segunda-feira, 15 de julho de 2019

PROVA II - INTRODUÇÃO AO ESTUDO DA HISTÓRIA


PROVA II - INTRODUÇÃO AO ESTUDO DA HISTÓRIA

1-
É no fim o século XIX que se inaugurou um  paradigma de suma importância para a história: a Escola Metódica (ou ramkeana). Nessa escola de pensamento vigorava-se ideias de erudição acompanhadas por uma busca incansável da nacionalidade. Se preocupavam com uma história narrativa, sem conexões generalizantes, sem subjetividade e sem intencionalidade.
Aparentemente inocente, a Escola Metódica acabou atuando de forma extremamente historicizante, ditando uma versão do passado fixa e imutável. Além disso, afastou a história das demais disciplinas das humanidades e se focou em nichos que aclamavam eventos específicos e pontuais, exaltando grandes homens e perdendo-se nos mitos de origem. Outro ponto relevante é que, para os metódicos as fontes, limitadas a documentos de preferencia oficiais, falavam a verdade por si só, não exigiam uma interpretação do historiador. Quando se inventariasse um número enorme de documentos seria possível falar de uma “História” una, fechada e acabada da humanidade.
Na metade do século XX as incoerências do paradigma ramkeano começaram a ser expostas e questionadas. Com o fim da Primeira Grande Guerra havia um clima favorável à inovações intelectuais e ao intercambio de ideias nas universidades europeias, como aponta Peter Burke, em 1991. É nesse ambiente de tranquilidade, em Estrasburgo, que um grupo interdisciplinar extremamente atuantes inaugura indiretamente uma nova escola de pensamento: a Escola dos Analles.
Encabeçada por Marc Bloch e Lucien Febvre, os Analles compuseram inicialmente uma revista que tinha por objetivo apresentar aos leitores uma história social, com predomínio no campo da história econômica, observando os eventos e os “grandes homens” na longa duração e buscando problematizá-los, dialogando com as demais ciências humanas e em especial com a sociologia de Émile Durkheim, dessa forma adensando da história enquanto saber.
É o sucesso da revista que mostra a fragilidade do paradigma anterior. O que ficou conhecido como “Primeira Geração” dos Analles moldou uma história que se preocupa em formular problemas, que recusa a pratica historizante, que aproxima o saber histórico dos demais saberes, que não observa o momento, mas sim a longa duração, o cunho social. E é com essas premissas que se iniciou uma “história da sensibilidade” com o foco na profundidade, nos problemas, uma história que tinha o indivíduo como agente histórico, uma história carnal que gera prazer estético.



2-
A Escola Metódica da erudição, da passividade e da história narrativa,  teve reflexos em todo o ocidente, incluindo o Brasil, mas antes de apresentar seus impactos no país tropical é necessário apresentar as características que estruturaram o corpo metódico de discussão. Como afirma Guy Bourdé, em 2018, o embrião metódico surge durante a terceira república na França (1870-1940). É o período em que se criou e se institucionalizou a escola gratuita, obrigatória e laica com um objetivo muito claro: formar, desde jovens, soldados republicanos.
Dentro das grandes universidades francesas estavam se consolidando as áreas de conhecimento para além da filosofia, é o período de disciplinarização das diversas humanidades como a Ciência Política e a Sociologia. Para além das universidades, é o período em que as monarquias e o catolicismo, os até então grandes construtores de identidades coletivas, entram em crise e tornou-se necessário discutir algo novo para aglomerar grandes contingentes de pessoas tão diferentes. É o período dos estados nacionais.
Voltando à França, nas grandes universidades, olhava-se para a história, uma disciplina ainda em construção, na esperança de uma “proposta de unificação”. E ela é atendida pelo paradigma metódico, um paradigma que tinha por princípios a  objetividade, a imparcialidade, a negação as reflexões filosóficas, a passividade do historiador e um caráter literário. O seu principal objetivo era formar uma coletânea de erudição. E a principal pauta era a construção nacional.
Talvez a principal causa da profissionalização da história estivesse nessa pauta. Era preciso conferir verdade ao que o historiador afirmava, por essa razão a História ganha autoridade. E aqui pode se localizar a maior contribuição da escola metódica para o saber histórico: a disciplinarização e profissionalização da história. Com o lugar garantido nas universidades europeias, em especial nas universidades francesas, a dispersão do paradigma cientificista tornou-se mais fácil.
É relevante ressaltar que o período descrito acima é paralelo ao darwinismo social e as teorias eugenistas de superioridade racial. E é acompanhada desses pressupostos que a Escola Metódica chega ao Brasil. Todavia aqui não haviam grandes universidades então a pauta da construção nacional se alojou em outro berço.
Lilia Schwarcz, no artigo “O espetáculo da miscigenação”, apresenta uma síntese do período. O Brasil havia passado pela Guerra do Paraguai (1864-70), pela Lei do Ventre Livre (1871), pela fundação do Partido Republicano Paulista (1873), pela Lei Áurea (1888), pela Constituição Republicana (1891), pela Revolta da Vacina (1904), pelas Greves Gerais (1907). É em meio a essa serie de acontecimentos que o paradigma metódico começa a ser difundido. Pela ausência das universidades, a construção nacional fica a cargo dos Institutos Históricos, das academias e dos grêmios brasileiros. Localizados em São Paulo, Rio de Janeiro, Belém, Salvador e Recife, estão sob tutela de médicos e advogados filhos dos grandes oligarcas da época. Eram os responsáveis por definir padrões morais para todo o Brasil.
O estudo da história ficou restrito a uma elite que partilhava o ódio aos “outros”: negros e indígenas. No período destacam-se nomes como: Arthur de Ramos, Nina Rodrigues, Herman von Ihering, Emílio Goeldi e Sylvio Romero, todos influenciados pelo teorico racialista Arthur de Gobineau. O que chama atenção é o fato de discutirem uma identidade nacional em que não se enquadrava a maior parte da população brasileira: almejam um brasileiro branco e católico, que orgulhavam da origem ibérica.

