Resumo: A
antropologia, antes de tudo, é um olhar para além da visão como sentido. O que
chamamos de "olhar antropológico" é a capacidade de transformar
teoria em instrumento para, por exemplo, assistir ao filme "Nós"
(2019) e fazer dele uma revisão dos evolucionistas Edward Burnett Tylor, Lewis
Henry Morgan e James George Frazer. A partir das camadas desse terror de
invasão domiciliar, retomou-se o encontro entre dois mundos que propiciou a
discussão evolucionista do século XIX, eurocêntrica e reducionista, mas por
meio da qual fora promovida a institucionalização da disciplina.
Palavras-chave: olhar
antropológico, evolucionismo, invasão domiciliar, encontro entre dois mundos
Una mirada antropológica a "Nosotros"
Resumen: La
antropología, en primer lugar, es una mirada más allá de la visión como
significado. Lo que llamamos una "mirada antropológica" es la
capacidad de convertir la teoría en un instrumento para, por ejemplo, ver la
película "Nosotros" (2019) y convertirla en una revisión de los
evolucionistas Edward Burnett Tylor, Lewis Henry Morgan y James George Frazer.
A partir de las capas de este terror de la invasión doméstica, el encuentro
entre dos mundos que propició la discusión evolutiva del siglo XIX,
eurocéntrica y reduccionista, pero a través de la cual se promovió la
institucionalización de la disciplina.
Palabra clave: mirada
antropológica, evolucionismo, invasión de hogares, encuentro entre dos mundos.
Apresentação
Concordo
com François Laplantine, quando, em “Aprender Antropologia” (2003), afirma que
a antropologia, antes de tudo, é um olhar. Antes de ser campo de conhecimento,
antes de ser ciência ou arte, antes de ser uma teoria do social[1] ou linguagem, a antropologia é um
olhar sobre o mundo, sobre os processos macro e micro que fazem parte do
cotidiano. Esse olhar, estruturante para todo o texto, é, de acordo com Oliveira
(1996) "[...] uma espécie de prisma por meio do qual a realidade observada
sofre um processo de refração [...]". É por meio dele que a teoria
dissecada nos livros e em sala de aula passa a ser instrumento do pesquisador.
Não se restringe apenas à visão como sentido, mas é uma domesticação do sistema
sensorial capaz de criar uma sensibilidade etnográfica, empregada aqui de forma
algo poética, para referir uma perspectiva ou abordagem singular da realidade.
Todavia, a construção dessa forma de olhar sobre o mundo não foi tranquila: remonta
ao auge do darwinismo social, paralelamente ao surgimento do termo “antropologia”
para nomear uma área do conhecimento que pensava a humanidade como um todo (STOCKING,
2006), e voltar a esse período não é uma tarefa fácil. Para a nossa sorte, a
modernidade trouxe consigo uma ferramenta útil para a ciência e prazerosa para
grande parte das pessoas: o cinema.
Os filmes
podem dar forma à imaginação, uma imagem pode expressar inúmeras palavras,
muitas que nem mesmo conhecemos. Podem ilustrar, com metáforas ou
reconstruções, realidades perdidas no tempo, ou intencionalmente apagadas. Plantar
batatas em Marte ou fugir de dinossauros no centro da Terra. Todavia, não são
muitos os que aproveitam todo o potencial desse tipo de arte. Há milhares de
filmes que poderiam servir de pano de fundo para discussão dos mais diversos
conteúdos, e quando o debate é antropológico, esses milhares se multiplicam,
afinal, antropologia é, antes de tudo, um olhar.
Talvez os
“clássicos” da academia, como “Tempos Modernos” (1936), “Desmundo” (2002) ou “O
Enigma de Kaspar Hauser” (1974), já estejam muito batidos e, para um público
mais jovem, recém-chegado ao ambiente universitário, sejam um tanto quanto
entediantes, mas o universo cinematográfico não se restringe só a esses filmes
“clássico”, incontáveis vezes analisados. Existem inúmeras obras recentes que
possibilitam amplas discussões acadêmicas tão relevantes quanto as discussões
propiciadas pelos filmes que chamei de clássicos, mas tudo indica que trazer
esses elementos novos ainda é um desafio em muitas salas de aula universitárias.
E é tentando colaborar para novos debates a partir de produções recentes que
esse texto foi escrito.
Evolucionismo, terror e “Nós”
Por
brilhar mais nas sutilezas, o olhar antropológico nos permite discutir filmes
que atinjam um público mais amplo. É o caso desse texto de tom
ensaístico. Com um filme recém lançado e voltado para um público menos
restrito, pretendo fazer apontamentos sobre o evolucionismo cultural em sua
fase clássica, remontando com metáforas de um terror de invasão domiciliar às premissas
dos evolucionistas Edward
Burnett Tylor, Lewis
Henry Morgan e James
George Frazer[2].
