UM OLHAR ANTROPOLÓGICO SOBRE “NÓS”
Concordo
com François Laplantine, quando, em “Aprender Antropologia”, afirma que a
antropologia, antes de tudo, é um olhar. Antes de ser campo de conhecimento,
antes de ser ciência ou arte, antes de ser uma teoria do social[1]
ou linguagem, a antropologia é um olhar sobre o mundo, sobre os processos macro
e micro que fazem parte do cotidiano. Do parto à morte, da forma de dormir ao
jeito de levantar, da sala de aula ao cinema, tudo contem antropologia e está
contido na antropologia, bastar aprender a olhar de uma outra maneira. Todavia,
o trajeto para a construção dessa forma de olhar o mundo não foi tranquilo, sua
gênese remonta o período das grandes navegações, dos iluministas franceses, do
auge do darwinismo não só na biologia, mas em todas as áreas, e voltar a esse
período não é uma tarefa fácil. A leitura ajuda, mas no Brasil são poucas as
pessoas com acesso a livros de qualidade, sem falar que não são muitas as
pessoas com a capacidade funcional da alfabetização, mas a modernidade trouxe
consigo uma ferramenta muito útil para a ciência e muito prazerosa para grande
parte das pessoas: o cinema.
Os
filmes podem dar forma imaginação, uma imagem pode expressar inúmeras palavras,
muitas que nem mesmo conhecemos. As varias realidades alternativas expressas em
uma ou duas horas nos levam a passados longínquos ou a futuros macabros, ao
topo de montanhas ou ao buraco mais escuro do fundo do mar, a Marte ou ao sol.
Podem ilustrar, com metáforas ou reconstruções, realidades perdidas no tempo,
ou intencionalmente apagadas, basta procurar.
Todavia,
não são muitos os que aproveitam todo o potencial desse tipo de arte. Há
milhares de filmes que poderiam servir de pano de fundo e ajudar a criar
empatia com os mais diversos conteúdos, e quando o debate é na antropologia,
esses milhares se multiplicam, afinal, antropologia é, antes de tudo, um olhar.
Talvez os “clássicos” da academia, como “Tempos Modernos”, “Desmundo” ou “O
Enigma de Kaspar Hauser” já estejam muito batidos e, para um público mais
jovem, recém-chegado no ambiente universitário, sejam um tanto quanto
entediantes, mas o universo cinematográfico não se restringe só a esses filmes
“mastigados”.
O
olhar antropológico de que tanto falo está em tudo, e talvez, seja nas
sutilezas que ele brilhe mais. Por esse motivo, é possível, e muito mais
atrativo, discutir filmes que atinjam um público mais amplo. É o caso deste texto. Com um filme recém
lançado e voltado para um público menos restrito, pretendo debater a gênese da
antropologia enquanto ciência, remontando nas metáforas de um terror de invasão
domiciliar as premissas e conclusões dos evolucionistas Edward Burnett Tylor, Lewis Henry
Morgan e James George Frazer. Talvez seja um desafio treinar a nossa visão
para as sutilezas e as metáforas, e a dificuldade aumenta quanto temos como
objeto de análise um filme que pretende causar medo, mas o objetivo é mostrar
como a antropologia contem e está contida em tudo, como esse olhar
antropológico pode mudar a realidade.
Por
que escolher um filme de terror? Por mais curioso que possa parecer, os filmes
de terror me encantam, e isso pesa na decisão. Outro ponto é o desejo de
mostrar como é possível aplicar o tal olhar antropológico em situações
variadas. Mas, acima de qualquer outro motivo, a escolha se deve pelo fato de a
gênese da antropologia ser assustadora. Antes de prosseguir com a leitura,
recomendo fortemente que assista o filme “Nós” (“US”, na língua
original), de 2019, dirigido por Jordan Peele[2]. As reflexões que serão expostas vão carecer
de explanação sobre as surpresas que o filme apresenta, possivelmente
atrapalhando a primeira experiência com a obra.