3-
Dando continuidade a discussão anterior e avançando um pouco mais no tempo, chegamos ao período Vargas no Brasil e a eminência da Segunda Grande Guerra no mundo. É o auge do pensamento eugenista em todas as áreas dos saberes. Na psicologia, por exemplo, é o período em que se popularizam no Brasil os manicômios e os tratamentos por eletrochoque e afogamento, na Europa discutia-se a lobotomia. É importante citar não só os manicômios mas também os presídios, pois eram os lugares para os quais eram enviados os indesejados, os que não se enquadravam no projeto nacional de identidade ou se incomodavam com ele.
Getúlio Vargas promoveu uma “redescoberta” do Brasil, como afirma Ângela de Castro Gomes, em 2007. Um oligarca que caçou seus iguais, um caudilho que promoveu a industrialização, um ditador que disseminou a cidadania. É em meio a tantas contradições que se busca construir uma imagem nacional e para tal tarefa destacaram-se Gilberto Freyre, Sergio Buarque de Holanda e Caio Prado Junior, a matriz historiográfica brasileira.
Tentavam pensar o Brasil através dos seus problemas e é com uma visão saudosista que o preso do racismo científico Gilberto Freyre coloca sua interpretação de Brasil. Em “Casa Grande e Senzala” o autor lembra da colonização e afirma que está no  patriarcado a unidade nacional. Enxerga na miscigenação a solução para os conflitos entre brancos e não-brancos e uma fonte de “orgulho nacional”. Freyre criou o paradigma culturalista brasileiro e, como afirma Jessé Souza, hoje muitos são freyrianos sem o saber. Todavia fez tudo isso com certo tom de saudosismo, como se a antiga política oligárquica fosse a solução brasileira e não o motivo de seu atraso, como colocam os demais autores.
Sergio Buarque de Holanda (S.B.H.), paulista e advogado de formação, escreve “Raízes do Brasil” onde afirma que os portugueses estariam mais aptos para colonizar o Brasil já que não tinham o “orgulho de raça”. Diferentemente de Freyre, S.B.H. foca nos métodos de produção para concluir que o brasileiro herdou a preguiça dos portugueses e desenvolveu uma cordialidade que inibe o progresso já que não possibilita delimitar espaço público e privado, muito diferente dos protestantes norte-americanos. Posto isso, Sergio Buarque dá o ponta pé inicial para o que conhecemos hoje como “complexo de vira lata”. Sendo assim, não há saudosismos aqui, para Buarque de Holanda a opção é romper com o passado colonial.
Mais radical que S.B.H., oligarca de berço e anti-oligarca de convicção, é Caio Prado Junior. O progressista que apoia a Revolução de 30 e se decepciona com Vargas, escreve “A formação do Brasil contemporâneo”, onde localiza o gigante dos trópicos como ainda em uma processo de transição capitalista que se iniciou com a vinda da família real portuguesa. A defesa de Prado Júnior se faz em um país autônomo e industrial, com um sentido nacional e não mais europeu (a agenda de Vargas). Tal feito só seria alcançado com o rompimento total com o passado colonial e uma inversão completa da sociedade.
A partir da leitura de Bernardo Ricupero, de 2008,  e de Jessé Sousa, de 2017, é que fora elaborado os resumos acima e conclui-se que de comum aos três autores observamos o protagonismo português, a indiferença quanto ao nativo e a defesa do patriarcado como unidade nacional. É valido lembrar que história é poder: do artigo já citado de Schwarcz, é apropriado abstrair que se discutia raça para não se discutir os problemas pelos quais o país passava: mais da metade da população era não-branca e todo esse contingente estava fora alheio ao Brasil almejado pelos pensadores da época. Talvez daqui parta a afirmação de José Murilo de Carvalho de que no Brasil os direitos sociais são visto como dádivas, como presentes. Discutiram os “problemas” brasileiros para não discutir a ausência de direito dos brasileiros.