É desafiador
treinar a nossa visão para sutilezas e metáforas, e a dificuldade aumenta quando
temos como objeto de análise algo que pretende causar medo, mas o objetivo é mostrar
como esse olhar antropológico pode alterar a nossa percepção, como a antropologia
está contida mesmo em um filme de terror. Por que escolher um filme de terror? Por
trazer as discussões sobre preconceitos e desigualdade sobre ângulos diferentes
dos convencionais. Pelo desejo de mostrar como é possível aplicar o tal olhar
antropológico em situações variadas. Mas, acima de qualquer outro motivo, a escolha
se deve pelo fato de a gênese da antropologia pelos evolucionistas ser
assustadora. Antes de prosseguir com a leitura, recomendo fortemente que
assista ao filme “Nós” (“US”, na língua original), de 2019, dirigido por
Jordan Peele[3]. As reflexões que serão expostas carecerão de
explanação sobre as surpresas que o filme apresenta, possivelmente atrapalhando
a primeira experiência com a obra.
Jordan
Peele é um ator, escritor, diretor e roteirista estadunidense que saiu da
comédia, estreando como diretor em "Corra!" (Get out, 2017), vencendo
a categoria de Melhor Roteiro Original no Oscar. Em 2019, coproduziu
"Infiltrado na Klan" (BlacKkKlansman), vencedor do prémio de
Melhor Roteiro Adaptado, e "Nós" (Us), que ficou longe da
grande premiação, apesar de propiciar uma experiência incrível. Atentemo-nos a esse
último, objeto desse texto.
Em
síntese, “Nós” retrata a história da família Wilson, que vai à praia descansar.
O pai da família é Gabriel Wilson (Winston Duke), o tipo brincalhão, buscando
mais comunicação com a família. Zora Wilson (Shahadi Wright Joseph) é a filha
mais velha, na fase "rebelde" da adolescência em que os sonhos dos
pais deixam de ser os sonhos da filha, de busca por uma autonomia maior. O
filho mais novo, Jason Wilson (Evan Alex), uma criança na transição para a
adolescência, em que o vocabulário começa a mudar, que começam a dizer que a
pessoa está velha demais para brincar. E a protagonista (e antagonista)
Adelaide Wilson, estrelada por Lupita Nyong'o: uma mãe preocupada com os filhos
e uma mulher marcada por traumas do passado. Na casa de praia encontram cópias,
“humanos criados por humanos”, mas sem alma, condenados a viver como sombras,
na definição da antagonista, que viviam em um mundo subterrâneo e conseguem
subir ao mundo superficial, procurando, pela primeira vez, agência sobre suas
próprias vidas, mesmo que para isso tenham que se sujar de sangue “inocente”.
Metáforas de invasão domiciliar
O filme
solta inúmeras farpas aos dramas sociais contemporâneos, típicas das obras de
Peele: desde uma ausência paterna, logo no início, quando o pai de Adelaide perde
a filha no parque; até comportamentos racistas normalizados, como as falas da
família Tyler na praia, e a própria ideia de ter pessoas vivendo “acima”
(literal e metaforicamente) de outras. É
um filme com camadas: na primeira consta o terror “real”, da invasão
domiciliar, de violência gráfica; na segunda, mais metafórica, a obra faz crítica
a uma sociedade de privilégios que se mantém pela exploração e exclusão. É na
segunda camada que esse texto encontra seu alvo de estudo, posto que as
metáforas que o filme sugere podem aludir ao movimento evolucionista da
antropologia no XIX.
A primeira
delas é a existência de dois “mundos”, duas realidades literalmente
sobrepostas: o mundo da superfície seria o europeu, com suas instituições
sociais e civis supostamente mais avançadas, localizando, para os autores
evolucionistas, no último degrau de uma ilusória escada evolutiva pela qual
toda a “raça” humana iria passar. E o subterrâneo, as “descobertas” europeias,
os nomeados “primitivos”, tidos para os europeus desse período como carentes de
invenções e descobertas, em um estágio de desenvolvimento muito inferior (TYLOR,
2005 [1871]; FRAZER, 2005 [1908]; MORGAN, 2005 [1877]; STOCKING, 2006).