Em
síntese, “Nós” retrata a história de uma família que vai a praia descansar.
Todavia, o que encontrar são cópias “do mal” que viviam em um mundo subterrâneo
e conseguem subir ao mundo superficial, procurando, pela primeira vez,
protagonismo e agência sobre suas próprias vidas, mesmo que para isso tenham
que se sujar de sangue “inocente”. Esse filme tem duas camadas distintas: na
primeira consta o terror “real”, da invasão domiciliar, da violência envolvida
no conflito de interesses; na segunda, uma camada muito mais metafórica, a obra
faz uma crítica a uma sociedade de privilégios que se mantem pela exploração e
exclusão. É na segunda camada que esse texto encontra seu alvo de estudo, as
metáforas que o filme sugere podem remontar o movimento evolucionista da
antropologia, e dedicarei atenção a elas a partir de agora.
A
primeira delas é a existência de dois “mundos”, duas realidades literalmente
sobrepostas: o mundo da superfície, que chamarei de iluminado, e o mundo
subterrâneo. Essa metáfora pode ser lida como referência ao período das grandes
navegações e do achamento do “Novo Mundo” pelos europeus, contexto das
primeiras discussões sobre antropologia e seu lugar na academia. O mundo
iluminado seria o europeu, com suas instituições sociais e civis avançadas,
localizando-se no ultimo degrau de uma escada evolutiva pela qual toda a “raça”
humana iria passar, carregando o estandarte da civilização. E o subterrâneo, as
Américas, as “descobertas” europeias, os nomeados “primitivos”, carentes de
invenções e descobertas, num estágio de desenvolvimento muito inferior ao
europeu.
Posto
que o mundo iluminado seria a Europa e o mundo subterrâneo as Américas, o
primeiro contato entre pessoas desse mundo é assustador, afinal são “iguais”,
no filme: literalmente igual; metaforicamente, biologicamente iguais. Se o novo é “igual” biologicamente, a
diferença está no comportamento. Essa foi a premissa dos primeiros
antropólogos, os evolucionistas. O método comparativo promovido por Tylor, numa
lógica cartesiana de dissecar-classificar-comparar, objetivava encontrar leis
universais que explicassem uma sequencia natural e necessária de evolução,
retirando a agencia das pessoas sobre os processos históricos e sobre a própria
vida.
Essa
ausência de agencia também é exposta de forma metafórica no filme: as pessoas
do mundo subterrâneo passam involuntariamente pelos mesmos eventos que os
iluminados realizam autonomamente. O que pode ser interpretado como o “processo
civilizatório” apresentado por E. Tylor, um processo que poderia ser agilizado
com um guia, com uma “tutela civilizatória”.
Nesse
aspecto, a ausência da fala dos subterrâneos pode representar a inferiorização
a qual os nativos estavam submetidos nessa lógica evolucionista, e é só com a
orientação de uma iluminada que os subterrâneos conseguem chegar à superfície,
ficando clara a “tutela civilizatória”. É uma lógica muito evidente nos
escritos de Frazer, que tinha os primitivos como pouco intelectuais que
careciam de liderança, deveriam ser governados. Os subterrâneos abandonam uma
realidade rudimentar e estacionada para viver no mundo iluminado e esclarecido
da civilização.
O
filme ainda ilustra o que deveria ser o maior medo dos antropólogos de
gabinete: o advento dos primitivos, uma ruptura violenta literal e
metaforicamente, a tomada do lugar que era dos civilizados “por direito”, e a
sua ocupação por selvagens/bárbaros. É possível perceber esse receio dos
evolucionistas pela insistência que tinham em defender que as explicações de
mundo dos “primitivos” não superavam a ciência, pois eram mágicas e/ou
religiosas convertendo-se não em conhecimento, mas em pseudo-ciência ou pseudo-arte.
Nos termos do filme, esse medo seria o “desacorrentamento” proposto pela
antagonista.