REFERENCIAS
Textos da disciplina e anotações pessoais sobre as aulas.
SCHWARCZ, Lilia Moritz. 2003. O espetáculo da miscigenação. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz.
CARVALHO, José M. 2001. Cidadania no Brasil: o longo caminho. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira.
SOUZA, Jessé. 2017. A elite do atraso. Rio de Janeiro: Leya.

COMENTÁRIO - DOCUMENTÁRIO: MISS REPRESENTATION

COMENTÁRIO - DOCUMENTÁRIO: MISS REPRESENTATION
Por muito tempo justificou-se cientificamente que existiam pessoas superiores a outras.
Na obra “A falsa medida do homem”, o autor norte americano Stephen Jay Gould busca desconstruir o mito do determinismo científico, que tinha por pilares as ideias ilusórias de: (1) inteligência enquanto entidade “inata, hereditária e mensurável”, fechada na caixa craneana, a (2) neutralidade, objetividade e a busca cientifica por uma verdade absoluta. Mas, mesmo que os cientistas acreditassem estar buscando a verdade e por mais refinados que fossem os métodos utilizados na pesquisa, o determinismo usou da reputação cientifica para dar continuidade a preconceitos [GOULD, 2003, p.04-12].
Gould é só um entre tantos outros como Lévi-Strauss ou Sahlins. Todavia, em pleno século XXI, observamos que todo o esforço de inúmeros cientistas para alcançar a paridade entre gêneros, cores e culturas é ameaçada por um ente um tanto quanto abstrato a qual todos estamos, direta ou indiretamente, expostos: a mídia.
É o que o documentário “Miss Representation”, de 2011, dirigido por Jennifer Siebel Newsom e Kimberlee Acquaro nos revela. A produção tem por premissa o fato de que “você não pode ser o que não pode ver”, ou seja, a forma com que os meios de comunicação convencionais apresentam a mulher fragiliza a imagem da população feminina como um todo. Constroem padrões de beleza inalcançáveis e inferiorizam o valor das capacidades femininas de tal forma que não existe mulher para além do corpo.
Luiz Felipe Miguel já havia alertado no ano de 2007, em “Mídia e opinião público”, que a maior parte dos filtros pelos quais determinamos nossa maneira ver e agir no mundo dependem a mídia. Todavia ela não tem compromisso nenhum com a verdade de tal forma que não transmitem apenas fatos, mas os preenche com juízos de valor, o que configura um ponto de fragilidade numa sociedade dita democrata [MIGUEL, 2007, p.331-334].

REFERÊNCIAS
MIGUEL, Luis Felipe. “Mídia e opinião pública”. In: AVELAR, Lúcia; CINTRA, Antônio Otávio (orgs.). Sistema Político Brasileiro: uma introdução. UNESP, 2007.
GOULD, Stephen Jay. A falsa medida do homem. São Paulo: Martins Fontes, 2003.
NEWSOM, Jennifer Siebel; ACQUARO, Kimberlee. “Miss Representação”. 2011.

