente essa desconfiança que possibilita a intervenção na escola.

Dolores Umbrigde ocupou exatamente a cadeira de Defesa Contra as Artes das Trevas, uma das matérias mais importantes para o treinamento defensivo dos alunos, além de ser uma das mais queridas matérias. Uma vez professora de Defesa Contra as Artes das Trevas, Dolores

 

“[...] quebra o que define a relação pedagógica e educativa: uma relação de confiança, de solidariedade, de busca e de interpelação frente aos desafios de uma sociedade cuja promessa mais clara, para as novas gerações, é de “vida provisória e em suspenso”. Esta pedagogia de confiança e diálogo é substituída pelo estabelecimento de uma nova função para alunos, pais, mães: dedo-duro” (FRIGOTTO,2016, p.13).

 

Fora que com o método avaliativo empregado por Dolores, em que, como bem apontado por Hermione Granger, “não precisa pensar” e "Decreta-se a idiotização dos docentes e dos alunos, autômatos humanos a repetir conteúdos que o partido único, mas que se diz sem partido, autoriza a ensinar" (FRIGOTTO, 2016, p.12).

Com os decretos, Umbrigde incentivava a "[...]supressão da pluralidade em favor de um ensino que se pretende estéril e unidimensional, estimulando o denuncismo, o controle e o cultivo a valores nocivos pedagogicamente" (FERREIRA E ALVADIA FILHO, 2017, p.64). Ou criar uma milícia de alunos para vigiar os demais, autorizar interrogatórios sem objeto determinado e proibir organizações estudantis não se tratam exatamente de supressão da pluralidade e estimulo ao denuncismo? Isso porque nem se quer foi preciso citar tortura física.

Do ponto de vista administrativo, a demissão da professora Sibila Trelawney é a demonstração de que Dolores, a nossa interventora do ESP, “[...] desconsidera o saber profissional dos professores, por isso exclui dos princípios da Educação a sua liberdade para ensinar e a pluralidade de concepções pedagógicas” (PENNA, 2016, p.51). Enquanto isso, para além de Hogwarts, o ministro segue criando inimigos imaginários, favorecendo a vigilância sobre os professores e principalmente Dumbledore. Essa estratégia de apontar um inimigo constantemente lembra uma estratégia dos defensores do ESP, ao desumanizar professores "[...]os quais [supostamente] contaminariam as escolas brasileiras com suas visões de mundo “petistas”, “petralhas” ou “esquerdistas” e recheadas com “ideologia de gênero”. O professor precisa então ser fiscalizado, controlado e denunciado para evitar que aprisione os estudantes, sua audiência cativa" (SILVA, 2018, p.100).  É nessa mesma linha de pensamento que a arte passa a ser também criminalizada.

Encerrando essa analise geral do filme, a Armada de Dumbledore é muito significativa, pois ela é a prova de que Dolores, bem como o ESP estão errados ao

 

"Perceber os alunos como sujeitos é justamente o contrário de percebê-los como passivos. [...] O programa Escola sem Partido não só representa os alunos como figuras absolutamente passivas, a proposta apresenta-se como uma política de escolarização que reduziria enormemente o espaço para que os alunos pudessem revelar-se como sujeitos em sala de aula. [...] É pior que uma prisão" (PENNA, 2016, p.55).

 

UM POUCO MAIS DE BRASIL

Falando mais de Brasil, para encerrar. Alguns devem estar se perguntando “ah, mas as escolas nem estão abertas, por que tratar disso agora?” Porque as ideias do ESP orientam o ministro da deseducação! O MEC (Ministério da Educação) e o MCTIC (Ministério da Ciência, Tecnologia, Inovações e Comunicações) vêm atacando as humanidades a nível superior, com corte de bolsas, e básico, com diminuição de carga horária. Por outro flanco, o ministro da economia segue nas tentativas de acabar com a estabilidade de funcionários públicos, congelar salários, minando a carreira docente. Agora querem forçar o ENEM (Exame Nacional do Ensino Médio) no ano em que as escolas públicas fecharam e pouquíssimas lecionaram via EaD (Educação a distância), que por si só já renderia um grande debate. Não há competição justa nesse neoliberalismo tosco que esse governo defende. Fato é que "Quando a escola pública passou a ser encarada como um veículo de ascensão social das classes trabalhadoras, recebeu fortes ataques dos setores conservadores, os quais se empenham na manutenção das hierarquias e dos sistemas de valores hegemônicos" (SILVA, 2018, p.102):

 

é a velha artimanha da direita: já que não convém mudar a realidade, pode-se acobertá-la com palavras. E que não se saiba que desigualdade social decorre da opressão sistêmica; a riqueza, do empobrecimento alheio; a homofobia, do machismo exacerbado; a leitura fundamentalista da Bíblia da miopia que lê o texto fora do contexto (BETTO, 2016, p. 67).