O
primeiro contato entre pessoas desses mundos é assustador, afinal, são “iguais”[4]. Se
o novo é “igual”, biologicamente, a diferença estaria no comportamento. Essa
foi a premissa dos primeiros antropólogos, os evolucionistas. O método
comparativo promovido por Tylor (2005 [1871]) objetivava encontrar leis
universais que explicassem uma sequência natural e necessária de evolução,
retirando a agência das pessoas sobre os processos históricos e sobre a própria
vida. A ausência de agência é exposta de forma metafórica no filme: as pessoas
do mundo subterrâneo passam involuntariamente pelos mesmos eventos que os
iluminados realizam autonomamente, aludindo a escala de desenvolvimento de um
povo proposta por Morgan (2005 [1877]), selvageria-barbárie-civilização, que
serviu de justificativa para intervenção direta sobre a vida de outros povos a
fim de fazê-los alcançar um suposto grau de desenvolvimento em que os europeus
se encontravam. Teoricamente, seguia uma sequência natural e necessária, como apresentado
por E. Tylor (2005 [1871]), mas poderia ser agilizado com um guia, com uma “tutela
civilizatória”, uma intervenção dos ditos “civilizados” sobre os povos não
europeus em que fosse demonstrado um caminho para a evolução humana[5],
uma “invasão domiciliar” justificada: é só com a orientação de uma iluminada
que os subterrâneos conseguem chegar à superfície.
O filme
ainda ilustra o que deveria ser o maior medo dos antropólogos de gabinete[6]:
o advento dos não europeus, uma ruptura violenta (literal e metaforicamente), a
tomada do lugar que era dos europeus “por direito”. É possível perceber esse
receio dos evolucionistas pela insistência que tinham em defender que as
explicações de mundo dos “primitivos” não superavam a ciência, pois eram
mágicas e/ou religiosas, convertendo-se não em conhecimento, mas em pseudo-ciência ou pseudo-arte.
Nos termos do filme, esse medo seria do “desacorrentamento” proposto pela
antagonista.
Ingold
(1994) afirmou que a concepção de animalidade em cada geração é reconstruída
partindo do que, supostamente, apenas nós, humanos, temos. Essa constatação de
Ingold cai como uma luva ao observarmos que há uma construção animalesca
entorno das cópias, seja pela ausência de fala, pelo modo de se locomover,
pelos grunhidos: é como se houvesse uma insistência para que, quem assiste, não
humanize aquelas personagens, de forma que as mortes delas não geram incômodo. Aproximadamente
aos 75 minutos de filme, a família Wilson, logo após matar as cópias da família
Tyler, senta para bater papo como se os cadáveres pela casa não significassem
nada. O que acontece ao longo dos séculos de ocupação colonial entorno do mundo
é justamente essa desumanização, de forma a reduzir o impacto das mortes, ou
seja, interessados em explorar e/ou matar, cabia aos colonizadores negar aos
habitantes prévios do território ocupado a humanidade, para que pudessem se
sentar e bater papo em casa tranquilos, como a família Tyler fez no filme, sem
o peso da morte de pares.
Quanto ao
uso da violência como reflexo de uma barbárie/selvageria: tanto os iluminados
quanto os subterrâneos recorrem à violência, o que colocaria os dois em um
mesmo patamar[7]. E, no final do filme, quando temos a confirmação de que
Red pertencia ao mundo da superfície e Adelaide pertencia ao mundo subterrâneo,
fico inquieto com qual seria o real invasor. Outra reflexão que pode ser
extraída desse mesmo ponto é sobre o que somos capazes de fazer depois que
ascendemos socialmente a fim de nos mantermos no “topo”.
Conclusão
Por fim,
é necessário deixar evidente que toda interpretação é particular e única,
ligada ao contexto de vida de cada pessoa. E é essa a graça de todo tipo de
arte: o choque entre diferentes interpretações/visões de mundo. Com esse texto
em tom ensaístico objetivei aplicar um olhar antropológico sobre uma obra
cinematográfica e trazer algo sobre a discussão evolucionista, imbrincada no
surgimento da antropologia. A visão dos evolucionistas, apesar de pioneira, foi
eurocêntrica, preconceituosa e reducionista, entre outros adjetivos
pejorativos, mas não é por isso que se deve negar a existência dessa primeira
escola de pensamento ou deixar de reconhecer os pontos positivos que ela
propiciou: a institucionalização da disciplina, um primeiro objeto (o
“primitivo”), um primeiro método (o comparativo). Sem o trabalho desses
“colecionadores de borboleta”, a antropologia provavelmente estaria ainda anexa
à Sociologia ou à História.