PROVA II - INTRODUÇÃO À CIÊNCIA POLÍTICA

PROVA II - INTRODUÇÃO À CIÊNCIA POLÍTICA

O embate por poder não é novidade. No campo lexical a discussão é dominada por dois grupos: elitistas e pluralistas. O primeiro é formado predominantemente por sociólogos e acredita que o poder está nas mãos de uma elite dirigente. Elaboram sua tese apoiados a pontos frágeis como: a pré-existência de “estruturas verticais de poder” em qualquer sociedade e a paridade entre “poder reputado” e “poder efetivo” [BARACH & BARATZ, p. 150].
O segundo grupo, constituído majoritariamente por cientistas políticos, questiona a existência dessa elite dirigente. Para os pluralistas o poder está difuso no meio social, horizontalizando a perspectiva de estruturas de poder (se é que elas existem). A teoria também apresenta falhas, por exemplo, ao propor que o poder só pode ser observado em tomada de decisão sobre temas concretos [BARACH & BARATZ, p. 150]. 
Visto que as duas correntes de pensamento têm pontos de incoerência, Peter Barach e Morton Baratz elaboram uma nova concepção de poder. Para esses autores existem duas faces do poder. A primeira é abordada na concepção pluralista, que entende poder como participação na tomada de decisão sobre temas concretos. Todavia essa visão não contempla a segunda face do poder, que está localizada na não tomada de decisão, ou seja, no poder de agenda, na capacidade que indivíduos tem de fazer chegar ao debate público somente temas “seguros”, manipulando valores políticos e socais para a manutenção de interesses e perspectivas próprias [BARACH & BARATZ, p. 148-152].
Conhecendo o significado de poder cabe se perguntar quem exerce o poder? E são inúmeras as respostas para essa questão, mas o foco deste trabalho está na democracia, mais especificamente em duas de suas correntes: a liberal-pluralista e a participativa.
A corrente liberal-pluralista que, evocando um espectro dahlziano, preza pelas liberdades individuais, por eleições competitivas e livres e pela formação de grupos de pressão. O pluralismo de Robert Dahl, que dá nome a essa corrente, equivale ao elitismo apresentado no primeiro parágrafo deste texto. Joseph Schumpeter, nascido na região que constitui a Áustria, teve sua proeminência acadêmica durante o século XX, é representante emblemático dessa linha de pensamento.
O autor novecentista propôs a “teoria clássica da democracia” que unia Rousseau aos utilitaristas. Pregava ideias de racionalidade e de especialização para defender a competição entre elites e, diferentemente dos clássicos, propunha que os cidadãos eram desinformados e apáticos, facilmente manipuláveis pela propaganda.
 Nesse aspecto o austríaco ressignifica democracia como “uma maneira de legitimar o governo de uma minoria através do processo eleitoral”, ou seja, um governo representativo, caracterizado pela “agregação de preferências manipuladas”. Aos cidadãos comuns, desinformados e apáticos, quanto a política, cabe apenas o gesto de votar [MIGUEL, 2005, p. 09-11].
Com isso Schumpeter esvazia o sentido de democracia: afasta o poder do povo ao afirmar que a tomada de decisão só pode ser exercida por uma minoria especializada e aos cidadãos comuns não cabe nem julgar a qualidade do governo, pois nem para tal função teriam aporte. Nesse sistema a segunda face do poder fica muito evidente: assuntos “perigosos” aos interesses dessa minoria representante nunca vão chegar ao debate público.
É sobre essa discussão que muitos governos vão se apoiar e buscar legitimidade, a exemplo dos Estados Unidos da América. Schumpeter abre margem para domínios autoritários sob um espectro democrático de instituições livres e direitos prescritos à custa da participação política ampla.
As críticas a esse modelo schumpeteriano são robustas: (1) o autor se afirma descritivo, todavia o sistema descrito por ele nunca existiu o que o faz prescritivo, além de tornar sua teoria irreal e impositiva; (2) a “teoria clássica da democracia” nunca se quer existiu, é no mínimo incoerente uma junção de Jean-Jacques Rousseau aos utilitaristas; (3) o autor faz confusão entre economia e política e (4) a discussão elaborada caracteriza muito mais uma república que uma democracia.
Uma alternativa ao modelo liberal-pluralista é a corrente participativa. Evoca John Stuart Mill e Rousseau como os autores que inauguraram suas ideias. São eles que dão a base para uma aplicação com contingentes populacionais maiores.
Os teóricos dessa linha acreditam na valorização e demonstração democrática através da educação política que se inicia com a participação política no cotidiano. Não há necessidade de se especializar em política para aprender sobre o mecanismo político, é preciso engajamento e exercitar o poder a partir dos níveis micro (nos bairros, nas escolas, nas fábricas, etc) até os níveis macro (na gestão do estado). Talvez aqui o “poder de agenda” se torne quase irrelevante, pois a gestão é de todos, o privado se torna público [MIGUEL, 2005, p. 24-29].