 

Mas nós, como a Armada de Dumbledore, vamos resistir! Com métodos diferentes, se eles tinham que permanecer em silencio, sem serem vistos, nós precisamos fazer muito barulho e jogar o foco de luz nos milhões que estão sendo prejudicados pelas medidas desse governo.

 

REFERÊNCIAS

Harry Potter e a Ordem da Fênix (Harry Potter and the Order of the Phoenix). 2007. Direção: David Yates. Distribuição: Warner Bros.

BETTO, Frei. “Escola sem Partido”? In: A ideologia do movimento Escola Sem Partido: 20 autores desmontam o discurso. Ação Educativa Assessoria, Pesquisa e Informação (Org.). São Paulo: Ação Educativa, 2016.

FERREIRA, Walace; FILHO, Alberto Alvadia. A serpente pedagógica: o projeto Escola sem

Partido e o ensino de Sociologia no Brasil. In: Revista e-mosaicos, vol. 6, n.12, ago. 2017.

Disponível em: <http://www.e-publicacoes.uerj.br/index.php/emosaicos/article/view/30272/21433>. Acesso em: 07/05/2020.

FRIGOTTO, Gaudêncio. “ESCOLA SEM PARTIDO”: IMPOSIÇÃO DA MORDAÇA AOS EDUCADORES. In: Revista e-mosaicos, vol. 5, n.9, jun. 2016. Disponível em:<https://www.e-publicacoes.uerj.br/index.php/e-mosaicos/article/view/24722>. Acesso em: 07/05/2020.

PENNA, Fernando. Programa “Escola Sem Partido”: Uma ameaça à educação emancipadora. In: GABRIEL, C. T.; MONTEIRO, A. M. e MARTINS, M. L. B. (org.) Narrativas do Rio de Janeiro nas aulas de história. Rio de Janeiro: Mauad X, 2016.

SILVA, Marília M. C. da. FRIGOTTO, Gaudêncio (org). ESCOLA “SEM” PARTIDO: esfinge que ameaça a educação e a sociedade brasileira. Rio de Janeiro: UERJ, LPP, 2017. 144 pág. In: Revista Perspectiva Sociológica, n.º 21, 1º sem. 2018. Disponível em:<https://www.cp2.g12.br › ojs › index.php › article › download>. Acesso em: 07/05/2020.



* Autor. Discente de Ciências Sociais da Universidade de Brasília. Currículo Lattes: <http://lattes.cnpq.br/4432857212289289>. Blog pessoal: <https://chicodesociais.blogspot.com/>. E-mail para contato: <franciscooctavio@hotmail.com.br>.

** Responsável por revisão do texto. Discente de Engenharia Civil do Instituto Federal Goiano – Campus Trindade. Currículo Lattes: <http://lattes.cnpq.br/5772755262137487 >. E-mail para contato: <karolaynepm@gmail.com>.

 

RESENHA: AS DONAS DA PALAVRA, D. SIMIÃO

 Francisco O. B. Sousa

Timor Leste era um país com poucas industrias e população predominantemente rural. O acesso há energia elétrica era limitado para a maior parte da população. As famílias eram grandes, com uma média de 7,5 filhos por casal. O país foi tutelado por outros países e órgãos internacionais por um longo período, o que tem reflexo não só sobre os tipos de tomada ou saída de gás, mas também sobre o sistema jurídico, as línguas e o entendimento social sobre o papel do estado. Desse modo, a população dispersa pelo território, organizou-se de maneiras autônomas e variadas (SIMIÃO, 2005, p.09-121).