Espero
encorajar alguns leitores, como foi feito com “Nós” (2019) e as teorias
evolucionistas, a pensarem as relações entre humanos e não-humanos com “Dolittle"
(2020), as teorias econômicas
malthusianas a partir de “Vingadores: Ultimato” (2019), as revoluções e
contrarrevoluções a partir da saga “Jogos Vorazes” (2012-2015) ou ainda o
programa “Escola Sem Partido” no filme “Harry Potter e a Ordem da Fênix"
(2007). Igualmente espero que com esse
escrito tenha demonstrado uma parte ínfima do que esse olhar antropológico é
capaz. Ele nos possibilita enxergar um outro mundo, não superior nem inferior,
mas paralelo, para além do postulado da alteridade. E talvez a maior missão do
antropólogo seja possibilitar esse olhar a toda a sociedade, construindo um
ambiente de convivência menos predatório e mais cooperativo, valorizando os
múltiplos saberes que vão para muito além da academia.
[1] Raewny Connel propõe, em “A
iminente revolução na teoria social”, que o principal produto da antropologia
deve uma teoria do social, que leve em conta os aspectos socioeconômicos e geopolíticos
da realidade em que é praticada. Um ponto de vista muito diferente do
evolucionismo, alvo desse texto.
[2] Com
publicações entre 1871 e 1908, embora essa tradição não se restrinja a esses
três autores.
[3] Jordan
Peele é um ator, escritor, diretor e roteirista estadunidense que iniciou sua
carreira na comédia estando no elenco de MADtv entre 2003 e 2009. Junto com
Michael Key, criou o programa Key e Peele (2012-2015) que tratava de forma bem
humorada de cultura popular estadunidense, estereótipos e críticas sociais. Em
2017, Peele deu um salto em sua carreira estreando como diretor em
"Corra!" (Get out), um longa de terror instigante que joga luz sobre
o racismo pós-Obama por uma ótica inusitada. Com essa obra Jordan Peele se
consagrou como primeiro negro a vencer a categoria de Melhor Roteiro Original
no Oscar, abrindo espaço para filmes com teor crítico nas principais categorias
da premiação. Em 2019, o drama policial com pitadas de comédia "Infiltrado
na Klan" (BlacKkKlansman) coproduzido por Peele levou o Oscar de Melhor
Roteiro Adaptado, reforçando a crítica ao racismo que permeia toda a jornada
profissional do diretor. No mesmo ano, o filme "Nós" (Us) veio para
comprovar que o terror é onde Peele consegue mais destaque, apesar de ter sido
esquecido pela grande premiação.
[4] No
filme: literalmente igual; metaforicamente, biologicamente iguais.
[5] Nos
escritos de Frazer (2005 [1908]), a suposição problemática em que os primitivos
eram tidos como pouco intelectuais que careciam de liderança e deveriam ser
governados é evidente.
[6] Pesquisadores
que não faziam pesquisa em campo, que escreviam suas teses a partir de relatos
de outras pessoas, a exemplo de viajantes, missionários, comerciantes
[7] É
fato que a inferiorização criada pelos iluminados gera incômodo nos
subterrâneos, mesmo que os indivíduos não tenham culpa por terem nascido na
superfície ou no mundo “inferior”, mas isso de maneira nenhuma justifica o uso
da força, bem como nada deveria justificar.
REFERÊNCIAS
CONNEL,
Raewyn. A iminente revolução na teoria social. In: RBSC, vol.27, n°80. 2012.
FRAZER,
James George. “O escopo da antropologia social”. In: Evolucionismo
cultural – Textos de Morgan, Tylor e Frazer. Castro, Celso (org.) Rio de
Janeiro: Jorge Zahar Editor. 2005 [1908].
INGOLD,
Tim. Humanidade e Animalidade. Tradução: Vera Pereira. Companion
Encyclopedia of Anthropology, Londres, Routledge. 1994.
LAPLANTINE,
François. Aprender Antropologia. São Paulo: Editora Brasiliense, 2003.
MORGAN,
Lewis Henry. “Sociedade antiga”. In: Evolucionismo cultural – Textos de
Morgan, Tylor e Frazer. Castro, Celso (org.) Rio de Janeiro: Jorge Zahar
Editor. 2005 [1877].
Nós, Us (Original). Direção de Jordan
Peele. Estados Unidos da América: Universal, 2019. P&B.
OLIVEIRA, R. O trabalho do
Antropólogo: olhar, ouvir, escrever. Revista de Antropologia, v. 39, n. 1,
p. 13-37, 6 jun. 1996.
STOCKING, GEORGE W. Jr. Tradições
Paradigmáticas na História da Antropologia. Teoria e Sociedade, 13 (2).
Belo Horizonte. 2006.
TYLOR,
Edward. B. “A ciência da cultura”. In: Evolucionismo cultural – Textos
de Morgan, Tylor e Frazer. Castro, Celso (org.) Rio de Janeiro: Jorge Zahar
Editor. 2005 [1871].