Também não há um desejo por alcançar a democracia direta, a questão aqui é a autogestão nas instituições já vigentes, que tem como um dos seus defensores Robert Dahl (anos depois de seu vínculo com o liberalismo), denotando igualdade política e soberania popular.
Vê-se grandes problemas na associação do termo democracia a sociedades capitalistas e também socialistas. No primeiro caso a desigualdade acaba por dificultar a participação efetiva dos trabalhadores na tomada de decisão. No segundo caso, ao passo que se amplia a igualdade restringe-se o espaço para participação. Nesse limbo entre capitalismo e socialismo real é que se constata a maior crítica ao sistema participacionista: a desigualdade dificulta o exercício do poder e a igualdade cerceia a liberdade para o mesmo fim [MIGUEL, 2005, p. 26-27].
A perspectiva participativa valoriza a democracia em uma nova forma: dentro dos moldes das instituições já existentes, mergulha profundamente no conteúdo que cada cidadão carrega, tornando o privado também público. No Brasil, mesmo depois de ter perdido espaço no debate acadêmico, pôde ser vista nos “orçamentos participativos” que ajudaram a superar o clientelismo com uma renovação das práticas políticas locais [MIGUEL, 2005, p. 28].
Observando as duas correntes é possível formular uma comparação entre as formas de exercício do poder. No caso liberal-pluralista, a tomada de decisão cabe a um grupo de representantes muito seleto e especializado, legitimado pelo voto. A segunda face do poder é muito importante, pois certos assuntos podem abalar a estrutura de poder. Não há mecanismos de participação política para além do voto, o que torna a representação pouco eficaz, pois essa não será cobrada.
Em contrapartida, na linha participativa o voto é insuficiente, o poder está na autogestão popular, no exercício da tomada de decisão em todas as questões cotidianas. A base desse regime é uma participação política ampla e essa jamais pode ser completamente substituída pela representação política.
O que faz das perspectivas antagônicas são o grau de participação e de representação política: enquanto em uma (liberal-pluralista) é impossível extinguir a representação e a participação política é mínima, em outra (participativa) a participação é a base de sustentação do modelo. Enquanto os liberal-pluralistas se afastam cada vez mais da democracia (enquanto poder do povo) os teóricos participativos buscam uma reaproximação com a mesma.
Sendo assim podemos nos perguntar o porquê da corrente liberal-pluralista ser considerada democrática enquanto se encaixaria perfeitamente na descrição de um regime representativo. Não interessa ser democrática efetivamente (possibilitar maior participação política), mas sim o rótulo democrático. É sobre essa perspectiva que o cientista político Gabriel Vitullo se debruça: o medo da minoria afortunada de uma divisão igualitária de propriedade fez com que ideias republicanas fossem trabalhadas sob um título falsamente democrático [VITULLO, 2009, p.272-280].
A questão era impor limites as camadas assalariadas cada vez mais organizadas: com organização e maior volume as exigências dessa massa não poderiam ser negadas. A resposta para esse “problema” veio na associação de representação política a democracia, com um foco muito maior no primeiro, uma “fusão entre regime democrático e regime representativo”, imersos num mar liberal, materializando a democracia liberal-pluralista [VITULLO, 2009, p.272].
Unir liberalismo e democracia é no mínimo contraditório, pois são perspectivas opostas. Como se pode observar na discussão elaborada anteriormente sobre as correntes democráticas, a democracia em si está muito mais ligada ao exercício da autogestão, na participação. O regime liberal almeja a república, massas participando da tomada de decisão resultariam em balbúrdia. Sendo assim, democracia e representação jamais serão temos intercambiáveis, mas podem coexistir. [VITULLO, 2009, p.278-280].
O conflito descrito acima é semelhante a união entre democracia representativa e democracia direta. A democracia direta está muito mais ligada a ideia de participação, que é alvo de repudio de correntes representativas. Todavia a dita “democracia liberal” já impregnou tanto o cenário social com a representação autoritária schumpeteriana que se esquece da possibilidade de um “tipo de representação, com outro tipo de instituições que reforcem a democracia em lugar de levar à sua negação” [VITULLO, 2009, p.293].
Um tipo de representação que já foi colocado em prática: a democracia da Comuna de Paris com mandatos imperativos, cargos rotativos e direito a revogatória, a democracia bolivariana da Constituição Venezuelana de 1999, onde o poder político é exercido “de baixo para cima”, a democracia participativa como foi descrita anteriormente, com seu caráter pedagógica deve atuar em uma remodelagem social  dentro das instituições vigentes, com a valorização de todas as experiências, garantindo “o desenvolvimento individual e coletivo ao povo” [VITULLO, 2009, p.293-295].