A inserção na realidade capitalista promoveu diversas mudanças, mas o autor trata com propriedade do papel da mulher: se antes era vista apenas como “doadora de vida” e responsável pelos afazeres domésticos, no sistema capitalista uma massa de mulheres passou a trabalhar fora se tornando responsável pelo sustento da família e pela inserção dos parentes na nova realidade dinâmica, aproximando o papel feminino do masculino. Essa aproximação não foi muito duradoura, posto que surgem movimentos de resistência a ocidentalização do país, as pessoas retomam antigos costumes como forma de luta. No caso das mulheres o antigo costume adotado foi o uso do véu e a imagem feminina é novamente ressignificada: agora uma mulher grávida tem maior peso social que uma mulher que trabalha fora (SIMIÃO, 2005, p.09-45).

Outra consequência dessa resistência foi o fortalecimento dos sistemas de poder local, mas já inseridos na sociedade capitalista, de forma que existiam três esferas de convívio social e, por consequência, de batalha por legitimidade: a casa, a aldeia e o Estado. Em cada esfera existiam padrões e hierarquias que, à primeira vista, parece-nos extremamente desiguais para as mulheres, permitindo, por exemplo, no âmbito do lar e da aldeia, castigos físicos. É esse o panorama geral do texto de Daniel Schroeter Simião (SIMIÃO, 2005, p.45-148).

O antropólogo observou em Timer Leste os conflitos entorno dos diretos das mulheres, em especial, sobre a construção da violência doméstica e os pesares desse processo majoritariamente internacional. Nesse sentido, existiu uma agenda de ressignificação de “processos educacionais violentos” intrafamiliares, comuns na sociedade timorense, uma agenda que estava longe de ser progressiva e participativa, apesar de rotular-se com essas duas características. Um exemplo da radicalização foi o discurso de “gender”: a exigência de uma inserção feminina na tomada de decisão e uma retirada dos processos de violência do âmbito do poder local/tradicional, mesmo que contra a vontade das próprias mulheres, chegando, no extremo a retirar qualquer agência feminina. A discussão é compreensível, bem como a radicalização, todavia, a proposta que apresentou à sociedade (de um rompimento total com os “poderes tradicionais”) é um tanto quanto questionável (SIMIÃO, 2005, p.51-94;231-247).

O autor verificou um avanço considerável na legislação feminina no período em que permaneceu no país. Criou-se uma nova instância de poder, a delegacia, que abriu possibilidade para conciliação de casos que não foram resolvidos nos níveis do lar ou do poder local. (SIMIÃO, 2005, p.152-228).

O Estado, na mesma linha do discurso de “gender”, insistiu em não considerar o pluralismo jurídico de “legislação” tradicional e estatal. Todavia, mesmo que o poder local/tradicional não tenha tido reconhecimento do Estado, as próprias pessoas garantiram sua legitimidade, numa lógica de subversão dos sistemas: as pessoas reconheciam o pluralismo jurídico utilizando as diferentes vias jurídicas de maneira a atender seus interesses pessoais (por exemplo: se a pena obtida por via estatal não suprisse o esperado pela acusação, essa submetia o processo a via tradicional) (SIMIÃO, 2005, p.231-247).

Cabe uma observação sobre essas “vias legais”: enquanto a via estatal estava preocupada com a punição, a via tradicional se preocupava com a conciliação/mediação, de forma que o sujeito saia reintegrado à sociedade. Nessa lógica, se observamos a proposta da “Divisão do trabalho social” (DURKHEIM, 1893) o caráter penal/punitivo das leis é atribuído as “sociedades de organização simples”, enquanto o caráter restitutivo é característico das sociedades modernas. O que se verificou no Timor Leste parece o exato oposto.

A preocupação de Daniel Simião não estava na dualidade moderno/tradicional, até porque a antropologia já superou esse momento, mas na construção da violência doméstica, nos espaços para o seu debate e na reação dos indivíduos. A violência doméstica passa a existir a partir de um momento que a dor física não é a única existente na agressão: ganha espaço também uma “dor moral” e essa “dor moral” só surgem após a ampla divulgação de uma outra forma de viver que não com a agressão. Essa divulgação é feita de inúmeras maneiras no Timor Leste e organizada, predominantemente, por órgãos internacionais. Foram empregados cartazes, reuniões, programas de televisão e rádio. Tudo isso contribui para uma relação aparentemente participativa entre Estado e sociedade, o que na realidade não existe: o Estado já tinha um ponto onde queria chegar e só guiou as pessoas para esse ponto, mesmo que não fosse uma decisão democrática (SIMIÃO, 2005).