Uma
última reflexão que poderia ser feita é sobre o uso da violência como reflexo
de uma barbárie/selvageria, todavia tanto os iluminados quanto os subterrâneos
recorrem a violência, o que colocaria os dois povos num mesmo patamar. É fato
que a inferiorização criada pelos iluminados gera incomodo nos subterrâneos,
mesmo que os indivíduos não tenham culpa por terem nascido na superfície ou no
mundo “inferior”, mas isso de maneira nenhuma justifica o uso da força, bem
como nada deveria justificar.
Por
fim, é necessário deixar evidente que toda interpretação é particular e única,
ligada ao contexto de vida de cada pessoa. E é essa a graça de todo tipo de
arte: o choque entre diferentes interpretações/visões de mundo. Com esse texto
objetivei aplicar um olhar antropológico sobre uma obra cinematográfica para
compreender o momento em que a antropologia surgia enquanto conhecimento
científico e a forma como os primeiros antropólogos pensavam e olhavam o mundo.
É
obvio que a visão desses pioneiros foi eurocêntrica, preconceituosa, reducionista,
simples, entre outros adjetivos pejorativos, mas não é por isso que deve-se
negar a existência dessa primeira escola de pensamento (a evolucionista) ou
deixar de reconhecer os pontos positivos que ela propiciou: a
institucionalização da disciplina, um primeiro objeto (o “primitivo”), um
primeiro método (o comparativo). Sem o trabalho desses “colecionadores de
borboleta” a antropologia provavelmente estaria ainda anexa ou a sociologia ou
a história.
Espero
que com esse escrito tenha demonstrado uma parte ínfima do que esse olhar
antropológico é capaz. Ele nos possibilita a enxergar um outro mundo, não
superior nem inferior, mas paralelo. Não tem por objetivo julgar, mas
compreender e respeitar. E talvez a maior missão do antropólogo seja
possibilitar esse olhar a toda a sociedade, construindo um ambiente de
convivência menos predatório e mais cooperativo, valorizando os múltiplos
saberes que vão para muito além da academia.
REFERÊNCIAS
Anotações
feitas em sala de aula no ano de 2019 durante as aulas de Introdução a
Antropologia e Teoria Antropologia, ministradas respectivamente por Dra.
Giovana Acácia Tempesta e Dra. Silvia Maria Ferreira Guimarães.
LAPLANTINE,
François. Aprender Antropologia. São Paulo: Editora Brasiliense, 2003.
CONNEL,
Raewyn. 2012. A iminente revolução na teoria social. In: RBSC, vol.27, n°80.
TYLOR,
Edward. B. 2005 [1871]. “A ciência da cultura”. In: Evolucionismo cultural –
Textos de Morgan, Tylor e Frazer. Castro, Celso (org.) Rio de Janeiro: Jorge
Zahar Editor. P.67-99.
MORGAN,
Lewis Henry. 2005 [1877]. “Sociedade antiga”. In: Evolucionismo cultural –
Textos de Morgan, Tylor e Frazer. Castro, Celso (org.) Rio de Janeiro: Jorge
Zahar Editor. P.43-65
FRAZER,
James George. 2005 [1908]. “O escopo da antropologia social”. In: Evolucionismo
cultural – Textos de Morgan, Tylor e Frazer. Castro, Celso (org.) Rio de
Janeiro: Jorge Zahar Editor. P.101-127.
Nós,
Us (Original). Direção de Jordan Peele. Estados Unidos da América:
Universal, 2019. P&B.
[1]
Raewny Connel propõe, em “A iminente revolução na teoria social”, que o
principal produto da antropologia deve uma teoria do social, que leve em conta
os aspectos socioeconômicos e geopolíticos da realidade em que é praticada. Um
ponto de vista muito diferente do evolucionismo, alvo desse texto.
[2]
Jordan Peele é um ator e cineasta norte americano, premiado, pelo filme “Get
Out”, em 2018 com o Oscar de melhor roteiro, sendo o primeiro negro a ganhar o
prémio nessa categoria. A crítica social metafórica é uma das características
de suas obras.
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