REFERENCIAS
BACHRACH, Peter; BARATZ, Morton S. “Duas faces do poder”. Revista de Sociologia e Política, v. 19, n. 40, 2011, pp. 149-157.
MIGUEL, Luis Felipe. “Teoria democrática atual: esboço de mapeamento”. BIB: Revista Brasileira de Informação Bibliográfica em Ciências Sociais, nº 59, 2005. pp. 5-42.
VITULLO, Gabriel. “Representação política e democracia representativa são expressões inseparáveis? Elementos para uma teoria democrática pós-representativa e pós-liberal”. Revista Brasileira de Ciência Política, n. 2, 2009.


LINGUAGEM: O REFLEXO DA CULTURA

LINGUAGEM: O REFLEXO DA CULTURA

Tomemos linguagem como “qualquer conjunto ou sistema de símbolos vocais ou escritos, usado de forma mais ou menos uniforme, pelos membros de uma comunidade”. É a linguagem que “torna possível o desenvolvimento e a transmissão de culturas, a continuidade das sociedades, bem como o funcionamento eficiente e o controle dos grupos sociais”. Linguagem verbal, não-verbal, mista, formal, informal, humana ou artificial, são, entre muitos outros, tipos de linguagem. Mas é na linguagem ficcional que temos interesse [KRECH, CRUTHCFIELD & BALLACHEY, 1975, p. 352-356].
É do conhecimento de alguns que a cerca de 70 mil anos atrás nossa espécie começou a usar a linguagem ficcional. Não se sabe o motivo, mas foi a possibilidade de criar ficções, mitos compartilhados, que nos possibilitou pensar coletivamente, dando o primeiro passo rumo à cultura e a sua complexificação. É possível observar uma ligação genuína entre a linguagem e a cultura, e é com esse elo que nos preocuparemos nesse texto.
O maior exemplo da linguagem ficcional está nas religiões: a chance de fazer um macaco lhe entregar uma banana dizendo que quando ele morrer terá varias macacas o esperando é quase nula. Mas é possível observar essa linguagem em muitos outros contextos como na base acumulativa da sociedade capitalista ou em eventos cotidianos: num empréstimo bancário (e a crença que a dívida será quitada) ou nas telenovelas e no cinema (na empatia com personagens que na realidade não existem). E é uma obra cinematográfica o pano de fundo da discussão elaborada nesse ensaio.
Partiremos da análise do personagem Kaspar Hauser (K. H.), retratado no filme “O enigma de Kaspar Hauser” de Werner Herzog, de 1974: um adolescente misterioso que, no século XIX, foi encontrado em Nuremberg, Alemanha. Tendo sido criado em uma torre até os dezesseis anos de idade e sem contato com outras pessoas não desenvolveu habilidades como andar e falar. É só com a inserção em um pequeno povoado que K. H. começa a demonstrar essas competências básicas.
Ao ser deixado na vila, Kaspar repete apenas algumas poucas palavras antes de ser examinado por soldados que atestam sua saúde. Logo depois, passa a viver com uma família onde aprende novas palavras com as crianças da casa. Isso deixa claro que a capacidade de fala existia, só não havia sido estimulada, o que atesta a teoria de “equipamento original” formulada por Clifford James Geertz.
A ideia do antropólogo estadunidense afirma que disposições, tendências e capacidades estão diretamente atreladas a cultura, em um processo de interação dinâmica entre aspectos biológicos, psicológicos, sociais e culturais. Nesse sentido, K. H. tinha disposição biológica para a fala (as cordas vocais existiam, já que fora capaz de repetir algumas palavras), todavia não tinha estímulos psicológicos (só pôde desenvolver a linguagem quando colocado em contato com pessoas), seu universo de sentido começou a ser moldado pela relação estabelecida com outros indivíduos. O espaço cultural para o desenvolvimento da fala é a sociedade.