O próprio espaço de debate a cerca da criação e criminalização da violência nunca foi pensando, pelo Estado, para incorporar ideias do poder local. De forma que, quando efetivado, surgiram alguns problemas, a exemplo da lentidão estatal em lidar com os processos, em oposição ao poder local que tomava decisões imediatas e levava em consideração não apenas o ato em si, mas o que podia ter levado ao ato, dando voz aos envolvidos, fato que o “tribunal legal” não conseguia. Outro ponto de crítica aberto pelo Estado é a questão da diversidade linguística: nas traduções muito do sentido original pensado para as legislações se perde, abrindo brecha para interpretações pessoais dos juízes (que muitas vezes não são nacionais) e autoritarismos (SIMIÃO, 2005, p.295-228).

De qualquer forma, é um processo longo e impossível de ser pensado e aplicado no curto prazo, como o discurso de “gender” pregava. As modificações devem ser feitas a partir de resultados práticos levando em conta a efetividade das decisões aplicadas: um bom exemplo de modificação no mínimo duvidosa são as delegacias, que começaram com um relativo sucesso na resolução de problemas numa linha de mediação, todavia essa linha desrespeitava, em parte, o pensamento individualista que guiava tanto o discurso de “gender” como o da jurisdição legal, fazendo com que se obrigasse a passagem de todos os casos de violência doméstica pelos tribunais: uma vitória momentânea para o eixo individualista. Momentânea pelo fato de que os tribunais continuaram na linha de mediação tão criticada pelos adeptos do discurso de “gender”. A questão é que a mediação era eficaz para os envolvidos, evita-la enfraquecia a instituição jurídica nascente, que devia buscar apoio nos meios tradicionais de justiça e não se opor a eles (SIMIÃO, 2005, p.231-247).

Concluo o curtíssimo resumo da obra de D. Simião, apontando a concordância com medidas que apresentem um outro jeito de pensar a vida em coletividade e não a imposição desse outro jeito, de forma a acabar exaltando o discurso evolucionista tão problemático. Ao antropólogo, cabe, como Simião aponta, a observação (crítica sim, mas não autoritária) da sociedade e a apresentação de outras formas de pensar não só a sociedade timorense, mas parte das sociedades que vivem problemas com a violência, como o Brasil (SIMIÃO, 2005).

Quanto a estrutura do texto, seria interessante que o autor ocupasse um ou dois parágrafos apresentando um panorama geral do país, como feito nesse singelo resumo, descrevendo, por exemplo, a questão da ausência de fornecimento de energia que tem um impacto enorme na sociedade. Outras informações, como a presença de vários códigos jurídicos e a presença de juízes não-nacionais ou o conflito que envolve a adoção do português como língua oficial ou ainda a taxa de natalidade, estão dispersas no texto e, se apresentadas na introdução, ajudariam na composição imaginaria do leitor sobre sociedade timorense.  

Das reflexões sobre o texto, o autor tem um zelo muito importante para não cair no discurso evolucionista e nem na dualidade primitivo e moderno, apontando essas características nos projetos dos quais participou. A posição, em parte, neutra ao tratar do papel do antropólogo quanto a observação e o diálogo são questões que precisam ter sua relevância garantida, posto que, apesar de toda profissão e todo discurso serem políticos, o ativismo tem seus espaços, sendo (muitas vezes) negado pela academia. Ainda nesse sentido, o foco em “apresentar” (e não “impor”) uma outra visão de mundo é de relevância primeva. As aberturas para a discussão sobre o país de origem do pesquisador, o Brasil, também são válidas e é a partir delas que os próximos comentários foram tecidos.

Ao se debruçar sobre o texto observa-se muitas contradições com o restante do mundo, mas (o que é assustador) muitas similitudes com o Brasil. A “violência pedagógica” só foi expurgada, ao menos no âmbito infantil, em 2014 pela lei n° 13.010:

“A criança e o adolescente têm o direito de ser educados e cuidados sem o uso de castigo físico ou de tratamento cruel ou degradante, como formas de correção, disciplina, educação ou qualquer outro pretexto [...]” (LEI Nº 13.010, DE 26 DE JUNHO DE 2014).