Imaginemos a linguagem como definido por Tolman, citado em “O indivíduo na sociedade”, um “instrumento longo, uma extensão de braços e mãos”: assim como os músculos do corpo humano, ela precisa de estímulos para se desenvolver e é passível de ser moldada. A modelagem na linguagem enquanto instrumento de cultura pode ser abstraída da discussão posta pelo francês Marcel Mauss. O pai da antropologia francesa, como ficou conhecido, afirma que todos os nossos atos passam por uma montagem “fisio-psico-sociológica”, ou seja, não são apenas fenômenos biológicos, mas também adquiridos no processo de socialização. “Em toda sociedade, todos sabem e devem saber e aprender o que devem fazer em todas as condições”. A sociedade alemã oitocentista era extremamente fria, as pessoas tinham uma postura rígida e comportamentos muito pautados na religião. É nesse contexto que a linguagem de H.K. se desenvolve, nesse espaço cultural. “É graças à sociedade que há uma intervenção da consciência [...] que há segurança e presteza nos movimentos, domínio do consciente sobre a emoção e o inconsciente” [MAUSS, 2003, p. 420-421].
“Na interação social, o homem é guiado pela sua interpretação do sentido das palavras e das ações do outro”: até hoje nos cumprimentamos formalmente com um bom aperto de mãos, observe esse ato: é uma forma de comunicação que transcende a linguagem verbal, mas segue regras que já naturalizamos, como entregar a mão direita e não a esquerda [KRECH, CRUTHCFIELD & BALLACHEY, 1975, p. 334].  
Kaspar Hauser rompe essa regra, ele deixa de lado um “princípio classificatório comum”, provavelmente por não ter internalizado esse padrão: na festa, com a alta classe alemã, K.H. dá a mão esquerda aos convidados, o que dá origem a olhares curiosos e comentários como “ele é realmente um homem da natureza”. Outro ponto que vale a pena ser observado é que Kaspar, em boa parte do filme, fala pressionando o dedo indicador no polegar, o que desagrada o nobre com que reside: veja, como dito anteriormente, os alemães do século XIX eram extremamente frios e rígidos, então esses pequenos atos são motivo de incômodo.
Mas por que nos incomodamos com isso? “A linguagem torna possível o desenvolvimento e a transmissão de culturas, a continuidade das sociedades, bem como o funcionamento eficiente e o controle dos grupos sociais” através do estabelecimento de filtros [KRECH, CRUTHCFIELD & BALLACHEY, 1975, p. 352].
Se três pessoas diferentes passearem pela mesma floresta, as experiências que terão serão muito diferentes pelos filtros sensoriais que as técnicas e as tradições sociais nos impõem de maneira quase imperceptível. Aceitar que o que vemos, ouvimos ou sentimos não compreende toda a realidade é um tanto complicado, por essa razão é colocado um exemplo comparativo: Kaspar Hauser, já bem apresentado, e Colombo, da forma como é retrato por Tzvetan Todorov na obra “A descoberta da américa”, de 2003.
Kaspar Hauser é um ser humano que chegou a fase adulta sem filtros definidos, com uma perspectiva muito fechada, é a origem do cumprimento com a mão esquerda, o pressionar do indicador no polegar, a dificuldade em diferenciar o estado consciente do inconsciente (realidade e sonho) e a dificuldade de expressar seus sentimentos através da linguagem verbal: ele ainda não conhecia as palavras pra expressar suas emoções (como na cena da galinha ou na dificuldade que tem para contar uma história).
Seu processo de significação do mundo veio tarde: ele não delimitava filtros naturais, humanos, espaciais ou religiosos. Ao sugerir que maçãs podem se cansar, ao serem arremessadas, e por isso se esconder no mato, demostra ausência dos filtros naturais e humanos de sua sociedade.  Negar a possibilidade de a torre ser maior que o quarto, pois, no quarto, quando olha para as diferentes direções K.H. só vê o quarto, mas fora da torre, ao olhar as diferentes direções, a torre só é vista em uma, possibilita a visualização da falta de filtros espaciais. A falta de filtros religiosos é vista quando o jovem indigente foge da igreja por achar o canto e a música extremamente incômodas.