 

Cabe a inserção do comentário de uma mãe e professora da rede pública e de um colégio particular: na opinião desta senhora:

“Quanto ser mãe, era mais comum [antes da lei] ver crianças apanhando muito, não existia um limite, ninguém interferia. Como se as crianças demonstrassem uma educação maior, mas não era bem educação, era opressão, medo mesmo. A lei só veio para ajudar. A professora já fazia o papel de curar as tristezas das crianças, mas era natural, todo mundo sabia que batia mesmo. Depois da lei, de certa forma, os pais abandonaram a criação dos filhos e atribuíram à escola, aos psicólogos. Só que a realidade de escola particular é uma e de escola pública é outra: na particular o diálogo é crescente, na pública ainda batem muito, castigam brutalmente, de forma muito violenta e velada, velada até para o Conselho Tutelar não entrar e tomar.”

 

A crítica é feita quanto a “violência educacional” e a sua eficácia por imposição do medo/opressão. Por outro lado, recai sobre os professores e profissionais voltados ao cuidado infantil a missão de “curar as tristezas”, que é intensificada depois das leis, quando, na fala da entrevistada “os pais abandonaram a criação dos filhos”. E a realidade muda também conforme a realidade econômica de cada família. 

Na questão de direitos femininos: apesar de começarmos a reconhecer o protagonismo feminino e reservar garantias as mulheres a muitos anos, a intenção de proteção parece não  ser sobre a mulher como indivíduo, mas da virgindade e da “honestidade”, próximo as jurisdições tradicionais do Timor Leste: o decreto Nº 847, de 11 de outubro de 1890, previa punição para atentado contra o pudor e para estupro com diferenças para “mulher virgem ou não, mas honesta” (1-6 anos) e “mulher publica ou prostituta” (1-2 anos). Veja que o “fim” da realização do atentado abre brecha para agressão na esfera doméstica.

 No Código Civil de 1916, a relação de dependência entre mulher e homem era reforçada, cerceando atos das mulheres a depender de aprovação do esposo, a exemplo do exercício de alguma profissão. A questão fica mais incomoda se olharmos para produções músicas da época, que refletem a dependência e o “bater com amor” a que Simião faz referência em seu texto. Se caracterizando como violência física e de cunho econômico, a exemplo de:

Amor de malando (Francisco Alves, 1929): Vem, vem; Que eu dou tudo a você; Menos vaidade; Tenho vontade; Mas é que não pode ser; O amor é o do malandro; Oh, meu bem; Melhor do que ele ninguém; Se ele te bate; É porque gosta de ti; Pois bater-se em quem; Não se gosta; Eu nunca vi.

 

Já a Constituição de 1934 da passos importantes quanto a igualdade de gênero com o seguinte artigo: “Todos são iguais perante a lei. Não haverá privilégios, nem distinções, por motivo de nascimento, sexo, raça, profissões próprias ou dos pais, classe social, riqueza, crenças religiosas ou idéias políticas”. Com a implantação do Estado Novo em 1937, a repressão dos direitos femininos é retomada. Todavia, o regime varguista é contraditório, apresentando, no Código Civil de 1940, medidas que garantiam a emancipação feminina (ao menos do ponto de vista de posses). E as produções musicais podem, mais uma vez, ilustrar a contradição evidente da Constituição de 34 e das vozes dissonantes nas entrevistas apresentadas por D. Simião:

Ciúmes (Ultraje a rigor, 1985): Eu quero levar; Uma vida moderninha; Deixar minha menininha; Sair sozinha; Não ser machista; E não bancar o possessivo; Ser mais seguro; E não ser tão impulsivo; Mas eu me mordo de ciúme; Meu bem me deixa; Sempre muito à vontade; Ela me diz que é muito bom; Ter liberdade; E que não há mal nenhum; Em ter outra amizade; E que brigar por isso; É muita crueldade.

 

Já em 1988, com o fim da Ditadura Militar e a efervescência da discussão política para a construção de um estado mais igual, a Constituição Cidadã deu enormes passos em direção as garantias femininas. E, em 1990, o estupro é reconhecido como crime hediondo. Todavia, as músicas produzidas posteriormente são um tanto quanto macabras, evidenciando não só a violência, mas o seu extremo, o feminicídio:

Maria Chiquinha (Sandy e Junior, 1991): Os passarinhos comeram tudo; Então eu vou te cortar a cabeça, Maria Chiquinha; Então eu vou te cortar a cabeça; Que você vai fazer com o resto, Genaro, meu bem?;Que você vai fazer com o resto?;O resto? Pode deixar que eu aproveito.

 

Faixa amarela (Zeca Pagodinho, 1999): Mas se ela vacilar, vou dar um castigo nela; Vou lhe dar uma banda de frente; Quebrar cinco dentes e quatro costelas; Vou pegar a tal faixa amarela; Gravada com o nome dela; E mandar incendiar; Na entrada da favela.

 

Em 2006 é sancionada uma lei que se tornou um marco na luta por emancipação feminina: a lei n° 11.340, mas conhecida como Lei Maria da Penha, criando “mecanismos para coibir a violência doméstica e familiar contra a mulher”. No âmbito musical, a resposta vem na ressignificação (uma espécie de amor violento/possessivo) da violência com um sucesso nacional:

Esse cara sou eu (Roberto Carlos, 2012): O cara que pega você pelo braço; Esbarra em quem for que interrompa seus passos; Está do seu lado pro que der e vier; O herói esperado por toda mulher; Por você ele encara o perigo; Seu melhor amigo; Esse cara sou eu.

 

Por fim, em 2015, o feminicídio é reconhecido como crime hediondo pela lei n° 13.104. O que fica de lição? A transição de pensamento é gradual, no caso brasileiro o processo foi iniciado em 1890, andando a curtos passos e com muito a ser conquistado ainda. Dessa forma, D. Simião está certo em criticar o discurso de “gender” por retirar a autonomia timorense e pregar uma radicalização que, ao contrario do que se espera, tende a afastar as pessoas do estado e fortalecer os vínculos tradicionais tão criticados pelos adeptos de “gender”. É preciso reconhecer que a violência é sempre ressignificada e responder a essas ressignificações, e, encerro com isso, mais uma vez as músicas brasileiras são emblemáticas ilustrando a possessão e chegando no extremo do rapto:

Vidinha de balada (Henrique e Juliano, 2017): Oi, tudo bem? Que bom te ver; A gente ficou, coração gostou não deu pra esquecer; Desculpe a visita, eu só vim te falar; 'Tô afim de você e se não tiver 'cê vai ter que ficar;  Eu vim acabar com essa sua vidinha de balada; E dar outro gosto pra essa sua boca de ressaca; Vai namorar comigo sim; Vai por mim igual nós dois não tem; Se reclamar 'cê vai casar também, com comunhão de bens; Seu coração é meu e o meu é seu também.

 

Surto de amor (Bruno e Marrone; Jorge e Mateus, 2019): Ela 'tava tão linda; Mesmo abraçando ele; O amor da minha vida; Sendo exibida de troféu por ele; Vez ou outra me olhava; Como quem diz, vem cá; E na frente do povo, num surto de amor; Peguei ela nos braços e a festa parou.

 

FONTES

SIMIÃO, Daniel. As donas das palavras. Gênero, justiça e invenção da violência doméstica em Timor Leste. UnB, 2005.

 

DURKHEIM, Émile. Da Divisão do Trabalho Social. São Paulo: Martins Fontes, 2015[1893].

 

LEI Nº 13.010, DE 26 DE JUNHO DE 2014.

 

DECRETO Nº 847, DE 11 DE OUTUBRO DE 1890.

 

CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA DOS ESTADOS UNIDOS DO BRASIL (DE 16 DE JULHO DE 1934).

 

DECRETO-LEI N o 2.848, DE 7 DE DEZEMBRO DE 1940.

 

LEI Nº 3.071, DE 1º DE JANEIRO DE 1916.

 

CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL DE 1988.

 

LEI Nº 11.340, DE 7 DE AGOSTO DE 2006.

 

LEI Nº 13.104, DE 9 DE MARÇO DE 2015.

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