A ausência desses filtros incide na linguagem verbal e física de K.H., basta observar a dificuldade que ele tem em interagir com os outros ou as perguntas que elabora ao nobre que o adota, e essa ausência incomoda as demais pessoas. A cultura em que está inserido não é refletida na sua linguagem ainda precária.
Já Colombo é o extremo oposto: seus filtros são extremamente definidos por sua visão de mundo, uma visão extremamente eurocêntrica, apoiada no divino e na busca por riquezas. Esses dois filtros principais refletem a cultura europeia do fim do século XIV que perdurou até o século XVIII. É tão curioso a ponto de se tornar engraçado: os filtros de Colombo o fazem interpretar o mundo de uma maneira única. Quando lhe é útil, qualquer coisa é sinal de ouro ou da proteção divina (pássaros pousando no navio, por exemplo): até na comunicação com os nativos ele captura palavras e as associa ao que lhe interessa (interpreta, por exemplo, que está na China, cercado de homens do Can), afirmando em outros momentos que nada entendia da língua, quando o que entende não lhe agrada, por exemplo, ao ignorar o nome das ilhas e rebatizá-las.
A linguagem que vai além da verbalização também é cerceada pelos filtros perceptíveis de Colombo: ao ver os índios nus, colombo associa a ausência de cultura e a abertura para o catolicismo, por afirmar uma “nudez espiritual”. Seu pensamento é de extremos, superior e inferior, bom e mau, covarde e corajoso, bonito e feio, humano e não humano, a depender dos seus interesses. Um exemplo claro é que, ao enxergar os nativos como humanos ele os vê como abertos a religião europeia, ao afirmar que não são humanos, vê neles um carácter bestial.
Ao opor esses dois personagens é possível demarcar a ideia com que gostaria de finalizar: a visão de mundo falseada pelos filtros que nos são impostos socialmente, numa construção coletiva, assim como a linguagem. A linguagem em si é um grande filtro, diferencia povos de países diferentes, diferencia classes sociais dentro de um mesmo país, além de transmitir a cultura.
“A linguagem reflete a personalidade do indivíduo e a cultura de sua sociedade, e por sua vez, ajuda a formar a personalidade e a cultura” [KRECH, CRUTHCFIELD & BALLACHEY, 1975, p. 352-356]. É através da linguagem nos seus vários espectros que transmitimos aos outros nossos preconceitos socialmente naturalizados, ou seja, nossos filtros de mundo. Como afirma Mauss “temos um conjunto de atitudes permitidas ou não, naturais ou não” definidas por filtros que todas as sociedades tem, fazendo o que é normal em certos locais ser assustador em outros. Em síntese: não conhecemos a realidade como um todo, conhecemos o que nossos filtros permitem, filtros que nem sabemos que temos. Ou, parafraseando Geertz, todo conhecimento é local, convencional e variável, logo julgar comportamentos e regras morais operantes nas sociedades demanda cuidado especial. Empenhar-se em delimitar culturas alheias a partir de experiencias e costumes totalmente pessoais configura racismo, etnocentrismo, intolerância ou xenofobia.

BIBLIOGRAFIA

O enigma de Kaspar Hauser. Direção de Werner Herzog. Alemanha Ocidental, 1974. (109 min.), P&B.
GEERTZ, Clifford. (1973) 1989. O impacto do conceito de cultura sobre o conceito de homem. In: A interpretação das culturas. Rio de Janeiro: LTC. pp. 25-30.
MAUSS, Marcel. (1935) 2003. As técnicas do corpo. In: Sociologia e Antropologia. São Paulo: Cosac Naify. pp. 399-422.
TODOROV, Tzvetan. 2003. A descoberta da América; Colombo hermeneuta. In: A conquista da América. A questão do outro. São Paulo: Martins Fontes. pp. 3-46.
KRECH, David; CRUTCHFIELD, Richard S.; BALLARCHEY, Egerton L. 1975. Linguagem e comunicação. In: O indivíduo na sociedade: um manual de psicologia social. São Paulo: Biblioteca Pioneira de Ciências Sociais. pp; 317- 356.


Carta sobre GTAQ

 Carta sobre GTAQ As comunidades quilombolas são constituídas por pessoas que compartilham uma identidade forjada ao longo de processos hist...